Thursday, August 24, 2006

I love you, Tony

...


“A senvergonhice reina, tão leve e leve pertencidamente, que por primeiro não se crê no sincero sem maldade.”(Riobaldo, Grande Sertão: Veredas, João Guimarães Rosa)

- Mãe, você, por favor, pode comprar duas caixas de Sucrilhos?
O pedido, com sentido de urgência, veio no meio da tarde de segunda-feira, soando inusitado. Raramente come Sucrilhos, duas caixas para quê? Justificativa rápida e, em sua lógica, justíssima. O amigo apareceu com duas bolinhas vindas de brinde nas caixas do cereal. Cada caixa, uma bolinha. Logo, duas caixas. “Você traz?”, insistiu.
Averigüei a descrição das tais bolinhas, para confirmar a suspeita. Só podia ser promoção do período da Copa. Em pleno agosto, já era, não vamos encontrar. “Mas você pode procurar?”, tornava a perguntar. Vencer o jogo, talvez. Entrar em campo, sempre. Para não transparecer derrotismo – “não vamos encontrar mesmo” – concordei em levá-lo ao supermercado, à noite.
Vasculhamos todas as embalagens de cereais disponíveis. A ressaca da Copa foi evidente, nada de bolinhas. “Vamos perguntar para alguém”, sugeriu, como se a dinâmica de auto-atendimento dos supermercados pudesse supor alguém atrás do balcão para dar conta de tudo que não se acha. Examinando uma das caixas, uma pista: www.sucrilhos.com.br.
Ainda na casa da avó, me fez suplicar informações para dona Kellog´s. O site tinha o indefectível “Fale conosco” e falei, pedindo ajuda. Onde uma mãe instigada poderia encontrar o brinde descontinuado para o filho? A resposta automática veio em segundos. No dia seguinte, bem cedo, uma resposta personalizada repousava em minha caixa postal. “O brinde a que a senhora se refere é o futebag, distribuído por ocasião da Copa do Mundo. Como já não é atual, será difícil encontrá-lo no varejo, mas teremos prazer em enviar uma unidade para seu filho. Por favor, informe o endereço completo.”
Claro que o fiz no mesmo instante, esperançosa e muda. Não se comenta esse tipo de expectativa com uma criança de seis anos. Você pode não ter filhos, mas já teve seis anos e sabe como o próximo domingo fica longe, como custa para chegar o dia de ir à praia.
Na sexta, chegando em casa, fim de tarde, um envelope alaranjado esperava embaixo da porta. Ele nem notou, claro, não esperava nada. Meu coração palpitou. Guardei as compras, limpei a área, fechei a porta, desliguei o celular. Nenhum intruso, visual ou sonoro, tinha o direito de macular aquele momento. Blasé, peguei o envelope e coloquei sobre a mesa. “Vem ver essa carta que chegou”, pedi. Antes de ver o próprio nome constante como destinatário, bateu o olho no logo, canto esquerdo do envelope. “Uma carta da Kellog´s?!”
Os olhos foram se arregalando e tive a impressão de ver as sinapses acelerando a cabecinha sempre tão veloz. “Abre, mamãe, me ajuda, será que mandaram a bolinha?”. Mantive a fleuma de não rasgar o papel. Alguns papéis devem ser guardados, como o envelope da primeira carta que se recebe. O brinde veio embrulhado em plástico, tal como devia vir na embalagem de Sucrilhos. Pôs a mão no peito, como acusando o coração disparado. “Ai, que emoção, nem acredito!”
O futebag é nada mais que uma bolinha de tecido, recheada com alguma coisa que podem ser pedrinhas, ou qualquer material que deixe o conjunto pesado. No ato, me lembrou aqueles saquinhos cheios de arroz que a vó Elza costurava para a gente jogar. Sabe como é? Uns saquinhos minúsculos, que o desafiante deve jogar um a um para cima, enquanto pega o outro, até encher a mão com todos eles.
Por coincidência, o futebag que veio tem a inscrição “1970” e três estrelinhas. O ano do tri, o meu ano. Nada mais que um saquinho. “Puxa, essa Kellog´s, hein?! Como foi legal! Agora, você tem que comprar Sucrilhos sempre!”
Antes que o coisa ruim passasse a mão sobre minha cabeça e me influenciasse a tecer comentários malévolos à empresa gringa – “safados, é assim que eles capturam seus clientes!!!” – a fada dos bons pensamentos me aconselhou. Foi um gesto simpático, nada mais que uma atitude gentil. Nada mais que um saquinho de pano. Só um sorriso, olhos arregalados, coração disparado, a primeira carta. Um gesto, tudo.

24 comments:

Anonymous said...

Nada merece,carece!

Jonny'O

Anonymous said...

Alessandra, pessoal, bom dia. Só pra elogiar a crônica, viu? Engenho e arte fazem isso, transportam a gente. Voce nos levou a todas, todos, para dentro de tua casa, estávamos abrindo o envelope com voces. Texto mais saboroso que os sucrilhos (hehehe). Prosseguindo na troca de dicas musicais: ouvindo agora Beautés Vulgaires, "Elle Était".

Zeca said...

Nossa Alessandra, sofri até o final pensando que a bolinha poderia não ter vindo!!!! Realmente, como a "servergonhice reina", acabamos desconfiando de tudo e esquecemos de perceber, quanto mais reconhecer, estas pequenas gentilezas.
Ouvindo agora Marisa Monte, "Gentiliza".
Tschüss, Zeca

Pedro Alexandre Sanches said...

sensacional, sensacional!

Anonymous said...

Gostei do título hehehehe

Anonymous said...

Tô com o Zeca, sofri achando que ninguém ia mandar uma bolinha. Ai meu Deus, até eu vou comprar sucrilhos agora!
Queria ver a cara do fofíssimo abrindo o envelope!
Nosso beijo pra vocês

Alessandra Alves said...

Jonny´O: não sei entendi seu comentário...

mauro: se consegui tal efeito teletransportador, não se acanhe, entre e fique à vontade. devo confessar que sou adicta de cereais matinais, mas prefito os sem açúcar.

zeca: meu amigo, mas se a bolinha não tivessem chegado o título do post não seria i love you, tony, concorda?! cara, eu sou simplesmente fissurada nessa música da marisa monte. aliás, vim ouvindo marisa monte hoje, aquele ótimo "verde anil amarelo cor de rosa e carvão".

pedro: oh, querido, obrigada, obrigada!

marcos: uma vez, escrevi uma coluna do gptotal com o seguinte título - "os homens da minha vida". falava, claro, dos meus pilotos preferidos. acredita que teve amigo meu abrindo, afoito, só porque achou que eu fazia inconfidências de caráter amoroso/sexual?!

Alessandra Alves said...

cy: compre corn flakes. vocês não podem abusar de açúcar!!!

Anonymous said...

Desculpe, acho que fui breve demais,no livro o heroi faz um comentario tipo,...qualquer coisa de bom ou ruim que nos acontece na vida ,não é por merecer algo,e sim por que é preciso ,bom ou ruim .
No caso ,seu esforço em buscar um sorriso em seu filho,...não merece ,carece!
Tentei ligar uma coisa com outra ,acabei atrapalhando,acho.

Jonny'O

Ricardo Ferreira said...

Comecei a ler recentemente o seu blog e considero uma grande descoberta que fiz. Você é, de fato, talentosíssima! Nesse último post, por exemplo, traduziu a beleza desse momento singelo que encantou, não sei se presumi corretamente, você e seu filho.
Resta-me agradecer pelo lindo texto! Portanto, obrigado.

Abraço e fique com Deus.

Zeca said...

Oi Alessandra! Realmente esta música é ótima. E acho que este disco que você citou ("verde anil...") é o melhor da Marisa Monte, principalmente aquela música "... e se tivéssemos a velocidade para ver tudo, assistiríamos tudo...". Já pensou assistir o pôr-do-sol em todos os lugares, no mesmo dia?? Uau! Sobre o título deixar claro que o final seria feliz, só posso dizer o seguinte: seus textos são tão bons, que mesmo sabendo o final nós nos pegamos transportados para a estória, tão entretidos que nos deixamos "enganar" um pouquinho! Schönes Wochenende (ótimo final de semana) prá todos!
Ouvindo Ná Ozzeti, "Adeus batucada!".
Zeca

Anonymous said...

que coisa mais linda! adorei ler isto!!

:D

um beijo!

Andréa said...

Que lindo, e morri de saudade do jogo dos saquinhos. Eu era boa nisso. Será que ainda sou?
70 também é o meu ano.
Beijo.

Anonymous said...

Ai, ai!!! Deixa eu ir me preparando para essas pequenas grandes coisas que a maternidade traz!!!
Maravilhoso mesmo o texto... Adorei!!!
Beijinhos.

Alessandra Alves said...

jonny´o: entendi agora a referência. acho que essa frase que você citou é uma daquelas nas quais o riobaldo faz referências à figura do compadre quelemém, o kardecista cujas teorias em parte o intrigam e muito o confortam.

ricardo: obrigada pelas palavras. sim, gabriel é meu filho. dei uma espiada rápida no seu blog. você é de vitória da conquista, certo? tenho muita curiosidade em conhecer um pouco mais sobre o interior da bahia. estive no seu estado no final do ano passado, mas apenas em salvador. e a bahia é muito mais que salvador, né?

zeca: mais uma vez, obrigada pelas palavras. sobre o CD da marisa monte, concordo com você. talvez seja o melhor dela e digo mais: acho que é um dos melhores discos da MPB na década de 90. muita gente boa ali reunida, na produção ou na autoria das músicas: além da própria mm, nando reis, carlinhos brown, arnaldo antunes, gilberto gil, paulinho da viola, laurie anderson. pena que, depois dessa fase, mm e nando reis se distanciaram e criaram, de certa forma, dois guetos independentes. mas isso é assunto mais para o pedro alexandre sanches que para mim...

a música que você citou é realmente ótima. quando o disco foi lançado e ouvi essa música pela primeira vez, sabe que me veio uma outra idéia bem maluca? já pensou se pudéssemos ficar suspensos no ar, a uma altura que nos permitisse ver a terra girar? ela giraria e a gente escolheria em que "ponto" queria descer, como um ônibus às avessas. em vez de você se movimentar em direção àquele ponto aonde quer chegar, esperaria que ele chegasse até você. viagem total!!!

falando de música: essa música que você estava ouvindo, com a ná ozetti, sempre me dá vontade de chorar. depois de ler a biografia da carmen miranda, então, é lágrima certa. lindíssima a voz da ná. conhece "ladeira da memória" com ela? hoje, vim para o trabalho escutando uma cantora que amo, adoro, venero e, desconfio, a joana também deve gostar: dinah washington. destaque para "i could write a book", rodgers & hart.

joana: obrigada!

andréa n.: eu nunca fui boa nos saquinhos! minha prima debora era a campeã. então você também é do ano do tri?! apesar do médici, bom ano aquele, hein?

flavinha: prepare-se, minha querida. a malu fará você mover mundos e fundos para conseguir as coisas mais bestas do mundo. e você ficará feliz por isso! falta pouco!!!

Anonymous said...

Eu tive a mesma sensação do colega aí em cima.... Eu só tive certeza que ganhou a bolinha quando abriu o pacote! ehehe! Assim tive a sensação que ganhei também, com direito a olhos arregalados e coração disparado. As vezes é bom ser inocente.

Eu não gosto quando fazem isso no Domingo Legal, ou coisa assim, pra mostrar pra todo mundo como são bonzinhos. É meio cruel... Mas o carater individual humaniza as coisas.

Anonymous said...

Se vc tivesse postado antes... Minha mãe tá com mania de sucrilhos agora (ela acha q vai engordar comendo isso), e no último tinha a tal bolinha. tá rolando lá em casa.

Zeca said...

Alessandra, lhe confesso que não sou mais um grande fã da mm. eu adoro o disco ao vivo, o +, o "verde anil...". Adorei também a produção dela no disco "todo azul", da velha guarda da portela. Não gostei muito do "memórias, crônicas...", porém adorei a versão dela de "para ver as meninas", do paulinho da viola. simplesmente maravilhosa, com um arranjo primoroso. olha, e você sabe que eu ainda não ouvi os dois últimos discos? vou ouvir prá ver se mudo de idéia, de repente começo a acompanhá-la mais de perto novamente.
puxa, realmente seria incrível fazer esta "viagem" que você imaginou. isto me fez lembrar do castelo rá-tim-bum. eles giravam um globo terrestre e apontavam um ponto com o dedo, parando em algum país. daí eles viam e ouviam algo sobre a cultura, folclore ou história deste país (ou será que ouviam alguma música?!). acho que esta é uma mini-versão da sua "viagem"! :-)

Zeca said...

(continuando) eu também adoro a ná ozetti e a turma que "anda junto" com ela (dante ozetti, caíto marcondes, fábio tagliaferri etc.). o dante, irmão dela, faz arranjos incríveis. você já assitiu um show dela? diversão garantida, sem dinheiro de volta. os caras são músicos com M maiúsculo.
sobre a dinah washington, você já assistiu "as pontes de madison"? o filme é ótimo, a trilha sonora é incrível e tem 3 músicas com ela (i'll close my eyes, blue gardenia, soft winds). maravilha!
bom, chega... já falei demais! desculpe o exagero!
ouvindo agora "sem você", com paula morelenbaum, jacques morelenbaum e riuchi sakamoto (no cd "casa", gravado no estúdio da casa do tom jobim no jardim botânico, rj). Um trechinho: "...você é o que resiste, ao desespero e a solidão, nada existe, o tempo é triste, sem você...).

André Gonçalves said...

alessandra, você é ótima.

André Gonçalves said...

esqueci.
no meu blog temum texto sobre cartas.
coincidências.

Alessandra Alves said...

zeca: sabe outra coisa da MM que eu adoro? aquela música que ela canta com o Erasmo, acho que chama "alguém na multidão". eu também gosto muito desse pessoal da vanguarda paulistana. adorava itamar assumpção! com o rumo, você conhece "ladeira da memória"? adoro essa também.

não vi o filme que você citou, mas com essa referência, assim que der vou assistir.

andré: obrigada! entrei nos seus blogs. puxa, cartas... felizmente, recebi muitas na vida, mas há muito tempo. lembrei de "nunca te vi, sempre te amei", que filme lindo...

Anonymous said...

"mulher, teu nome é mãe." sei não, acho que essa frase foi atribuída a jesus cristo ou algum dos personagens da parte de sua história narrada nos evangelhos. alessandra, que lindo retrato de tão singelo, delicado e importante momento da vida de um menino. de emocionar. show!!!

Zeca said...

Não conheço esta música (ladeira da memória), vou ter que procurá-la agora!
Sobre o filme, é maravilhoso! Estória de amor de abalar qualquer coração. Direção do Clint Stewood, em que ele também atua ao lado da Meryl Streep. By the way, eles fazem o par romântico! Assista que vai entrar na lista dos seus filmes inesquecíveis.