Entregador de leite, arrumador de pinos de boliche, despertador
humano, cortador de gelo, acendedor de lampiões. Isso para ficar apenas em
profissões, sem contar os carregadores de liteira e as amas de leite, que eram
funções de escravos. A humanidade sempre assistiu à incorporação e ao
desaparecimento de profissões, como sinais dos tempos.
Quando a Liberty, empresa que controla a Fórmula 1
atualmente, informou que estudava a ideia de eliminar as “grid girls” das
corridas, a grita já começou. Nesta semana, a mudança foi anunciada: nada de
mulheres gostosas segurando placas com os números dos pilotos.
Não foram poucos os comentários sobre o fim de uma profissão
“que não tem mal nenhum em ser exercida”. Concordo. Como não havia mal nenhum
em empregar garotos para levantar pinos de boliche ou submeter trabalhadores ao
sacrifício de cortar gelo. Só que a humanidade se transforma, e não serei tola
em usar a palavra “evolui”. Foram aspectos como o desenvolvimento industrial,
com a automação, por exemplo, que eliminaram esses postos de trabalho.
O garoto pobre que levantava pinos de boliche para os
burguesinhos se divertirem nas noites de sábado certamente saiu chutando pedra,
chateado e desgostoso, quando perdeu seu emprego. E foi fazer outra coisa,
simplesmente porque aquela função já não fazia sentido em uma sociedade
industrial.
Eu adoraria pensar que a decisão da Liberty atende ao anseio
de uma parte cada vez maior de mulheres que não deseja ser um objeto de
decoração em um ambiente badalado, carregado de testosterona. Mas talvez o atendimento
desse desejo tenha acontecido por uma via bem tortuosa.
Quando assumiu a Fórmula 1, a Liberty realizou uma pesquisade mercado junto ao seu público, para mapear quem anda assistindo às provas de
Fórmula 1 e descobriu um público potencial considerável para aumentar sua lista
de fãs do esporte – as mulheres.
Além de conquistar o público feminino que ainda não se
interessa pelas corridas, a empresa percebeu que já estava, na órbita da
Fórmula 1, um contingente de mulheres que já assistiam às provas. Faziam isso
para acompanhar companheiros fanáticos pelas corridas, não amavam nem odiavam o
esporte, mas também não se sentiam atraídas por ele. Não se sentiam
representadas em um ambiente no qual as mulheres ocupavam espaço de figura
decorativa.
É com olho nesse público potencial que a Fórmula 1 está. (Da
mesma forma que quer cativar as companheiras, a Liberty também está empenhada
em trazer os filhos desses fãs da categoria, porque a tal pesquisa apontou que
a idade média dos fanáticos por corridas ultrapassava os 40 anos, ou seja, F1
em geral se tornou esporte de tiozinho.)
Em um tempo no qual as discussões sobre empoderamento
feminino ganham repercussão, alinhar-se ao tema já é, por si só, uma forma de
fazer barulho e, no mínimo, atrair a atenção do público que almeja. Tem muito
menos feminismo e muito mais interesse de mercado na decisão da Liberty.
Mas é alentador saber que, como amas de leite ou
levantadores de pinos de boliche, as “grid girls” ficaram para a história.