Capa do novo álbum da cantora |
Quando se anunciou que Maria Rita estava preparando seu novo
disco e que ele teria apenas sambas, era natural que se pensasse que estava a
caminho um “Samba meu” número 2. Gravado em 2007, “Samba meu” foi uma guinada
corajosa da cantora em seu terceiro álbum de estúdio. Nascida na MPB e logo
alçada à condição de uma das principais cantoras do gênero, Maria Rita rasgou o
rótulo. Concebeu um disco e um show inteiramente ambientados no universo do
samba. Foi um grande sucesso, levado a várias cidades brasileiras em espetáculo
grandioso, mostrando uma cantora com personalidade cada vez mais marcante e uma
mulher a cada dia mais segura, sensual e bonita. À época, escrevi sobre “Samba
meu” neste mesmo blog.
A aventura de Maria Rita no samba não havia começado ali.
“Cara valente”, do primeiro álbum, já flertava com o gênero. Em “Segundo”, seu
disco de 2007, “Recado” e “Conta outra” assinalavam a presença do gênero
entre canções de MPB. Tudo, ainda, em um universo fortemente jazzístico,
ancorado no trio teclado-contrabaixo-bateria que acompanhou a cantora em seus
primeiros trabalhos. “Samba meu” pôs o pé no terreiro, mergulhou em pandeiros,
tamborins e cuícas. Era um disco de samba e ponto. E, de fato, o samba nunca saiu do
repertório da cantora. No disco seguinte, “Elo”, as presenças de “Coração a
batucar” e “Coração em desalinho” preenchiam a cota de samba e, no trabalho
seguinte, “Redescobrir”, uma profusão de canções do gênero: “Saudosa maloca”,
“Ladeira da Preguiça”, “Vou deitar e rolar”. No ano passado, ao participar do
Rock’n’Rio, a abusada escolheu um repertório baseado todo em músicas (sambas!)
de Gonzaguinha. No Rock’n’Rio, sim senhora! Rotule-me se for capaz...
Não seria, portanto, nada estranho que Maria Rita gravasse
um novo disco de sambas, mas a primeira audição já mostrava que “Coração a
batucar” não era um “Samba meu” número 2. O segundo disco só com sambas da
cantora não é mais do mesmo, por várias razões, e todas convergem para ela
mesma.
Antes, há que se entender a razão pela qual Maria Rita
decidiu gravar mais um disco inteiramente dedicado ao samba. Evidentemente,
porque ela gosta de samba e, diacho!, a gente costuma fazer melhor aquilo que
faz com prazer. Maria Rita tornou-se membro de comunidades de samba de relevo,
como o bloco Bola Preta, no Rio, e a escola de samba Vai-Vai, em São Paulo. Mas
há uma razão secundária que me parece bastante plausível, embora fruto só da
minha percepção: Maria Rita carrega a bandeira do samba para dentro da MPB,
como uma espécie de missão.
Em décadas passadas, importantes nomes da MPB baseavam suas
carreiras em sambas ou incluíam sambas regularmente em seus repertórios: Chico
Buarque, Paulinho da Viola, Clara Nunes, Beth Carvalho, Caetano Veloso, Maria
Bethânia e, claro, Elis Regina. Hoje, escasseiam artistas fazendo essa ponte.
Marisa Monte gravou um belo disco de sambas há alguns anos, mas, de forma
geral, a fronteira entre MPB e samba hoje parece mais sólida. Ouça uma rádio dedicada à MPB contemporânea e tente
ouvir um samba. Vai ser difícil. Com Maria Rita empunhando essa bandeira, é
possível ouvir Arlindo Cruz ou Zeca Pagodinho nesse ambiente. Ela sabe que tem
essa influência, que eu tenho quase certeza ser compreendida por ela como
responsabilidade.
“Coração a batucar” é o trabalho de uma artista madura, a
começar pelo fato de ter produção e direção musical da própria Maria Rita. Falando
em responsabilidade, não é desprezível a opção por acumular estas funções à de
cantora. Não que fosse pouco “apenas” cantar, mas Maria Rita quis mais e
produziu um disco que não é mera compilação de músicas, é um conceito exposto
em treze canções, uma história contada, com começo, meio e fim. Esta é uma das
razões pelas quais “Coração a batucar” não é “mais um disco de samba” da
cantora. Mas há outra, mais importante e evidente para quem escuta o CD já na
primeira vez: a voz. Maria Rita nunca cantou tão bem, e com tanta
personalidade, e com tanta coragem.
Quem me conhece há mais tempo sabe que sou comentarista de
Fórmula 1. Ao escutar “Coração a batucar” pela primeira vez, por vezes eu me
enxerguei à frente de Lewis Hamilton, ou de Fernando Alonso, ou de Sebastian
Vettel ou, em um rasgo de nostalgia, de Ayrton Senna ou de Gilles Villeneuve.
Cada vez que Maria Rita embalava em uma frase musical que, por lógica,
terminaria em um agudo improvável, eu sentia o mesmo arrepio de quando um
desses pilotos indomáveis armava o bote para fazer uma ultrapassagem por demais
arriscada. Passa de coragem, é destemor quase irresponsável, é quase ação
suicida. Não é possível, ela não vai alcançar. Não pode ser, ele vai bater. Um
arrepio de mãe vendo o rebento equilibrar-se na bicicleta pela primeira vez.
Mas ela alcançou, fácil, e várias vezes, e meu sorriso foi como o de ver
Hamilton defender-se de um ataque feroz do companheiro Nico Rosberg no último
GP do Bahrein. Sorriso de gol de bicicleta, sorriso de ver e ouvir a beleza
materializada em um CD que ganhei de presente. Deve ter custado uns R$ 25,00.
Custasse R$ 250,00, era barato.
Maria Rita na Fundição Progresso (RJ) - foto de Wesley Mesquita |
O CD abre com “Meu samba, sim senhor”, cartão de visita
ideal de quem se anuncia “mais uma vez, aqui estou”. E vai sambando miudinho,
crescendo na intensidade instrumental e vocal, nas faixas seguintes. O primeiro
desses mergulhos no ar – sem cama elástica por baixo – a me chamar atenção foi
em “No meio do salão”, música que poderia muito bem ser a versão fêmea ferida
de “Sem compromisso”, clássico de Geraldo Pereira eternizado na voz de Chico
Buarque. Ele diz “você só dança com ele e diz que é sem compromisso (...) quem
trouxe você fui eu, não faça papel de louca, pra não haver bate-boca dentro do
salão”. Ela reclama “eu te trouxe pro samba, para comigo dançar, como se
atreve, dançar com outra pra quê?”. A ira da mulher traída manifesta-se com o
drama que merece quando a cantora disfere “quer me fazer de palhaça, eu já não quero nem graça, da
próxima vez e outra vez eu não quero falar...” em uma modulação extraordinária,
desembocando em um agudo magnífico.
A
história vai ficando densa e séria, como se a brejeira cantora da faixa de
abertura fosse mergulhando no universo desse samba que não é só alegria e
celebração, mas veículo para também transportar dores de amores e outros
dissabores desta vida, ao chegar à décima faixa, “Rumo ao infinito”, canção de
Arlindo Cruz escolhida como música de trabalho do CD. Arlindo parece ser o
compositor preferido de Maria Rita nesse gênero, e, se é mesmo, não é por
acaso. São três as composições dele no álbum. Provavelmente, as mais belas.
Escutei “Rumo ao Infinito” como se fosse também uma resposta, um diálogo com outra
canção do mesmo autor, “Trajetória”, gravada em “Samba meu”. Nesta, um ser
apaixonado e desiludido anuncia sua partida, após perceber-se desprezado.
“Agora queira dar licença que eu já vou, deixa assim, por favor...”. Mais íntegro
e sereno, o par parece responder, em “Rumo ao Infinito”: “vem cá, me dê um
abraço, isso é coisa de momento, eu sei que vai passar”. Tudo perfeito: vocal,
arranjo, música e letra encaixadinhas. Que grande clássico Maria Rita perpetrou
nesse trabalho...
E
emenda com outra de Arlindo Cruz, “Mainha me ensinou”, e quem disse que não
pensa em Elis Regina ao ouvir esta canção é mentiroso ou muito distraído.
Mainha ensinou Maria Rita e todas as outras cantoras que vieram depois dela
como é que se faz. Ninguém aprendeu mais que a filha, geneticamente
aparelhada para fazer isso melhor que ninguém. A música não descreve uma mãe
cantora ensinando o ofício à filha. Mostra uma mãe sábia ensinando a cria a ser
um ser humano por inteiro, a ser gente. Depois de ter cantado o repertório de
Elis Regina e de ser laureada por público e crítica por isso, Maria Rita hoje
não tem medo de nenhum grave, nenhum agudo, nenhum desafio profissional
parece-lhe mais arriscado. E, primeira cereja do bolo, emenda “Mainha me
ensinou” com uma música da compositora Joyce, "No mistério do samba", a mesma de “Essa mulher”, tida
como uma das canções eternizadas por Elis que mais expressam a percepção da
própria Maria Rita com sua vida e sua escolha por ser cantora.
Nesta
altura, o clima do álbum já é de pura celebração e homenagem ao samba. Nada
mais apropriado que encerrá-lo com “É corpo, é alma, é religião”, do mesmo
Arlindo. Espécie de testamento da própria cantora, a letra começa dizendo: "eu não nasci no samba, mas o samba nasceu em mim", e se desenvolve em grande apoteose carnavalesca, encerrando um extraordinário novo trabalho de Maria Rita. Extraordinário, não: "Coração a batucar" é o melhor disco já gravado por Maria Rita. Arranjou pra cabeça, cantora... É óbvio que mal podemos esperar pelo próximo.