Sunday, December 31, 2006

Feliz 2007!

Amigos deste despretensioso blog,

Aproveito este último dia do ano para agradecer pela companhia ao longo deste 2006. Como a estréia do blog foi no início de 2006, tivemos praticamente um ano inteiro de convivência. É puro prazer e diletantismo escrever e debater neste blog, para todos aqui, o que me leva a concluir que há mais gente como eu, interessada em troca de experiências e conversas sem vínculo profissional ou caráter financeiro de qualquer natureza. E isso é muito alentador para mim.

Na terça, dia 2, volto com o relato da São Silvestre, agradecendo desde já pelo entusiasmo e pelas manifestações de boa sorte. Prometo contar tudo depois.

Desejo um excelente 2007 para todos e espero continuar com a companhia de vocês.

Por fim, encerro as postagens de 2006 com uma homenagem à aniversariante do dia, Rita Lee, 59 anos hoje.

Thursday, December 28, 2006

A segunda morte do LP




Era começo de 1985 e eu estava ouvindo o “Programa do Zuza”, pela rádio Jovem Pan AM. O crítico musical, pesquisador, jornalista e escritor Zuza Homem de Mello é uma figura fundamental na minha vida e um dia ainda volto a esse tema. Às quartas-feiras, Zuza transformava o programa em um “Dia do Ouvinte”, respondendo cartas e tocando músicas pedidas pela audiência. Naquele dia, Zuza comentou uma carta que abordava o tema do CD. Eu nunca tinha ouvido falar naquilo e me espantei com o prognóstico do apresentador, que estimava em mais cinco anos o período necessário para o CD superar o formato LP.

Na mosca. No começo da década de 90, o CD já dominava amplamente o mercado. Recebi aquela previsão do meu mestre Zuza com certa apreensão: eu já tinha uma considerável coleção de discos de vinil e não pensava em me apartar dela. Com o toque visionário dos aquarianos, ou com a inquietude típica dos ansiosos, localizei meu temor em algo aparentemente fútil – haverá toca-discos de vinil no futuro? Manterei meus LPs para sempre, mas terei onde ouvi-los?

Esta primeira morte do LP representou basicamente uma mudança de formato e de equipamentos necessários para escutar música. Trouxe vantagens, claro, como a menor fragilidade dos CDs em relação aos velhos bolachões, fora a redução de espaço necessário para armazená-los. Mas o cerne da questão – o ato de criação artística – permaneceu inalterado. Antes, o artista reunia repertório para gravar um LP e continuou fazendo o mesmo para gravar um CD.

O produto disco – LP ou CD – nasceu de uma sacada mercadológica, uma artimanha da indústria do disco para otimizar seus recursos. Antes do formato LP, o artista criava suas músicas sob o signo da inspiração, eventualmente respeitando a sazonalidade – músicas para o Carnaval, para as Festas Juninas, para o Natal – ou atendendo a pedidos de intérpretes. Os compositores de outrora não se preocupavam em criar um lote de 12, 13, 14 músicas para formar um LP. Não existia LP.

As gravadoras perceberam a vantagem de encapsular o trabalho do artista em um produto maior que os antigos compactos. É fácil entender: antes, cada vez que Carmen Miranda ou Orlando Silva entrava em um estúdio para gravar duas músicas, prensadas a toque de caixa e distribuídas em seguida, mobilizava-se uma estrutura relativamente grande, que incluía conjunto, orquestra, técnicos etc. Ao criar o formato LP, as gravadoras continuavam dispondo da mesma estrutura, mas para lançar no mercado, de uma só vez, um número bem maior de composições. E, claro, podiam cobrar bem mais por um produto com uma dúzia de músicas do que o faziam por um single.

As gerações de artistas que se sucederam, após o advento do LP, já chegaram ao mercado sob a concepção desse formato. O que não quer dizer que todos, sempre, tiveram facilidade em reunir um número mínimo de composições para formar um LP. Afinal, o processo de criação não é produção industrial, depende de inspiração e transpiração. Diante da exigência contratual de lançar um disco novo a cada ano, muitos bons artistas lançaram mão de regravar composições do passado ou de outros compositores, ou simplesmente de encaixar “qualquer coisa” para completar lado A e lado B de seus bolachões.

Essa dinâmica mantém-se praticamente a mesma com o surgimento do CD. Não tem mais lado A ou lado B, mas continua a necessidade de se preencherem 12, 13, 14 músicas no disquinho. A grande ruptura desse modus operandi parece estar sendo estabelecida pelo ambiente musical virtual. O ato de baixar músicas da internet, trocar arquivos de mp3, “queimar” CDs apenas com as músicas preferidas reverte de uma vez por todas o formato encapsulado que as gravadoras venderam por mais de meio século. A música, criação única e com fim em si mesmo, ganha a liberdade de ser ela mesma, não a faixa 2 do disco tal. É, de certa forma, uma retomada do processo de divulgação pré-Segunda Guerra.

É, sem dúvida, uma terrível fonte de dor de cabeça para as gravadoras, que em breve já não terão na pirataria seu alvo preferencial de vilania. A internet e outros veículos, como o celular, estão institucionalizando o livre acesso à música e as gravadoras talvez estejam percebendo que perderam a grande oportunidade de mudar sua forma de ganhar dinheiro, quando esnobaram o ambiente virtual há alguns anos. Esse movimento paralelo talvez explique alguns fenômenos aparentemente contraditórios, como o que está acontecendo no Brasil atualmente, com registro de queda na venda de CDs, paralelo ao aumento da arrecadação de direitos autorais. Será que a indústria do disco perdeu mesmo o bonde da história?

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Em que pese o LP ter sido um produto vantajoso para as gravadoras, não se pode tirar o mérito de artistas que criaram sob esse formato. A música popular está repleta de intérpretes e compositores que souberam fazer de cada LP uma obra com conceito, personalidade, começo, meio e fim. The Beatles, por exemplo. Especialmente a partir de Rubber Soul, os LPs do grupo passaram a ser fortemente conceituais, concebidos a partir de uma temática ou de uma sonoridade muito próprias. Rubber Soul é diferente de Revolver, que é completamente diferente de Sgt. Peppers, que é absolutamente diferente do álbum branco, que não tem nada a ver com Abbey Road etc.

No Brasil, Elis Regina – especialmente em sua fase de parceria com César Camargo Mariano – produziu sob esse mesmo foco. Os dois concebiam cada LP de uma forma semelhante, no processo de criação. Partiam de um ou dois compositores (ou dupla de compositores) e tinham ali a espinha dorsal do disco. Completavam o repertório com obras que falavam a mesma língua dessa base, ou que a complementassem de algum modo. Gravavam todo o LP com a mesma formação de músicos, seguindo arranjos que se harmonizavam entre si, priorizando a mesma sonoridade. Ao fim, nascia um LP literalmente redondo, com uma cara própria, diferente do anterior e do seguinte. A concepção artística de Elis e César Mariano era completa. Disco e espetáculo eram praticamente uma única obra. “Falso Brilhante”, “Transversal do Tempo” e “Saudade do Brasil” são LPs nascidos a partir de shows. Em outras ocasiões, o LP produzido rendeu em seguida o espetáculo.



Ouvir, por exemplo, “Saudade do Brasil”, vinte e seis anos após sua criação, é absorver uma obra completa. Contexto: o Brasil da abertura, a esperança de dias melhores, o sonho do fim da ditadura militar. O show (e o disco) abre com um pout-pourri de sucessos de Elis nos anos 60 – tempos em que ela era representante de primeira linha de uma música engajada, politizada, pós-Bossa Nova. Não por acaso, essa introdução termina com os sugestivos versos de “Terra de Ninguém”: “(...) mas, o dia vai chegar, que o mundo vai saber, não se vive sem se dar/ quem trabalha é que tem direito de viver, pois a terra é de ninguém.” Dada a senha para se falar abertamente do país.

Todas as músicas do disco falam de um Brasil tenso, pronto e ansioso para viver sua liberdade. A sugestão nada velada de reforma agrária da introdução vai se espalhando pelas demais letras. Da aparentemente inofensiva “Agora tá” (Tunai e Sergio Natureza): “Já que ta aí, pela metade mas tá, melhor cuidar, pra peteca não cair(...)”. Da realista “O primeiro jornal” (Sueli Costa e Abel Silva): “(...) para que saias com alguma alegria bem normal/ que dure pelo menos até você comprar e ler/ o primeiro jornal.” Da debochada “Alô, alô marciano” (Rita Lee e Roberto de Carvalho): “A crise tá virando zona, Cada um por si, todo mundo na lona (...), A coisa tá ficando ruça, Muita patrulha, muita bagunça, o muro começou a pixar(...)”. Da melancólica “Maria Maria” (Milton Nascimento e Fernando Brant): “(...) uma gente que ri quando deve chorar e não vive, apenas agüenta.” Da auto-confessional “Aos nossos filhos” (Ivan Lins e Vitor Martins): “(...) perdoem por tantos perigos, perdoem a falta de amigos, os dias eram assim (...)”. Da seqüência violenta de “Onze fitas” (Fátima Guedes) e “Menino” (Milton e Brant, novamente). A primeira diz: “Por engano, vingança ou cortesia/ Tava lá morto e posto um desregrado(...)”. A segunda arremata: “Quem cala sobre teu corpo/ Consente na tua morte(...)”.

O disco/show vai se encaminhando para um final de esperança, criando um Brasil idílico e que acredita no futuro. Surgem as paisagens tropicais e hedonistas de “Marambaia”, carimba-se o passaporte de volta com “Sabiá” (Tom e Chico), reafirma-se o otimismo algo culpado de Gonzaguinha em “Mundo Novo, Vida Nova” e se reforça com “O que foi feito deverá”, com a inequívoca esperança renovada dos versos: “Falo por acreditar que é cobrando o que fomos/ Que nós iremos crescer/ Outros outubros virão/ Outras manhãs plenas de sol e de luz.” Termina com outra de Gonzaguinha, a francamente otimista "Redescobrir": "(...) entender que tudo é nosso, sempre esteve em nós, somos a semente, ato, mente e voz/ não tenha medo, meu menino povo, tudo principia na própria pessoa, vai como a criança que não teme o tempo(...)".

Lançado originalmente em dois LPs, “Saudade do Brasil” foi lançado em CD duplo reunindo toda a íntegra do show. Nos dias de hoje, é certamente possível baixar só algumas dessas músicas, pinçando-as ao gosto pessoal. O que não é ruim, viva a liberdade. Mas que esfacela uma obra íntegra, uma história, um conceito. Felizmente, a criação artística não se engessa nos formatos e, neste instante, os criadores do século 21 já estão aprendendo a lidar com as muitas possibilidades do ambiente virtual.

Monday, December 18, 2006

Mutante



Conheci Dinho Leme há cerca de quinze anos, quando eu trabalhava na editoria de Esporte da Folha de S. Paulo e ele era assessor de imprensa de alguns pilotos, entre eles, Rubens Barrichello. Assim que recebi os primeiros releases assinados por ele, perguntei a meu então editor, Flavio Gomes, se aquele Dinho Leme por acaso era o baterista dos Mutantes. “Ele mesmo, é irmão do Reginaldo.” Então conheci o Dinho pessoalmente, passei a cruzar com ele nas corridas, viramos chapas. Dinho trabalhava com Fátima Paiva, outra habitué dos autódromos. Uma noite, saímos para bater papo, eu, Luiz Alberto Pandini, então repórter do Jornal da Tarde, Dinho e Fátima, e só então, alguns meses depois de conhecê-lo, tive coragem de levar um vinil dos Mutantes para que ele autografasse. Era estranho fazer isso, não exatamente por constrangimento, mas porque eu não conseguia ver o Dinho como um Mutante, mas como um assessor de imprensa amigo, companheiro de pistas e salas de imprensa. “Mutantes e seus Cometas no País dos Baurets” ganhou a assinatura do baterista em uma das mesas do Ritz, barzinho bacana dos Jardins, em São Paulo. Ta lá na contracapa: “vinte anos depois, que barato”.

Trinta e cinco anos depois, um barato em meio. Dinho Leme está de volta aos Mutantes. Ou melhor, os Mutantes estão de volta. Em um dos primeiros posts deste blog, saudei a volta dos Mutantes às prateleiras, com seus CDs originais remasterizados. Poucos meses depois, os “velhos” resolveram se juntar de verdade, reeditando a formação quase original, para um show em Londres. Dinho acumulou as funções de assessor de imprensa com as de artista pé na estrada. Depois da Inglaterra, os Estados Unidos. E eu na fila para vê-lo pessoalmente, depois de quase dois anos de nosso último encontro. E finalmente aconteceu na última quarta-feira, em um almoço de quatro horas e exatas quatro garrafas de vinho. Reeditamos o encontro do Ritz, desta vez no Café Journal e acrescido da companhia de outro querido amigo, o também jornalista Luiz Fernando Ramos, o Ico, que como eu não tem idade para ter visto os Mutantes originais, mas com a sorte de ter presenciado a volta histórica do grupo em Londres. No dia seguinte, comentei com o Ico como essa conversa com o Dinho Leme baterista dos Mutantes foi diferente de todas as que tive com ele antes. Ico registrou o mesmo estranhamento no show do Barbican. Não parecia o Dinho que a gente conhece, era outro. Em suma, um mutante.


Algumas passagens deste almoço recente estão relatadas a seguir. A conversa não foi gravada, mas Dinho entendeu meu interesse de amiga jornalista e me brindou com histórias e reminiscências. Foi um daqueles encontros inesquecíveis e justamente por misturar tantos fatos e emoções, não relato com o viés frio de repórter que só observa. Sente-se, encha o copo e deixe o som rolar.

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Não pergunte datas para Dinho Leme. É mais fácil que um fã saiba precisar a ordem dos discos gravados pelos Mutantes, os anos das apresentações nos festivais do que esperar do baterista do grupo qualquer exatidão do gênero. Isso costuma acontecer também com os atletas e tem uma explicação lógica: para o fã, aquela apresentação, aquele jogo xis é um marco histórico; para o artista, ou o atleta, é como um dia a mais de trabalho. Você não se lembra de todos os seus dias no escritório, lembra? Então, não se meta a achar que o artista tem de lembrar.

Mas ele é capaz de lembrar a gênese de seu interesse por música. O pai. Tocava uma gaita complicadíssima em Rancharia, interior de São Paulo, onde Dinho, nascido em Campo Grande, cresceu. Menino, Dinho ouvia o pai tirar standards consagrados pela orquestra de Glen Miller em sua gaita. E ouvia discos do mesmo estilo em casa. A influência do pai se manifestou no primeiro instrumento escolhido, um de sopro – trompete. “Eu comia goiaba verde para ajudar a calejar o lábio.” Os primeiros discos comprados por conta própria eram sucessos da parada. Um, em especial, foi mais marcante – Earl Grant.

A afinidade com a bateria começou, veja só, com a Bossa Nova. Bateria tocada com escovinha, logo despontando os primeiros ídolos – Rubinho, do Zimbo Trio, e o carioca Edison Machado. Um salto no tempo. Final dos anos 60, começo dos 70, sei lá, Dinho não se liga em datas, lembra? A Rede Globo convida bateristas de várias idades e estilos diferentes para um especial.

O baterista dos Mutantes chega para a gravação e dá de cara com Edison Machado. A emoção de tocar com o ídolo logo perdeu terreno para a preocupação. Edison não estava bem, parecia alterado, não tocou legal. Acabado o programa, cada um para um lado, e Edison lá, meio caído, meio esquecido, bem mal. Dinho colocou-o no carro, cruzou o Rio de Janeiro de algum ponto longínquo da Zona Oeste, local da gravação, até a casa do velho mestre, na Zona Sul. Literalmente, carregou-o até chegar ao apartamento, deixou-o deitado e foi embora, ainda duvidando que tinha levado nos ombros Edison Machado, seu ídolo.

Outro salto no tempo. Dinho e o pai, litoral norte de São Paulo. Um mercadinho para abastecer a casa da praia. O vendeiro vai embrulhando mercadorias com jornais velhos e Dinho se vê diante de uma notícia bruta, ali no balcão. Morre Edison Machado. “Voltei com meu pai para Paúba, ele ia falando no carro, não consegui prestar atenção. Só lembrava no Edison Machado morto, e do dia que carreguei o cara até sua casa.”

Mas então, peraí, como foi que um admirador de Bossa Nova se tornou baterista do grupo de rock mais famoso da história do Brasil? Ah, mas aí vieram os bailes, e os Beatles. Antes de vir para São Paulo, Dinho começou a tocar em bailes no interior, já devidamente acomodado no fundo do palco, porque a história do trompete, nem com muita goiaba verde, foi para frente. E em baile, a gente sabe, toca-se de tudo. Quando chegou à capital, Dinho já tinha larga experiência em um repertório variado, por isso acabou escalado para acompanhar Ronnie Von, o “príncipe” daqueles anos 60 da TV Record. A ponte foi direta e curta: Ronnie foi quem “inventou” o nome Mutantes, inspirado em um livro de ficção científica que estava lendo na época e que ele achou bem interessante para o trio formado pelos dois irmãos Batista e por Rita Lee. Dinho não foi imediatamente incorporado ao grupo, tanto que não tocou na histórica apresentação dos Mutantes junto com Gilberto Gil, no III Festival da Record, com “Domingo no Parque”. Logo depois, no entanto, virou um mutante.

A volta dos Mutantes, apesar de festejada pelo público e badalada pela mídia, tem criado situações complicadas para Dinho, Arnaldo e Sergio. Porque falar da volta dos Mutantes passa forçosamente pelo fim dos Mutantes, pela saída de Rita Lee do grupo, pelas feridas abertas por tudo isso. Passa pelas recentes declarações desagradáveis de Rita Lee em relação ao revival, e remonta às tentativas anteriores, que não deram certo. Uma delas, inclusive, capitaneada pela própria Rita, que um dia ligou para Dinho, ficou cinqüenta minutos no telefone falando do projeto, que não rolou.

Dinho não se recusa a falar do tema, mas diz que, mais de trinta anos depois, de fato não sabe bem o que aconteceu. Rita passou anos dizendo que tinha sido expulsa dos Mutantes. Os Mutantes sempre negaram. Até que um dia, no presente vivíssimo dessa volta, Arnaldo disse que falou mesmo para ela sair, pegando Dinho e Sergio no contrapé durante uma das muitas entrevistas concedidas na época do lançamento do DVD. “Acho que foi briga de marido e mulher, apimentada por executivo de gravadora que já queria lançar a Rita como artista solo, e porque o grupo, uma hora, ia mesmo acabar.”

Acabou e acabou mesmo para Dinho. Ele ainda tocou em algumas produções, começou a virar produtor de eventos, lançou um jornal sobre automobilismo, tornou-se assessor de imprensa e nunca, nunca, nunca mais tocou bateria. A filha Joana, de 25 anos, nunca tinha visto Dinho tocar. Na trepidante volta dos Mutantes, a Câmara dos Vereadores de São Paulo, por iniciativa do vereador Carlos Giannazi, do Psol, homenageou Arnaldo, Sergio e Dinho pela relevância artística e histórica do grupo. O público foi tanto que uma sala não bastou para acomodar a multidão de seguidores. Fãs de outrora reverenciavam o trio, devidamente engravatado para a ocasião solene, enquanto uma concentração expressiva de jovens se aglomerava para conhecer os gurus ao vivo.

Sergio, o maior porta-voz do grupo e, no fundo, o curador da obra dos Mutantes, diz e repete que foi a concordância de Dinho Leme a responsável pela volta do grupo. Nas primeiras conversas, ainda reticente, Dinho alegava o longo afastamento da música como razão para continuar distante. Mas Sergio insistiu e chamou Dinho para tocar em sua casa, na Granja Viana (grande São Paulo). Na primeira vez, Dinho foi, achou legal, mas não quis tocar. “Por quê?” Sei lá, nada a ver. Voltou lá algumas vezes e resolveu encarar. “Tudo bem, eu topo, mas não sei até onde vou, vamos ver.” Sergio literalmente diz: “Quando o Dinho topou, eu senti que os Mutantes tinham voltado.”

Dinho não sabe explicar porque desta vez deu certo, e não das outras. “Mágica, agora tinha que ser, algo assim.” O assessor de imprensa voltou a praticar bateria. Com fones de ouvido, gasta horas estudando os arranjos, reinventando o fraseado da bateria, reconstituindo algumas coisas, criando outras. A bateria está no escritório, o mesmo de onde atende seus clientes pilotos, faz a assessoria de imprensa da Fórmula Truck e onde funciona a redação do anuário AutoMotor, que ele edita com o irmão Reginaldo Leme.

Joana nunca tinha visto o pai tocar, viu no mesmo dia da homenagem na Câmara dos Vereadores. Seu filho Tiê, de dois anos, gostou do brinquedo novo do avô. Subiu no banquinho e desceu o braço, com um estilo heavy metal que ninguém sabe de onde veio. Genes adormecidos, talvez.

Sunday, December 10, 2006

A lata

Eu li a notícia hoje, cara. Um navio cargueiro foi interceptado pela Marinha Mercante do Rio. Estava cheio de bagulho no barco, velho, da melhor qualidade. Parece que era da Holanda. Dá pra acreditar? O mais incrível você ainda não sabe. Jogaram a mercadoria toda no mar, cara, tudo numas latas enormes. Pensou o que vai acontecer com isso? Já, eu já pensei, bicho. Se uma dessas latas vem parar aqui na praia...

Elvis se levantou, sacudiu o corpo inteiro, sacudiu o pêlo, abanou o rabo. Quando o cara começava a viajar desse jeito, falando com ele como se fosse gente, era sinal de que ia cair no sono. A praia de Paúba era quase selvagem nessa época, dava mesmo pra dormir legal. Elvis ficou por ali, meio de guarda, o cara embarcou. Teve o sonho recorrente de que voltara a tocar. Era engraçado, porque ele nunca pensava nisso acordado, fazia anos não via os caras, mas sempre sonhava com a bateria, com solos e tambores e pratos e o sonho terminava sempre igual, quando um dos caras, o irmão mais velho, lhe tomava as baquetas e furava o tambor da batera alugada.

Acordava dando risada. Que louco esse cara, que loucos todos nós. Mas naquele dia não chegou no tambor furado, acordou antes com os latidos do Elvis. O bicho estava quase no mar, latindo para alguma coisa que vinha boiando. Sentou, sacudiu a areia e o sono, focou os olhos. A coisa brilhava. Era metal. Um cilindro de metal. Era uma lata. A lata. Uma fé estranha o arrebatou. Não tinha sido à toa a notícia da manhã. Navio, Rio, Paúba, litoral norte. Ela tinha chegado até ele, era ela. Elvis tinha o pêlo molhado, parecia querer alcançá-la para ele. O cara levantou, tirou a camiseta, correu até a arrebentação, nadou em direção à lata. Quando estava a uma braçada da coisa, sentiu o hálito canino muito perto. Elvis roçou-lhe o pêlo e ele agora sim acordou. Um bode infernal, a cabeça pesando chumbo presa à areia. Custou a levantar e a acreditar. Só sonho, então.

Elvis o seguiu no passo lento. A cabeça começava a entrar no eixo de novo, sem perder o foco na lata. Era fim de tarde e a fé ainda o guiava. Foi até os barcos, conversa jogada fora com os pescadores de sempre. A bermuda amarrotada guardava uma nota, presente aos homens do mar. Se encontrarem alguma coisa parecida com o que eu falei... Promessa de ganho em dobro, redobraram a atenção.

Subiu a serra de volta, outra semana de selva cinza à espera das verdes ondas, céu azul e o prateado da lata. Os jornais davam seqüência da história, as latas se perdiam e se achavam em praias cada vez mais improváveis, e ele pensava se uma delas chegaria lá. O mundo da velocidade era seu dia, pilotos, corridas, notícias para a imprensa, mas à noite ele se transmutava, se teletransportava para a orla, deixava de ser urbano, mutante virado em caiçara, pensava no mar. A sexta-feira chegou e ele chegou a acreditar que os olhos de Elvis lhe diziam algo. Não tinha sol, talvez nem descesse. Elvis engoliu um latido triste. Desceu.

Sim, Elvis tinha razão, os homens do mar encontraram. A lata. Era a mais exemplar, pura, eficaz e perfumada porção de nirvana que ele já tinha provado com todos os seus sentidos. Naqueles dias, teve até vontade de ligar para os caras, aquilo valia um revival. Nem tinha como. O mais novo vivia num sítio, o mais velho, parece, estava em Minas, a mina, essa não estava nem aí. Desculpe, babe, essa lata eu vou guardar. Candidamente, acomodou-a numa mala de viagem e lá ela ficou por meses, sendo sorvida aos poucos, iguaria fina e rara.

A velocidade o levou para bem longe de Paúba, mares do norte, céus mediterrâneos. Com ele, um jovem e loiro piloto, acompanhado do pai. E a mala. Vida de assessor de imprensa tem dessas coisas. O menino tinha talento mesmo, um bom patrocinador, fazia sua estréia nas pistas da Europa, depois de uma carreira fulminante de sucessos por aqui. Tinha que ter assessor de imprensa, e lá estava o cara, com a mala que antes abrigara a lata. Na Itália, aeroporto, alfândega, passaporte, visto, bagagem, perguntas de praxe, o menino tinha nome italiano, oriundi, capice? Tudo certo com os papéis, nada de errado com os nomes, só não se entende esse pastor alemão, policial canino farejando sofregamente a bagagem. Não toda a bagagem. A mala, aquela mala. Pai e piloto impacientes. O que há com essa mala? Esvazia a mala, nada de errado com ela. Não há nada de podre na mala. Não há nem nunca houve. Houve uma vez, não podre. Fina iguaria. Uma lata. A lata.

Monday, December 04, 2006

Com que roupa?

Amigos, a hora se aproxima. No dia 31 de dezembro, vou correr minha primeira São Silvestre. Já corri dezenas de provas, mas nunca a mais tradicional da minha cidade. Quase sempre, viajava no final do ano. Desta vez, deu certo, estarei na capital paulista na virada do ano e já estou inscrita. É uma prova difícil, cheia de gente, um calor do Saara, um suplício no centro abafado da cidade, um terror na subida da Brigadeiro, mas vou. Muita gente que faz a São Silvestre não se anima a fazer a segunda. É tipo "once in a lifetime", aquelas coisas que a gente faz uma vez na vida.

Por tudo o que essa prova representa, quero corrê-la usando uma camiseta com alguma inscrição significativa. Estou abrindo a caixa de comentários para sugestões. Quem se habilita?

Em tempo: sem palavrões e termos ofensivos, certo?

Tuesday, November 28, 2006

Ainda sobre a Segundona, por quem sabe

O post anterior, acerca de um fato verídico, ensejou boa discussão sobre as divisões "de acesso" do futebol. Meu citado amigo, o jornalista Celso Unzelte, atendeu ao meu apelo e veio em nosso socorro, dando uma aula sobre o tema. Aproveitem, é de graça. Eis o texto que o Celso me mandou via e-mail:

"Realmente, é tudo uma questão de nomenclatura, ou, antes disso, de eufemismo, mesmo. Daí eu sempre escrever Série B (em caixa alta e baixa, porque é o nome oficial) e segunda divisão (caixa baixa, porque não é nome oficial, mas é a ordenação
das divisões, assim como a Série A é a primeira divisão e a Série C, a
terceira divisão).

Repare que não estamos "nomeando" essas divisões, apenas contando: primeira, segunda, terceira... Sejam quais forem os nomes de plantão que ganhem ao longo do tempo. É mais ou menos como usar os termos "alvinegro" ou "alviverde" em caixa baixa - não é apelido, mas simplesmente sinônimo de "time preto e branco" ou "time verde e branco" (nesses casos, não iria em caixa alta e baixa, certo?). Tudo bem que alguns adjetivos referentes às cores acabaram virando apelidos de fato, como Tricolor ou Colorado, mas isso já é outra história...

Voltando às nomenclaturas oficiais da segundona: como o próprio futebol brasileiro, essa história tem origem nos estaduais. Em São Paulo, em 1948, surgiu o primeiro Campeonato da Segunda Divisão de Acesso, que depois virou Divisão Intermediária (por estar entre a primeira e a terceira). Houve tempo, até, em que a primeira divisão paulista chamava-se Divisão Especial, a segunda se chamava Divisão Intermediária e a terceira divisão se chamava... Primeira (!) Divisão. Hoje, em São Paulo, tem Série A1 (primeira), Série A2 (segunda), Série A3 (terceira) e Segunda Divisão (que, como você pode ver, na realidade é a quarta, apesar de ser chamada de segunda).

No Brasileiro, a primeira vez que teve segunda divisão foi também no primeiro ano em que teve a primeira, em 1971 (chamava-se primeira divisão, porque a primeira, de verdade, era Campeonato Nacional). Ganhou o Villa Nova, de Minas, que não levou, porque não havia nem acesso nem descenso. O mesmo aconteceu no ano seguinte, 1972, com o Sampaio Corrêa, do Maranhão.

De 1973 a 1979 ninguém se preocupou com segunda divisão do Brasileiro. Ela só volta a ser disputa em 1980, com um nome que duraria até 1984: Taça de Prata (porque a Taça de Ouro era a primeira, e a Taça de Bronze, a terceira). E isso dá a maior confusão histórica, porque em seu último ano, 1970, o Robertão, aquele antecessor do Campeonato Brasileiro da primeira divisão, também foi chamado de... Taça de Prata!

Foi essa Taça de Prata, a menos gloriosa, que o Corinthians jogou em 1982, um dos anos em que se permitia o acesso de quatro equipes para a Taça de Ouro no mesmo ano. Os que não se classificavam (portanto, de quinto a oitavo) continuavam na disputa do título da segundona, que valia vaga na primeira do Brasileiro, mas só do ano seguinte.

A segunda divisão também foi chamada de Módulo Amarelo (em 1986 e em 1987), Campeonato Brasileiro da Divisão Especial (1988 e 1989), assumidamente de Segunda Divisão (aí sim em caixa alta e baixa, de 1990 a 1994) e finalmente de Série B, como a conhecemos hoje, desde 1995. Espero ter ajudado, apesar de tanta confusão!"

Celso Unzelte é provavelmente o jornalista que mais conhece a história do futebol no Brasil. Temos a honra de fazer parte de "famílias amigas". Celso e a jornalista Patrícia Rodrigues estão entre os habitués lá de casa (e nós da deles!). Celso foi chefe do meu marido, Patrícia foi minha caloura na faculdade. Sempre que nos encontramos, há ocasião para velhas histórias de redação, além de facilitarmos apresentações musicais improváveis de nossas crianças, com repertório que vai de clássicos de Adoniram Barbosa ao hino da Portuguesa Carioca.

Obrigada, fiel companheiro!

Thursday, November 23, 2006

Tucanaram a Segundona

O colunista José Simão, da Folha, há vários anos cunhou as expressões tucanar, tucanês, entre outras variações, em referência ao hábito de "falar difícil", genericamente associado ao partido dos tucanos, o PSDB. Foi o governo tucano, por exemplo, que massificou no país o termo "agência", para designar instâncias controladoras de setores da economia. Zé Simão esmera-se por coletar e divulgar exemplos do que ele chama de anti-tucanês, expressões bem "ao pé da letra".

Esta é o contrário e me foi contada pelo meu dentista e querido amigo, dr. Marcelo Poloniato. Antes, cumpre um pequeno parêntesis: quem me conhece sabe do meu encanto pelo futebol. Torço, mas sobretudo amo futebol, de assistir Pocinhos do Rio Verde versus São Popó do Maculelê de sábado à tarde, via UHF, em preto e branco. Mas, convenhamos, sou quase uma aberração. Mulheres, em geral, não gostam de futebol e gostam de dizer que não gostam de futebol. Algumas até se entusiasmam quando chegam as finais, mas daí inventaram o campeonato de pontos corridos e não tem mais final. Aí é que as moças de enroscam mesmo. Lembro claramente da última rodada, ano passado, quando o meu Corinthians conquistou o Troféu Luiz Sveiter, ops!, quer dizer, o Campeonato Brasileiro, jogando contra o Goiás. Foi difícil explicar às outras mulheres presentes na sala que o Corinthians estava perdendo mas ia ser campeão assim mesmo.

Então, Marcelo me conta que uma paciente estava em Belo Horizonte no fim de semana passado, pegou um táxi e estranhou a movimentação atípica na cidade. Perguntou ao motorista do que se tratava e o homem, todo cheio, comentou que era a festa da torcida atleticana, comemorando o título brasileiro. A moça não entendeu e inquiriu: "Mas, pelo que eu estava sabendo, não era o São Paulo que já era quase campeão?". O chofer explicou que o São Paulo era da Série A. O glorioso Atlético Mineiro tinha acabado de ser campeão da Série B.

"Ah, Série B é a Segunda Divisão?"

Pra quê...

O homem encostou o táxi na guia, virou-se para trás, dedo em riste e decretou: "Não é Segunda Divisão, é Série B!"

Meus amigos historiadores de futebol, como o imbatível Celso Unzelte, poderiam vir em meu auxílio para contar desde quando a Segundona se chama Série B. O que me parece evidente é que ela só passou a ser chamada com esse orgulho pelo nome verdadeiro depois que grandes times como Palmeiras, Grêmio e Atlético fizeram estágio por lá. Antes, quando ela era reduto dos habituais sobe-desce, como Sport, Santa Cruz, Náutico, Guarani, Ponte Preta, Coritiba, ninguém se importava de chamá-la de Segundona.

É sempre o dedo da elite: basta um time grande despencar que já tucanaram a segundona. (Por favor, leiam esta última frase com o modo irônico ligado.)

Monday, November 20, 2006

Ana Carolina

Ela conseguiu. É capa de todas as revistas semanais no Brasil. Imagino quantas vezes, no interior de São Paulo ou nos cafundós do Japão, sonhou acordada com a fama, a celebridade, ser capa de revista. Pena não estar viva para ver.

Há alguns anos, meu trabalho eventualmente incluía a tarefa de fazer “casting”. Fazer casting é escolher modelos para eventos ou algum outro tipo de produção. Fui uma vez a uma agência e me espantei com o espetáculo armado para um só espectador – eu. As meninas desfilavam sobre uma passarela de verdade e eu tinha de escolher, entre umas vinte, as quatro que ia contratar. A moça da agência fazia observações pertinentes: essa tem perna boa, longa; essa é linda, mas nunca sorri: se você precisa de simpatia, não a chame; essa negra é sensacional, olha, é sempre bacana colocar uma negra entre elas, viu?! Blá-blá-blá: navio negreiro, foi assim mesmo que me senti, em um mercado de escravos.

Pena, pena, não senti naquele dia e continuo não sentindo. Só segue carreira de modelo quem quer. Todo mundo sabe que é um ambiente hostil, focado só na aparência física e, portanto, superficial e afeito ao descarte. Quem quer ser tratado como escravo ou como animal premiado, sendo avaliado pelos dentes, pela coxa ou pelos peitos, que seja modelo.

Sentir pena das moças por essa vida que levam é como ser tomado de compaixão por quem participa do Big Brother. “Ah, coitados, parecem animais enjaulados...”. Estão lá porque querem e, em paralelo óbvio com as modelos esquálidas, também “se sacrificam” em busca de fama, de ser capa de revista.

Só não digo que fico totalmente indiferente a essas jovens porque me causa leve indignação a posição de suas famílias. Permitir que uma adolescente de 13 anos se mude de mala, cuia e sem dinheiro no bolso para o Japão me parece muito estranho. Omissão ou promessa de enriquecimento, sei lá, também sou mãe e sei como às vezes custa dizer um não inflexível a um filho. E talvez a raiz dessa impotência dos pais seja o irresistível culto à beleza e à juventude que paira nesses dias como uma espada de remorso sobre a cabeça da sociedade. Dá-lhe capa de revista, dá-lhe mea culpa dos próprios veículos que, para seus editoriais de moda, selecionam no “casting” modelos cujas pernas têm a espessura de um braço, e em seus editoriais entrevistam especialistas em anorexia, bulimia e outros distúrbios alimentares. Dá-lhe contradição.

Sim, a culpa é da sociedade. Somos culpados por modelos que morrem de fome. Também somos culpados por crianças e adolescentes obesos que se entopem de gordura trans nos fast foods dos shoppings ou na frente da TV. Somos culpados pelos que comem demais e pelos que não comem. Isso não é ironia: as raízes dos problemas do ser humano estão nele mesmo, em sua forma de viver e se organizar em grupos, mas convido a uma reflexão ampliada.

A primeira vez que ouvi falar em anorexia foi após a morte da cantora Karen Carpenter, em 1983. Fiquei chocada com a manchete na capa de uma revista: “A cantora que morreu de fome”. O sensacionalismo da publicação serviu para que eu entendesse que ela não tinha morrido por falta de dinheiro para comprar comida, como acontece com tanta gente no mundo, mas devido a um distúrbio psicológico que a fazia recusar alimentos. A coisa, portanto, não é de hoje.

Recentemente, após a morte da modelo Ana Carolina, li uma reportagem com uma pesquisadora do Hospital das Clínicas, de São Paulo, cuja tese apoiou-se no estudo histórico da anorexia. Está lá: há registros da doença que remontam ao século 8. O perfil do paciente, desde aquela época, é semelhante ao de agora: na maioria, mulheres jovens, de famílias bem sucedidas, com traços de timidez. A diferença entre os eventos do passado e os de hoje é a motivação. Antes, a sublimação do corpo tinha origem na busca pela santificação, enquanto hoje é reflexo de um padrão estético.

Sempre que os temas anorexia e magreza excessiva ganham destaque na mídia, surgem aqui e ali textos bem humorados de cronistas machos louvando a beleza de mulheres que se fartam à mesa e exibem despudoradas suas coxas roliças, suas ancas carnudas, seus peitos volumosos. Pois eu digo: tais crônicas podem ser engraçadinhas, mas são inócuas em termos de doutrinação. É só puxar pelo exemplo histórico. Se pacientes com esse perfil já manifestavam seus distúrbios em tempos de culto às formas roliças, como nos séculos passados, não são os bem intencionados cronistas do século 21 que as farão mudar de idéia hoje. Porque o problema não se relaciona à imagem que o outro faça dela, mas à sua própria auto-imagem. A moça recém-tragada pela anorexia disse ter consciência de nutrir uma visão distorcida sobre si mesma. As de ontem e as de hoje não são apenas produto do meio: são pessoas doentes.

Cabe, sim, à sociedade, avaliar seu grau de culpa no caso. Por que essas moças se tornam anoréxicas e chegam à morte, em alguns casos? É nosso apelo ao belo e ao jovem? Pode haver, sim, essa parcela de responsabilidade. Mas cada um responde à pressão do meio de acordo com suas possibilidades e sua vontade. O mundo valoriza mulheres magras, sim, a mídia as estampa em todos os cantos. Mas o mundo também nos enche de apelos irresistíveis por batatinhas fritas, hambúrgueres, nuggets, sorvetes, chocolates. A depender só das influências externas, a mim caberia apenas ser anoréxica ou obesa mórbida.

Diante do paradoxo entre “seja magra” e “se encha de besteiras”, tornar-se uma pessoa que se alimenta de forma saudável e equilibrada é algo que depende de mim, da influência que tenho da minha família. Não precisamos ser sempre vítimas da sociedade, se nos dispusermos a responder com firmeza e responsabilidade às pressões que sempre teremos. E aquele ser mais frágil, mais susceptível a sucumbir há de ter o apoio e a atenção da família, o que não deixa de ser a mesma firmeza e responsabilidade que se deve ter consigo mesmo.

Friday, November 17, 2006

Dom Fernando I

O novo rei da Fórmula 1? No GPTotal, digo o que penso sobre Fernando Alonso e sua perspectiva para 2007. Vai lá!

Thursday, November 16, 2006

Como nossos pais

Felipe anda encantado por tuning, drift e reaggae. Tirando o terceiro, dos outros pouco ou nada eu sabia. E só captei as paixões recentes do rapaz graças ao MSN Messenger. Felipe começou a pipocar no canto direito da minha tela, quase sempre no fim da tarde, com frases alusivas a esses termos.

Eu sabia que tuning é a versão moderna de “envenenar” os carros, mais ou menos o que a juventude transviada já fazia nos anos 60 e 70. Fico meio abestalhada quando sei que um sujeito é capaz de gastar 30 mil dinheiros em um carro e atulhá-lo com equipamentos e soluções que, juntos, somam outros 30 mil. E acho que não entendo o que falam quando mencionam coisas como caranga socada e nitro, mas assim é a vida, vamos aprendendo, nem que para isso a fonte de informação seja o cinema, mais exatamente o filme “Velozes e Furiosos”, que parece ter espalhado pelo mundo a febre do tuning.

Reggae eu conhecia, claro. Música jamaicana, Bob Marley, no woman, no cry, Gilberto Gil, Jimmy Cliff. Conhecia as obviedades, óbvio, mas não sabia que a juventude do século 21 tinha se encantado pelo reggae e que o ritmo tinha voltado com força. Desculpem, sou bem alienada mesmo, meus discos são de outrora, meus programas de TV, compilações de seriados já extintos, alguns em DVD e outros, ainda, em fita de VHS. Mas não posso dizer que não sabia o que era raggae quando Felipe pulou outro dia, no cantinho da tela, com uma frase de devoção ao Natiruts que descobri ser o must da moçada reggaera destes tempos.

O que me entortou mesmo foi o drift. Esse eu nunca tinha ouvido falar.

Felipe tem dezessete anos e é o filho mais velho da minha prima Debora. Quando nasceu, tive pela primeira vez a sensação de que os bebês são muito, muito pequenos. Hoje, sei lá, deve ter quase um metro e noventa, e fica trazendo novidades para meu mundo virtual. Achei interessante sua devoção pelo tuning e comentei, assim por cima, com ele. Comentei, ainda, que Felipe falava de um tal drift, e quis saber do que se tratava. Ele franziu a sobrancelha, respirou fundo, levantou-se a falou: “Preciso agir rápido”.

Meu marido não deixa coisas para depois. Se tem que fazer, faz na hora e tanta diligência é algo bom, por um lado, mas me causa certo desconforto quando menciono, assim por cima, que poderíamos começar a ver um carro novo para substituir o meu, porque o homem, por ele, sai e fecha o negócio na primeira concessionária que lhe oferece um bom preço. Enquanto me explicava que drift são provas de arrancada, mania nascida no Japão e que não tem lugar para acontecer – pode ser em um autódromo ou no estacionamento de um shopping – ele separou as revistas que escreve para uma marca de automóveis. Não apenas uma marca, não apenas automóveis. A marca, o carro. Em uma palavra: Porsche. Colocou tudo em um envelope e escreveu na frente: Felipe. “Vou deixar na portaria do prédio dele amanhã. Esse menino precisa saber o que é carro de verdade.”

Não falou muito mais, mas sei. Sei que adoradores de carros e de corridas de carros veneram essas máquinas como se elas fossem mais que meios de transporte. São capazes de falar horas sobre bolas de alavanca de câmbio, frisos laterais, forrações, restaurações, bananinhas, pálpebras. Não sei se entendo tudo o que falam, mas o dialeto deve ser muito diferente do que contém caranga socada e nitro, ou ele não teria providenciado o tal envelope com tanto sentido de urgência. Olhei aquele homem de cenho franzido e não pude deixar de lembrar que ele escandalizou minha família quando lá chegou, cheio de uns hábitos muito modernos para aquela turma da Zona Norte, há quinze anos. Agora, o moderno é o Felipe, com seu tuning, seu drift, seu reggae.

Monday, November 06, 2006

Que música marcou sua vida?

Ouvi dia desses um programa de rádio que tinha um quadro com esse nome – que música marcou sua vida? Gostei da brincadeira e achei que cabia bem no espírito do blog. Eu, sempre ligadíssima em música, não seria capaz de escolher uma apenas. Dividi por quesitos e deixo aqui minha contribuição, ansiosa por ler as de vocês. Vamos lá?

Tudo bem, eu começo.

Quesito “Auto-conhecimento”

“Sou a Mônica, sou a Mônica...” – talvez tenha sido a primeira música que me marcou. Em casa, tinha um compacto duplo com os temas de alguns personagens da Tuma da Mônica – tinha a própria, o Cascão, o Chico Bento e o Bidu. Atacadinha como sempre fui, lembro que gostava particularmente dos versos “quando diz que sim, quando diz que não, mostra ter opinião”. Muitos anos mais tarde, quando começou a passar no Brasil o seriado Friends, de cara me identifiquei com a personagem Monica Geller, cujas características principais são a competitividade exacerbada e a mania de arrumação. Minha querida amiga Cynthia, que também gostava do programa, certa vez comentou: “Você É a Monica.” Não contestei. Já era desde criança, sempre serei.

“Dona” – ah, Sá & Guarabyra na interpretação do Roupa Nova... Manja aquela cena de novela?! A adolescente sonhadora escutando uma música, um tanto melancólica, olhando pela janela e sonhando com o futuro de glórias? Chuva lá fora, de preferência. “Não há pedra em teu caminho, não há ondas no teu mar, não há vento ou tempestade que te impeçam de voar”. Ah, como eu queria ser essa dona! Tudo bem que era tema da Viúva Porcina, em Roque Santeiro, mas eu queria aquela música para mim, queria ser essa mulher de pulso impaciente batendo – tan-tan-tan – na porta. Acabei madrinha de casamento na época, vestindo um modelito de lamê prateado, mangas presunto enormes, saia sereia com enchimento de tule, a própria Porcina. Mas a culpa era do terror fashion dos anos 80, não da música, isso eu sei.

Quesito “Talismã"

“Eduardo e Mônica” – Será que mais gente tem isso? De ouvir uma música e achar que ela deu sorte para alguma coisa? Vamos, confessem! Eu tive duas músicas talismã na vida. Quando ainda estava no segundo colegial, resolvi prestar vestibular só para ver como era, se eu estava me preparando bem, essas coisas de menina CDF sem namorado. Antes de sair para a prova, tocou a música do Legião Urbana no rádio. Como fui muito bem na prova, associei uma coisa à outra. No ano seguinte, quando prestei vestibular para valer, sempre colocava “Eduardo e Mônica” para tocar antes de sair. Não foram os livros, foi Renato Russo que me fez passar! (E lá está a Mônica de novo a me perseguir...)

“Maria de Verdade” – Alguns anos depois, já formada, casada e teoricamente adulta, me agarrei a outra canção. Em 1995, o Corinthians viveu um ano maravilhoso, com dois títulos conquistados. A Copa do Brasil e o Paulista, ganho em uma final memorável sobre o Palmeiras. Mas a responsabilidade pelos troféus erguidos não foi das cobranças de falta certeiras de Marcelinho Carioca. Não, para mim, a grande responsável era a faixa de abertura do CD “Cor de Rosa e Carvão”, da Marisa Monte, que eu sempre ouvia antes de cada jogo. Nos atuais tempos bicudos, abandonei os CDs por muita reza e calmante antes das partidas do Timão.

Quesito “Ternura”

“Unforgettable” – No ano de 1991, Natalie Cole lançou aquele CD de standards no qual ela cantava com a voz do pai Nat, morto muitos anos antes. Tocava em tudo que é canto, até encheu de tanto tocar! Tocava no saguão do Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, quando voltávamos de uma viagem “profissional” que acabou sendo nossa primeira lua-de-mel. Logo depois, ele me deu o CD de presente. Inesquecível mesmo...

Mal termino de escrever e já penso em tantas outras músicas que marcaram minha vida. Mas, se deixar, não paro nunca! E aí, e você? Que música marcou sua vida?

Sunday, October 29, 2006

Dá tia, tó tia

São Paulo foi feita para enlouquecer forasteiros. Melhor, foi nomeada para tal. Nomes de bairros e logradouros paulistanos seguem lógica nenhuma. Há uma avenida Ipiranga que dista muitos quilômetros do bairro do Ipiranga. A rua Doutor Homem de Mello é travessa da avenida Sumaré duas vezes. Não, ela não faz um “u”, como ocorre com a Ibsen da Costa Manso em relação à Gabriel Monteiro da Silva. A Homem de Mello era uma pacífica rua das Perdizes que, certo dia, viu-se cortada pela monumental avenida, sendo dividida bem onde fazia algumas curvas. Resultado: a Homem de Mello “termina” na Sumaré, mas “continua” mais à frente, vários metros além de onde cortou a avenida. Pensou chegar em São Paulo, sem conhecer a cidade, e ter de se achar só com o endereço na mão?

Mas, se há ruas separadas e, na prática, transformadas em duas, como este caso, há também logradouros únicos que simplesmente mudam de nome. Pense bem, você que conhece a cidade. Existe uma avenida enorme, que liga o Sumaré ao Jabaquara e permite percorrer vários quilômetros sem dobrar nenhuma esquina. Ou seja, é uma avenida só, certo? Capaz... É Doutor Arnaldo, depois Paulista, Bernardino de Campos, Vergueiro, Noé de Azevedo, Domingos de Moraes, até terminar como Jabaquara. Tem mais: a praça 14 Bis não é aquela que ostenta (ou ostentava) uma réplica do avião de Santos Dumont. Não, aquela é a praça Campo de Bagatelle. A 14 Bis não tem avião nenhum. A rigor, não tem nem praça. Resume-se aos baixos do Viaduto Nove de Julho.

Estava eu na Praça Princesa Isabel, divagando sobre essas incoerências paulistanas, admirando a gigantesca estátua que há no meio da praça – claro, não é uma estátua da princesa, mas de Duque de Caxias, só para confundir – quando ele encostou no vidro, maltrapilho, sujo e nervosinho. Cachorro picado por cobra tem medo de lingüiça, e eu aprendi a não andar com nada aparente no carro, depois de alguns assaltos. Vai tudo no porta-malas. Carrego apenas o celular, prosaicamente acomodado entre o banco e minhas costas (na verdade, entre o banco e o bumbum, mas fiquei com vergonha de falar).

O moleque colou a cara no vidro e começou: vai tia, me dá uma moeda. Eu só sacudia a cabeça e falava, olhando para ele, que não tinha nada. E não tinha mesmo, tudo lá atrás. Então vai, tia, abre aquele lixinho ali, quero ver. Abri o lixo do console, vazio. Ele colocou ainda mais o rosto na janela e conferiu o porta-treco na lateral da porta. Pronto, lá se vão minha coletânea dos Beatles, “Muito”, do Caetano, e “Água Viva”, da Gal. Mas que mané CD, quem se importa com CD original nesse universo pirata geral que habitamos?! Demandou a flanela. Então, me dá aquele paninho. Você quer aquela flanela? Te dou, não tem problema.

Sempre olhando para ele, nos olhos dele. Peraí, já te dou. Puxei a flanela, veio junto um paninho de limpar óculos e uma caneta, com o nome de uma marca de carros escrito. Quer esse paninho e a caneta também? Quero. Puxando a flanela, o paninho e a caneta, planejou. Sabe, tia, acho que vou pegar esse pano grande e limpar os vidros dos carros. Boa idéia, arranja uma garrafinha de plástico, um rodinho e detergente. É! E esse paninho, faço o que com ele? Vou limpar a cara, e passava o paninho no rosto sujo. Sorria. Enfiou a mão pra dentro da janela, com a caneta. Tó tia, pega a caneta, você pode precisar. Não preciso, não. Tenho outra. E se foi, rindo e saltitante, sob a sombra da espada desembainhada do Duque de Caxias, que até agora não sei o que faz na Praça Princesa Isabel.

Wednesday, October 18, 2006

O diabo veste vermelho

No ar, mais uma coluna minha no GPTotal. O Rei, Roberto Carlos, não passaria nem do título, pois não menciona palavras ligadas ao Tinhoso. Mas vai lá, são tantas emoções...

Saturday, October 14, 2006

Tom que era Pelé

Em "O futebol", de 1989, Chico Buarque diz:

"Para estufar este filó
Como eu sonhei, só se eu fosse o rei
Para criar efeito igual
ao jogador, qual compositor"

Ou seja, para ser tão bom compositor como Pelé foi jogador, Chico diz que não bastaria ser ele, haveria de ser "o rei". Seria Roberto Carlos?

Em "Paratodos", de 1993, Chico parece dar a resposta:

"O meu pai era paulista,
meu avô pernambucano
O meu bisavô mineiro,
meu tataravô baiano
Meu maestro soberano
foi Antônio Brasileiro"

Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim. Antônio Carlos Jobim. Tom Jobim. Tendo sido seu maestro soberano, Tom parece ser o Pelé da música que Chico almejou ser.

Será?

Estou me esforçando nessa coisa de detetive...

Friday, October 13, 2006

Zico que era Rita

Foi logo depois da Copa de 82 que ele chegou lá em casa. Não me lembro se o fato de meus pais assentirem em termos nosso primeiro (e único) bicho de estimação teve relação com o trauma da desclassificação brasileira. Já falei várias vezes, aqui mesmo, o quanto a derrota do Brasil para a Itália, naquele Sarriá, marcou minha vida. Mas acho que não ficamos, eu e meu irmão, tão abalados que meus pais pensassem em nos compensar com um bichinho.

De qualquer forma, o nome do animal tinha relação estreita com a seleção canarinho. Zico. Acho que não era canário, nunca fui boa para raças de bicho. Aliás, fui sempre tão ruim que até pouco tempo atrás me referia a este quesito como “a marca” de tal animal. Zico veio do Mercado Municipal de Tucuruvi, onde meu pai fazia as compras semanais. Sua gaiola foi levada para o coberto no fundo do quintal, onde eram estendidas as roupas e onde havia muitos vasos de plantas, sobretudo samambaias. Era moda ter samambaias em casa naqueles tempos. Hoje, não as vejo mais. Teriam entrado em extinção?

Não me lembro se Zico era muito cantador, nem se comia muito alpiste ou se bebia muita água. E, a rigor, essas eram as únicas variáveis que tínhamos para observar no passarinho. Coisa triste é animal enjaulado. Triste e enfadonha, para quem está fora e, suponho, pior ainda para o outro lado das grades. Mas eis que Zico nos brinda com uma notícia extraordinária, daquelas de fazer plantão jornalístico espocar no meio da tarde.

Botou um ovo.

Zico botou um ovo, o que nos surpreendeu sobremaneira e nos deu a certeza de que o dono da lojinha de animais do mercado, no mínimo, tinha se enganado. Vendeu-nos um macho, que botou um ovo. Entre as providências urgentes, só uma nos competia. Trocar o nome da ave. O resto, era com ela. Não fazia sentido mudar para Zica, pois a idéia era homenagear um ídolo, daí o galinho de Quintino da seleção ter virado nosso passarinho de estimação. Não havia Zica entre nossos ídolos, mas não foi difícil variar dentro do universo das quatro letras.

Rita. De Rita Lee, meu grande ídolo naquele e em muitos tempos. Não sei dizer quanto tempo levou entre o ovo aparecer e sua casca começar a se quebrar. Foi uma seqüência e tanto de experiências. Depois da troca de sexo, um nascimento ao vivo, no quintal de casa. O filhote era minúsculo e muito feinho. A onipresença do time de Telê era tanta que não esperamos para saber se era macho ou fêmea a cria. Ganho o nome de Oscar, honra ao zagueiro-central. Não sei se no mesmo dia ou no dia seguinte à chegada do rebento, encontramos o filhote no chão, embaixo da gaiola. Evidentemente, não resistiu à queda.

Não tardou a surgir novo ovo na gaiola. E a mesma expectativa plantada. Espera. Quebra a casca. Nasce outro filhote horrorosinho. Este foi batizado como Éder, pelo ponta-esquerda de chute de canhão. Teve o mesmo destino, arremessado pela gaiola. Os entendidos dizem que as fêmeas matam suas crias menos privilegiadas, como instinto de proteção. Tanta feiúra junta podia ser sinal de morbidade, vai saber. Ou vai ver que a Rita, depois de tanto tempo chamada de Zico, desenvolveu alguma patologia psico-emocional que desembocou em dupla depressão pós-parto. Ou o nome influenciou-lhe o comportamento. Era Rita por Rita Lee, a mutante, a ovelha negra, aquele que dizia que essa vida é muito louca e loucura pouca é bobagem.

Monday, October 09, 2006

Ciranda de versos

Há algumas semanas, tivemos uma ótima discussão aqui sob o tema "Ciranda de Livros", na qual propus que todos falássemos sobre seus livros preferidos. Resolvi variar um pouco o foco da ciranda e agora proponho que falemos sobre letras de músicas. A idéia é que cada um aborde letras ou trechos de letras de que gostam ou que marcaram suas vidas de alguma maneira. Vou começar com três versos do meu letrista preferido, Chico Buarque, sempre ele, claro...

"Eu te amo"
Chico Buarque - 1980

"(...) Não, acho que estás só fazendo de conta
Te dei meus olhos pra tomares conta
Agora, conta como hei de partir."

Os três versos finais da canção "Eu te amo" significam, para mim, mais do que uma canção dilacerada de amor. Contêm outra mensagem, subliminar: desistam, poetas da música brasileira, ninguém jamais fará versos tão geniais quanto estes.

Meu encantamento com esta parte final da canção tem duplo motivo. Em primeiro lugar, são aquilo que se costuma chamar de "chave de ouro" - o encerramento perfeito para uma letra que, desde o começo, apresenta-se como antológica (para ler a íntegra da poesia, clique nos comentários abaixo). Na gravação original, a música é dueto de Chico com a cantora Telma Costa. A mesma letra, com discretíssimas alterações, presta-se ao eu-poético masculino ou feminino ("Meu paletó enlaça o teu vestido/Teu paletó enlaça o meu vestido"). Tem outros versos inesquecíveis, como "Se na bagunça do teu coração, meu sangue errou de veia e se perdeu". Mas o final, ah, o final...

Os três versos que encerram a canção encantam não apenas a mim como admiradora de belas poesias, mas como entusiasta da língua portuguesa. Porque não é nada menos que genial a estratégia de Chico ao usar a palavra "conta". Cumpre-se ressaltar que, na repetição da letra, ao final da gravação, Chico muda para "(...)Não, achos que estás te fazendo de tonta, te dei meus olhos pra tomares conta (...)". Mas vale a pena pensar sobre o uso da palavra "conta" na primeira parte:

Não, acho que estás só fazendo de conta
Aqui, "conta" entra como substantivo, na expressão "fazer de conta", sinônimo de "fazer de brincadeira", "fazer de mentira"

Te dei meus olhos pra tomares conta
Neste caso, "conta" também é substantivo, mas com sentido de cuidado, de atenção

Agora, conta como hei de partir
Finalmente "conta" aqui é verbo, contar, conjugado no imperativo, com sentido de dizer, explicar, informar.

E você, quais são seus versos preferidos?

Thursday, October 05, 2006

O adestrador para presidente

Nos arredores da avenida Paulista, perto dos prédios da Gazeta, da Jovem Pan e da tradicional maternidade Pro Matre, perambula habitualmente um adestrador de cães. Passo de carro por ali, todo dia, na hora do almoço, a caminho da academia. Já o vi com vários animais diferentes. Minha pouca afinidade com os bichos me faz ignorante quanto aos nomes das raças. Há algum tempo, andava com um daqueles que parece uma salsicha, igual ao do antigo comercial da Cofap (ainda existe essa marca de amortecedores?). Nos últimos dias, é um cão corintiano, alvi-negro de pelagem longa, parece a Lessie.

O homem tem aparência simples. Baixinho, moreno, veste sempre uma camiseta com a inscrição “adestrador” no peito. Deve ter orgulho da função e não é para menos. De algum tempo para cá, quando o avisto, já não foco o olhar nele e no cão, mas nas pessoas à sua volta. Invariavelmente, olham-no enternecidas, com bocas de sorriso tímido. Há que ter coragem para sorrir escancarado no centro financeiro-nervoso de São Paulo. Meio sorriso já é um evento.

Em todas as vezes que o observei, atentei menos para a coreografia dos cães e mais para a dinâmica do adestrador. Os bichinhos sentam, deitam, equilibram-se em duas patas, oferecem uma das patinhas, nada que não se tenha visto em programa dominical. Mas o que me encanta é a condução do processo. O homem orienta os cães em voz baixa, não faz gestos abruptos. É um paradoxo dos gigantescos: um homem falando em voz baixa com um cão, a uma quadra dos decibéis enlouquecidos da mais paulista das avenidas.

Ora, dirão os entendidos, o cachorro tem o ouvido melhor que o nosso, escuta mais, por isso não se precisa gritar. Ah, é? E o amor nos olhos daquele homem, que lei da Física explica? E seus gestos brandos, e sua calma, e o respeito que denota a cada nova ordem? Nas minhas observações no entorno, vejo a admiração dos transeuntes. Não sei dizer o que lhes vai na alma. Se mais os impressiona a obediência e a capacidade dos cães em atender as ordens do mestre ou se, como a mim, encanta a eles a delicadeza do adestrador.

Chegou a se agitar em mim um pensamento torto, rebelde, tolamente incendiário: sadismo dessa gente! No fundo, queremos ver um homem dominando um animal, fazendo-lhe submisso. Aquietou-me o bom pensamento: isso é educar, ensinar, incluir no convívio do grupo. Há que fazer isso com as crianças, com os animais domésticos. O educador Paulo Freire já ensinou: mais importante que a educação é a “amorização”.

Sonho com o dia em que todas as relações sejam como as desse homem com seus bichos. Amor, amor, amor. Com amor se ensina, se corrige, se acostuma, se molda, se cresce. É demais sonhar com um país que se paute por isso? Se for demais, sinto muito. “Eu nunca quis pouco.”

Wednesday, October 04, 2006

Dois turnos

Lula é Fernando Alonso? Alckmin é Michael Schumacher? Vai lá no GPTotal e descobre! Depois, me diz o que você acha.

Saturday, September 30, 2006

O que não é mais, o que é para sempre

Em 1981, quando Gilberto Gil lançou o disco "Luar", pouco prestei atenção à faixa "Flora", dedicada à então jovem esposa do hoje ministro. Aquele disco teve muitas músicas de sucesso, como "Palco", "A gente precisa ver o luar", "Cores Vivas", "Se eu quiser falar com Deus" e "Lente do Amor", esta última tema de abertura do seriado "Amizade Colorida", da TV Globo. Um tremendo disco! O fato de eu não prestar tanta atenção a "Flora" talvez tenha tido relação com a maior divulgação das outras músicas. Ou também por outra razão: com apenas 11 anos, na época, eu talvez não tivesse mesmo sintonia com uma música de amor tão delicada, nem maturidade para entender o conteúdo e a profundidade daqueles versos.

No ano seguinte, Gil lançou o também admirável "Um Banda Um", que tem "Andar com Fé", "Metáfora", "Esotérico" e "Drão", uma das mais tocadas do disco, dedicada à ex-esposa de Gil, Sandra, conhecida entre amigos e familiares como Drão, corruptela de Sandrão. Nunca esqueci o comentário da minha mãe, naquela época. Antes, cumpre-se informar que minha mãe é de Touro. Do pouco que entendo de Astrologia, e entendo pouquíssimo, sei que os taurinos são o ápice do ciúme. Ela disse algo como: "Se eu fosse a mulher do Gil, mandava ele passear. Como é que faz uma música para a ex-mulher mais bonita do que a que fez para atual?"

Não contestei a opinião dela e acho até que vivi alguns anos concordando que "Drão" era mais bonita que "Flora". Até que um dia, ouvindo a gravação do show "Trem Azul", o último de Elis Regina, subitamente me vi tocada às lágrimas com "Flora", que Elis provavelmente gravaria no disco planejado para aquele 1982 fatal. Naquele momento, "Flora" revelou-se para mim e definitivamente contestei minha mãe (não que tenha dito isso para ela; ela provavelmente só saberá da minha discordância quando - e se - ler este post.)

"Flora" revela o amor maduro de Gil por uma mulher que se afigura a ele como a musa eterna. Olhando para a jovem, ele nela enxerga seu próprio futuro. Vislumbra a jovem como idosa e se vê ao seu lado, vivendo da sombra de sua maturidade, trocando mesmo de papel. No presente, o poeta é um homem vários anos mais velho que a amada e lhe transfere a condição de segurança e sabedoria. No futuro, ela é a árvore frondosa, sob cuja copa ele contempla a própria vida, multiplicada em frutos - sonhos, filhos - de uma existência conjunta, única, uma amálgama de dois seres. Como se já não existisse o velho e a jovem, nem o homem e a mulher, mas um único ser, unificado em uma realização comum, a materialização genuína do amor.

"Drão" é o hino de um amor transformado, a ode a uma relação localizada no passado, intensa e igualmente frutífera, mas que se sublimou em outro tipo de amor. Não por acaso, "Flora" é uma árvore, forte, plantada, fincada na vida do poeta, enquanto "Drão" recorre igualmente à idéia do grão, da geração da vida que, no entanto, tem que morrer para germinar, desprender-se da terra, tornar-se infinito, ganhar a amplidão do espaço para assim se realizar. "Drão" é, sim, uma declaração de amor de Gil a uma musa, mas de um amor que não é mais o amor que costumava ser, ou que se percebeu diferente ao longo do tempo, na descoberta de outras formas de amar, talvez mais intensas, ou mais perenes, ou mais completas.

Em "Flora", o poeta joga-se nas mãos da musa, coloca nela seu futuro e a crê para sempre. Em "Drão", Gil consola-se e consola a musa do fim de um amor que só poderia ter esse destino, mas que nem por isso deixou de ser amor.

Os poetas talvez saibam amar melhor que nós outros.

Veja as letras das duas canções, abaixo, e fique muito à vontade para dizer se concorda comigo, com minha mãe ou, na linha do que diria o próprio Gil, se "a complexidade do tema está justamente na contraposição das expressões diversas da manifestação amorosa".

Flora
(Gilberto Gil)

Imagino-te já idosa
Frondosa toda folhagem
Multiplicada a ramagem
De agora

Tendo tudo transcorrido
Flores e frutos da imagem
Com que faço essa viagem
Pelo reino do teu nome
Ô, Flora

Imagino-te jaqueira
Postada à beira da estrada
Velha, forte, farta, bela
Senhora

Pelo chão muitos caroços
Como que restos dos nossos
Próprios sonhos devorados
Pelo pássaro da aurora
Ô, Flora

Imagino-te futura
Ainda mais linda madura
Pura no sabor de amor
E de amora

Toda aquela luz acesa
Na doçura e na beleza
Terei sono com certeza
Debaixo da tua sombra
Ô, Flora

Drão
(Gilberto Gil)

Drão
O amor da gente é como um grão
Uma semente de ilusão
Tem que morrer pra germinar
Plantar n'algum lugar
Ressucitar do chão
Nossa semeadura
Quem poderá fazer
Aquele amor morrer
Nossa caminhadura
Dura caminhada
Pela estrada escura

Drão
Não pense na separação
Não despedace o coração
O verdadeiro amor é vão
Estende-se infinito
Imenso monolito
Nossa arquitetura
Quem poderá fazer
Aquele amor morrer
Nossa caminhada dura
Cama de tatame
Pela vida afora

Drão
Os meninos são todos sãos
Os pecados são todos meus
Deus sabe a minha confissão
Não há o que perdoar
Por isso mesmo é que há de haver
Há de haver mais compaixão
Quem poderá fazer
Aquele amor morrer
Se o amor é como um grão
Morre e nasce trigo
Vive, morre pão

Wednesday, September 20, 2006

Um cockpit para Gandhi

Já está no ar a coluna "Um cockpit para Gandhi", no GPTotal. Achou estranho? Vá lá e entenda.

Monday, September 18, 2006

Bife à rolê

Minha avó Maria era uma trasmontana com grande talento para a liderança. Isso eu diria se estivesse traçando um daqueles perfis psicológicos de empresa. Em português de Portugal, eu diria que ela gostava de mandar e exercia enorme influência sobre os seus. O pendor para comandar tanto podia ser traço inato quanto forja da vida. Consta que perdeu a mãe muito cedo e se esmerou na criação dos irmãos menores. Por conta disso, só se casou aos 26 ou 27 anos, idade já crítica para uma mulher desencalhar na primeira metade do século passado. Conheceu meu avô no Brasil, ele também lusitano e bem entrado em anos. Devia ter uns quarenta quando juntaram os tamancos.

Talvez pela dureza da vida, ou por ser mesmo muito prática, Vó Maria tinha especial metodologia quando o assunto era comida. Não parecia muito afeita a pensar no tema. Comida era para ser comida e ponto final. Suspeito que tal abordagem fosse típica da geração de imigrantes a que pertenceu. A avó do meu marido, também de Trás-os-Montes, respondia curta e grossa quando uma das filhas questionava acerca de alguma iguaria sobre a mesa. “O que é isso, mãe?”. “É de comer e calar.”

Minha avó portuguesa fazia sempre o mesmo prato a cada dia da semana, como se a casa fosse um restaurante tipo prato feito. Com isso, não esquentava a cabeça nem na hora de fazer as compras. Era sempre tudo igual. Mantivemos o hábito de almoçar com ela todos os domingos, até sua morte, em 1981. Enquanto meu avô era vivo, o encontro era em torno da mesa caseira. Depois, ela passou a preferir restaurantes.

Lembro-me pouco, mas sei que nesses almoços privados havia sempre um macarrão de forno. Coisa prática de se fazer antes e finalizar na hora de servir. Cozinhava um talharini. Pegava uma forma de buraco, untava e passava farinha de rosca. Revestia a forma com fatias de presunto. Acomodava ali a massa cozida, intercalando camadas de macarrão com pedaços de queijo. Depois, batia uns ovos e jogava por cima. No forno, gema e clara batidas amalgamavam tudo, virava uma espécie de torta. Todo domingo, sempre.

Com as mães e avós daquela época, não tinha essa história de não gostar. A comida era aquela e pronto. Se gostava, comia. Se não gostava, fazia birra, apanhava antes e comia depois. Nunca levei dela nem palmadinha na bunda nem vi minha avó bater em ninguém. Mas, com aquela autoridade no olhar e no discurso, desconfio que nem precisava.

Terça-feira era dia de bife à role, que devia ser feito com coxão duro, recheado de várias coisas, entre elas, lingüiça. Meu pai sempre detestou carne de porco e, na certa, torcia o nariz para a brachola lusitana por conta do embutido suíno. Problema dele. Já adolescente, começou a ganhar asas nas rodas de uma bicicleta. Certa terça, já sentindo o refogado chiar na panela, resolveu livrar-se do desafeto gastronômico da semana. A única irmã, nove anos mais velha e já casada, morava uns bons quilômetros distante da casa materna, mas inventou de ir visitá-la. Um pouco para fugir do bife à rolê, muito mais para rever a mana. A diferença de idade não impedia o enorme afeto entre os dois, que fazem muita falta entre nós hoje.

Subiu na magrela e rumou para o Jardim da Glória, um simpático recanto entre a Aclimação e o Ipiranga. Sobe ladeira, desce morro, chegou à casa da irmã. Era terça-feira e, se você prestou atenção ao talento para influenciar pessoas da minha avó e ao título desta crônica, já sabe o que tinha de almoço na casa da minha tia, naquele dia.

Monday, September 11, 2006

11 de setembro - O que você estava fazendo?

Tive bronquite alérgica durante toda a infância. Mal de família. Alopatia, homeopatia, simpatia. De tudo, o mais eficaz era a tetraciclina, antibiótico danado que sossegava os brônquios no imediato, mas deixava seqüelas no futuro. Os dentes permanentes, ainda nem nascidos, vieram com uma coloração acinzentada que me mortificava. Não fossem minhas péssimas relações com a balança, durante muitos anos da vida, eu teria atravessado a adolescência com vergonha dos dentes. Anos depois, afinei a silhueta, daí mirei na boca. Meu médico me indicou o dentista, seu amigo do peito, e fui bater às portas do dr. Marcelo. Comecei o tratamento e ele me aconselhou: evite o café. Resolvi levar a orientação a termo bem naquele dia. O café da manhã foi sem café, mas dr. Marcelo falou, está falado. Nunca imaginei que seguiria tão à risca o que me diz um palmeirense, mas com ele foi e é assim.

Ajeitei a agenda de modo a ficar com a manhã livre e poder levar meu filho para fazer um exame. Um mês antes, uma infecção urinária nos assustou e a pediatra nos indicou uma bateria de procedimentos, para excluir suspeitas. Ultra-som das vias urinárias, lá vamos nós. Sempre adorei ultra-som, que conta a história na hora, sem depender de revelações posteriores. Depois, trabalhando muito com médicos, descobri que ultra-som é o que eles chamam de “operador dependente”, ou seja, a máquina só vai mostrar bem se o médico que o opera souber fazê-lo com competência. A médica japonesa que examinou meu filho devia ser das boas, porque poucas passadas do aparelho foram suficientes para ela dizer a frase que todos gostamos de ouvir de homens e mulheres de branco. “Está tudo normal.”

Enxaqueca é uma dor de cabeça lancinante. Parece haver uma mãozinha dentro de seus miolos querendo empurrar um dos olhos para fora. Há quem sinta enjôos e náuseas e quem veja estrelas. Nunca fui acometida por tais alucinações visuais – minha mente parece viajar por conta própria, sem o auxílio da dor. Na variedade de sintomas, todos parecem se unir em um desejo comum: um quarto escuro e silêncio. Quem já tomou remédio para enxaqueca deve saber que muitos deles são feitos à base de cafeína. A enxaqueca está muito associada a mudanças de hábitos: dormir menos ou mais do que se costuma, ingerir álcool ou alimentos gordurosos, ficar muito tempo ao sol, submeter-se a uma situação de estresse, beber muito café ou menos que de costume. Naquele dia, 11 de setembro, não bebi café algum.

Saí do centro de diagnósticos com a alma leve, certa de que meu filho não sofria de nenhuma anomalia nos rins ou na bexiga. Bem antes que a enxaqueca aniquilasse meu dia. Liguei o rádio na Bandeirantes AM e peguei uma entrevista começada. Um homem dava testemunho de um acidente ocorrido no World Trade Center. Achei que era o da Marginal Pinheiros, veja só. Ao longo da entrevista, entendi que era Nova York, que não era um acidente e que o entrevistado era jornalista e tinha sido meu colega veterano na universidade. Enquanto ele falava, outro tumulto. O segundo avião batendo na segunda torre. Ah, os jornalistas! O mundo inteiro sabia daquilo, mas eu tinha que contar para alguém. Liguei do celular para meu marido, que estava em reunião, já sabia mais ou menos do ocorrido, mas ainda não tinha noção da gravidade. Deixei meu filho em casa e fui trabalhar, como se fosse possível produzir alguma coisa naquele dia.

Na hora do almoço, fui correr meia horinha na esteira e gostei de ver todas as TVs da academia ligadas nos noticiários. O tradicional som tecno emudeceu para ouvirmos os repórteres. Lembro de um professor indignado com a atitude de uma aluna, que andava calmamente na esteira, escutando música em seus fones de ouvido. “Em que planeta essa menina vive?” Quando voltei para o escritório, estávamos sem luz. Pergunta daqui, reclama de lá, a concessionária de energia elétrica informa que a ligação havia sido desligada naquele dia, conforme solicitação. O peso na cabeça, que vinha se acentuando, começou a virar agudas pontadas. Solicitação de quem? Esbravejei ao telefone e solicitei urgente outro técnico no local. E ele veio e confirmou que tinha desligado a força do conjunto 33, conforme solicitação. Mas eu sou do 34!!! Eu falava e repetia, e a cabeça latejava. Antes de anoitecer, entreguei os pontos. Hoje não é dia, vou pra casa. Cheguei louca pelo quarto escuro, nem os noticiários da noite vi.

Foi assim meu 11 de setembro de 2001, e o seu?

Em tempo: meu tratamento de clareamento dental foi um sucesso retumbante. Prof. Dr. Marcelo Poloniato levou meu caso para congressos e chegou a receber aplauso em cena aberta quando mostrou minhas fotos de antes e depois! O escurecimento por tetraciclina era tido quase como um caso perdido na comunidade odontológica. E talvez os especialistas tenham descoberto que o café não prejudica o tratamento, porque é óbvio que, do dia 12 de setembro em diante, nunca mais fiquei sem café.

Sunday, September 10, 2006

The end

Revirei a caixa dos telex em busca de alguma novidade. "Tem notícia aí, Alves?", um dos editores perguntou. "Definiram o substituto do Gachot, um alemão. Peraí que vou olhar de novo o nome dele. Schumacher. Nunca ouvi falar." Ninguém tinha ouvido. "Escreve um módulo 100", pediu-me o chefe, indicando o tamanho da notícia. Módulo 100 era a mais curta delas, naquele projeto editorial da Folha.

Bertrand Gachot, titular da equipe Jordan, não correria o GP seguinte, na Bélgica, por um motivo esdrúxulo. Estava preso na Inglaterra, depois de uma briga de trânsito, na qual resolvera a contenda disparando gás paralisante no outro motorista. Assim começou a carreira de Michael Schumacher na Fórmula 1. Hoje, 10 de setembro, quinze anos depois, ele anunciou que ela termina no dia 22 de outubro, no GP do Brasil.

Vi tudo. E agora acabou. Semana passada, Agassi. Hoje, Schumacher.O futuro sorri a eles, também nos sorri. Os Stones lembrariam que o tempo está do nosso lado. Time is on my side, yes it is... Mas é difícil, difícil demais, levantar a âncora do passado.

Wednesday, September 06, 2006

A cerimônia do adeus

No ar, minha mais nova coluna no GPTotal, falando sobre a aposentadoria (ou não) de Michael Schumacher. Vê lá, vai!

Monday, September 04, 2006

Homem não chora

...


Desculpem a insistência no tema, mas estou mesmo sensibilizada com a aposentadoria de Andre Agassi. Os anos e a brutalidade do mundo vão se encarregando de endurecer nossos corações juvenis e chegamos à maturidade com tiques de ceticismo. Às vezes, nada parece sincero. Tudo pose, tudo fake, tudo feito para a TV. Mas, sei lá, Agassi me derrubou. Talvez por ter exatamente a mesma idade que eu, o norte-americano, ao dar adeus às quadras, me bateu de leve no ombro e cochichou: “é, mana, você está ficando velha.”

Agassi não encerrou sua carreira no auge da forma. Portanto, poucos apostariam que ele se despediria do tênis conquistando mais um título, como fez Pete Sampras. Logo, cada uma das três partidas que disputou no Aberto dos Estados Unidos tinha potencial para ser a última. A primeira, contra o romeno Andrei Pavel, não foi exatamente fácil. Agassi perdeu o primeiro set e venceu os três seguintes. A segunda, contra o cipriota Marcos Baghdatis, foi de arrancar o couro. Jogo com mais de três horas, decidido em cinco sets. Foi demais para o veterano.

Ontem, dia 3 de setembro, os cacos de Agassi entraram na quadra para enfrentar o alemão Benjamin Becker, que até agora só figura na história do tênis por ter vencido a última partida disputada pelo norte-americano. Esse Becker não tem nada a ver com o Boris, número 1 que dividiu glórias e títulos com Ivan Lendl nos anos 80. Só apareceu para ser o outro, a sombra, o J. Pinto Fernandes da história.

Drummond não escreveria sobre a derradeira partida de Agassi, um 3 a 1 qualquer, como tantos. Agassi perdeu, encaminhou-se para a rede, como pede a etiqueta tenística, cumprimentou o vencedor, foi para sua cadeira, sentou-se e começou a chorar. Talvez nessa hora, o poeta mineiro se animasse. A platéia estava lá para isso mesmo, por isso se levantou inteira e despejou-lhe palmas, gritos, vivas e mais lágrimas. Talvez nenhum espectador lá estivesse para ver a vitória, mas para presenciar a história. E a história só se faria com a derrota. Um bando de urubus, na verdade nua e crua.

Agassi, como era de se esperar, pegou o microfone e dirigiu à turba o discurso guardado na mente havia alguns meses. Palavras sem originalidade, juras de amor e gratidão. Poderia até soar fake, não fossem os soluços entrecortando a fala. E as lágrimas escorrendo, e aquela fisionomia de alegria triste que marca o ser humano nas horas cruciais. Aquelas horas estanques que determinam o nada será como antes. Casamento, formatura, despedida. Por mais aguardado o momento, por mais alvissareiro o futuro, é difícil levantar a âncora do passado. Alegria triste.

Ah, se os homens soubessem como amamos suas lágrimas...

O quanto ficam mais humanos, mais sensíveis, mais acessíveis, mais ternos, mais doces. Não, não queremos manteigas derretidas, bezerros desmamados, histéricos descontrolados. Não queremos e não seremos cataratas instantâneas a cada emoção ou contrariedade. Que nem homens nem mulheres tenham a prerrogativa do choro. Nem a do não-choro. Não sejamos modelos. Sem essa de mulher chora à toa. Nada de homem não chora. Homem não chora. Quem chora é gente.

Thursday, August 31, 2006

Nouvelle cuisine

Quinta-feira era dia de macarrão. Minha família não tem nada de italiana, nunca entendi por que se consolidou essa tradição, mas assim era. Talvez um hábito absorvido de fora para dentro de casa, pois todo restaurante tipo “prato feito” de São Paulo podia destacar-se pelo tempero, nunca pela originalidade. Segunda, virado à paulista. Terça, dobradinha. Quarta e sábado, feijoada. Quinta, macarrão. Sexta, peixada.

Lembro que o costume do macarrão às quintas foi particularmente forte no ano de 1980. Ah, a catequese... A turma de meninas seguia para a igreja lá pelas nove da manhã, comprometidas em assistir às aulas da dona Neusa. Uma das mães se encarregava de buscar todas – cinco ou seis – levava para a casa, servia o almoço e depois despejava o grupo na escola.

O cardápio era invariavelmente igual: salada de batatas, bife à milanesa e macarrão. Deus e Dona Neusa que me perdoem, mas eu não via a hora de acabar a aula, salivando pela mistura carbo-calórica que me aguardava. Deus teve de seguir me perdoando enquanto freqüentei a igreja católica e suas missas, porque continuei ansiando pelo fim do ritual, mesmo sem macarrão com bife à milanesa como prêmio, só esperando a parte da missa que mais me enchia de alegria, o “vamos em paz e o senhor nos acompanhe”.

Macarrão, naqueles tempos, não era massa nem pasta. Era macarronada e era muito diferente do que se pede hoje em restaurantes bacanudos da metrópole. Ninguém nunca tinha ouvido falar em grano duro, al dente, pesto, tomate seco, mussarela de búfala. Aliás, ninguém nunca tinha ouvido falar em búfala e rúcula era uma verdura amarguinha que, vez em quando, aparecia na salada, meio exótica.

Macarronada era assim: cozinhava o macarrão, esquentava o molho, escorria a massa, jogava em um pirex com um pouco de manteiga, misturava bem para o macarrão não grudar, jogava o molho, bastante molho, misturava tudo e servia, com queijo ralado por cima.

Daí veio a nouvelle cuisine e seus pratos lindinhos de se ver. Mataram a macarronada. O próprio macarrão foi para o limbo. Restaurante modernete que se preze não serve macarrão, serve pasta. Que é feita de sêmola de grano duro, ou coisa que o valha, cozida al dente, acomodada em um prato fundo, com uma conchinha espartana de molho pomodoro jogada no meio, e um buquê de algo verde decorando no centro. Praticamente uma obra-de-arte.

Nem vou entrar no caso do bife à milanesa, que apanhou tanto, mas tanto, a ponto de se transformar de suculento pedaço de carne em uma solinha de sapato chamada paillard.

Só que, de quando em vez, parece bater uma nostalgia de macarronada no público pagante. E uma pontinha de remorso nos chefs das casas badaladas. Daí colocam no cantinho do cardápio, bem blasé, quase imperceptível, um adendo salvador. Abaixo das pastas finamente acompanhadas de paillard, surge simpático o “molho extra”. Continua vindo a pasta, elegante com sua borda imaculada, o molho só ao centro. Mas junto vem o potinho de molho extra, para que o comensal chafurde feliz o macarrão naquele exagero de tomates pelados liquefeitos, transformando sua pasta al dente de grano duro em uma familiar, suculenta e saborosa macorronada.

Tuesday, August 29, 2006

Brevíssima aula de jornalismo

Ontem, noticiou-se a morte da suposta pessoa mais velha do mundo. Agora, leitores, respondam: quantas vezes, só neste ano, a pessoa mais velha do mundo já morreu? Mês sim, mês não, somos brindados com uma notícia desse teor. Ora, na faculdade de Jornalismo me ensinaram que notícia não é o cachorro que morde o homem, mas o homem que morde o cachorro. Portanto, onde está a notícia no fato de uma pessoa nascida no século 19 morrer em pleno 2006?

Sempre que me deparo com uma notícia dessa, fico procurando sua antítese, mas nunca achei manchete deste tipo - "Nasceu a pessoa mais jovem do mundo".

Um fato curioso relaciona-se ao segredo da longevidade desses centenários: o esporte. Jamais o praticaram.

Monday, August 28, 2006

O adeus a um americano de esquerda

...


Andre Agassi estréia hoje no Aberto dos Estados Unidos para dizer adeus. O jogador de 36 anos, atual número 35 do mundo, anunciou sua aposentadoria depois de 20 anos de carreira, 60 títulos conquistados em 90 finais disputadas. Em Flushing Meadows, o complexo que abriga o USOpen, Agassi reinou por duas vezes, em 1994 e 1999. No ano passado, perdeu a final para Roger Federer, o suíço número um do mundo.

Que sejam esses os fatos, o encerramento de uma carreira coroada de sucesso, não se discute. Mas por que, então, meu coração está apertado, como se estivesse me despedindo para sempre de alguém querido, como se este fosse o último dia das férias? Por que dói em mim a certeza do nunca mais, se sempre terei os tapes de seus jogos, se a qualquer tempo poderei relembrar aquele backhand espetacular?

Mais do que a esquerda mortífera, Agassi passeou pelo saibro, pela grama e pelos pisos rápidos munido de uma arma que não se conquista com treinos – carisma. Menino prodígio rebelde, cabelos em desalinho, norte-americano na bandeira, italiano no sangue e nas brigas com juízes de linha, de cadeira, nos gritos consigo mesmo. Tinha a cara dos anos 80, roupas coloridas, um jeito new wave de desafiar o aristocrático e chatinho mundo do tênis. Depois dele, só quem desarmou a sisudez das quadras imaculadas foi Gustavo Kuerten que, não por acaso, foi festejado após o primeiro dos três títulos em Roland Garros tanto pelo jogo quanto pelo sorriso cativante.

Na mesma proporção em que ganhava títulos, milhões e mulheres, Agassi perdia cabelo. As longas e despenteadas madeixas, sempre acompanhadas de faixas na testa, foram substituídas em 1995 por um “penteado” arrojado para aqueles tempos. Raspou a cabeça antes que outros branquelos como ele aderissem ao visual consagrado pelos negros do basquete. Altos e baixos se sucederam: em um ano vencia Wimbledon, no outro, uma operação no pulso. Quando muitos já se preparavam para acender a vela de sete dias de sua carreira, ressurgia fulminante.

Foi muito bom de marketing, casou-se com a bela Brooke Shields, naufragou com ela no casamento – uma das “boas” crises de sua carreira – virou ativista da Unicef, pareceu ter encontrado o equilíbrio no casamento com a alemã Steffi Graf, até hoje e para sempre meu grande ídolo no tênis internacional.

Milionário, consagrado, adorado por seu público, pô! O que faz persistir esse gosto de ressaca na boca da minha alma?

Penso, respiro, reflito.

Não é dos cabelos desarrumados de Agassi, nem de sua esquerda potente, nem de sua força de superação que sinto saudade. Um ídolo do esporte que se aposenta, depois de uma longa carreira que vimos e vivenciamos por vinte anos, leva consigo uma parte da nossa própria história. Pesa em nossos ombros com o determinismo de frases saudosistas que brotam antes que possamos escamotear. “Esse eu vi jogar”. E já não joga mais.

Thursday, August 24, 2006

I love you, Tony

...


“A senvergonhice reina, tão leve e leve pertencidamente, que por primeiro não se crê no sincero sem maldade.”(Riobaldo, Grande Sertão: Veredas, João Guimarães Rosa)

- Mãe, você, por favor, pode comprar duas caixas de Sucrilhos?
O pedido, com sentido de urgência, veio no meio da tarde de segunda-feira, soando inusitado. Raramente come Sucrilhos, duas caixas para quê? Justificativa rápida e, em sua lógica, justíssima. O amigo apareceu com duas bolinhas vindas de brinde nas caixas do cereal. Cada caixa, uma bolinha. Logo, duas caixas. “Você traz?”, insistiu.
Averigüei a descrição das tais bolinhas, para confirmar a suspeita. Só podia ser promoção do período da Copa. Em pleno agosto, já era, não vamos encontrar. “Mas você pode procurar?”, tornava a perguntar. Vencer o jogo, talvez. Entrar em campo, sempre. Para não transparecer derrotismo – “não vamos encontrar mesmo” – concordei em levá-lo ao supermercado, à noite.
Vasculhamos todas as embalagens de cereais disponíveis. A ressaca da Copa foi evidente, nada de bolinhas. “Vamos perguntar para alguém”, sugeriu, como se a dinâmica de auto-atendimento dos supermercados pudesse supor alguém atrás do balcão para dar conta de tudo que não se acha. Examinando uma das caixas, uma pista: www.sucrilhos.com.br.
Ainda na casa da avó, me fez suplicar informações para dona Kellog´s. O site tinha o indefectível “Fale conosco” e falei, pedindo ajuda. Onde uma mãe instigada poderia encontrar o brinde descontinuado para o filho? A resposta automática veio em segundos. No dia seguinte, bem cedo, uma resposta personalizada repousava em minha caixa postal. “O brinde a que a senhora se refere é o futebag, distribuído por ocasião da Copa do Mundo. Como já não é atual, será difícil encontrá-lo no varejo, mas teremos prazer em enviar uma unidade para seu filho. Por favor, informe o endereço completo.”
Claro que o fiz no mesmo instante, esperançosa e muda. Não se comenta esse tipo de expectativa com uma criança de seis anos. Você pode não ter filhos, mas já teve seis anos e sabe como o próximo domingo fica longe, como custa para chegar o dia de ir à praia.
Na sexta, chegando em casa, fim de tarde, um envelope alaranjado esperava embaixo da porta. Ele nem notou, claro, não esperava nada. Meu coração palpitou. Guardei as compras, limpei a área, fechei a porta, desliguei o celular. Nenhum intruso, visual ou sonoro, tinha o direito de macular aquele momento. Blasé, peguei o envelope e coloquei sobre a mesa. “Vem ver essa carta que chegou”, pedi. Antes de ver o próprio nome constante como destinatário, bateu o olho no logo, canto esquerdo do envelope. “Uma carta da Kellog´s?!”
Os olhos foram se arregalando e tive a impressão de ver as sinapses acelerando a cabecinha sempre tão veloz. “Abre, mamãe, me ajuda, será que mandaram a bolinha?”. Mantive a fleuma de não rasgar o papel. Alguns papéis devem ser guardados, como o envelope da primeira carta que se recebe. O brinde veio embrulhado em plástico, tal como devia vir na embalagem de Sucrilhos. Pôs a mão no peito, como acusando o coração disparado. “Ai, que emoção, nem acredito!”
O futebag é nada mais que uma bolinha de tecido, recheada com alguma coisa que podem ser pedrinhas, ou qualquer material que deixe o conjunto pesado. No ato, me lembrou aqueles saquinhos cheios de arroz que a vó Elza costurava para a gente jogar. Sabe como é? Uns saquinhos minúsculos, que o desafiante deve jogar um a um para cima, enquanto pega o outro, até encher a mão com todos eles.
Por coincidência, o futebag que veio tem a inscrição “1970” e três estrelinhas. O ano do tri, o meu ano. Nada mais que um saquinho. “Puxa, essa Kellog´s, hein?! Como foi legal! Agora, você tem que comprar Sucrilhos sempre!”
Antes que o coisa ruim passasse a mão sobre minha cabeça e me influenciasse a tecer comentários malévolos à empresa gringa – “safados, é assim que eles capturam seus clientes!!!” – a fada dos bons pensamentos me aconselhou. Foi um gesto simpático, nada mais que uma atitude gentil. Nada mais que um saquinho de pano. Só um sorriso, olhos arregalados, coração disparado, a primeira carta. Um gesto, tudo.

Monday, August 21, 2006

GPTotal, ano 5

Minha coluna de hoje, no GPTotal, comemora os cinco anos do site, lembrando 11 de setembro. O que tem a ver uma coisa com a outra? Quem ler saberá...

Thursday, August 17, 2006

Drummond, 19 anos



Eu estava no 3° colegial e, coincidência, estudávamos Drummond nas aulas de Língua Portuguesa daquela semana. Em casa, sempre tivemos o hábito de ouvir rádio desde cedo, então logo escutei a notícia de sua morte. Comentei com a Teca, queridíssima professora de Português, uma das responsáveis por eu ter me tornado profissional da linguagem.

Anos depois, na faculdade, usei trechos de "Os ombros suportam o mundo" em uma reportagem sobre uma sobrevivente de um campo de concentração. Drummond sempre me foi muito caro. São tantas suas qualidades, mas gostaria de destacar uma. Drummond experimentou e ousou com a linguagem sem se tornar uma caricatura. Subverteu as regras de métrica e rima sem, para isso, tornar-se ininteligível. Pelo contrário, é claro, límpido e direto, talvez por isso mesmo tendo se tornado um poeta tão popular.

Reproduzo "Sentimento do Mundo" e convido os amigos a opinar e sugerir outros escritos de Drummond, inclusive prosa, inclusive infantil.

Sentimento do mundo

Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer

esse amanhecer
mais noite que a noite.

Wednesday, August 16, 2006

Um pedido especial

Mensagem para todos os blogueiros e neo-blogueiros: agradeço imensamente pelos comentários recentes, muitos deles motivados pelo link no Blog da Soninha. Manda a boa etiqueta da blogosfera que os comentários sejam respondidos com rapidez, mas tive um contratempo hoje e, infelizmente, só vou conseguir dedicar a atenção que vocês merecem amanhã. Peço a compreensão de todos e agradeço!

Monday, August 14, 2006

Adrenalina, suor e Vivaldi

...



(vou introduzir um assunto recente mas, por favor, atentem para os debates nos tópicos abaixo, que continuam a todo vapor. Não vamos nos dispersar!)

A Corrida do Centro Histórico, cuja 11ª edição aconteceu ontem, em São Paulo, já se tornou uma tradição para os corredores paulistanos. É uma prova diferente de todas as outras, que normalmente acontecem em locais como a Cidade Universitária ou parques, como o Ibirapuera e o Villa Lobos. Correr pelas ruas do centro tornou-se um momento muito especial para mim, por muitos motivos.

Primeiro, mea culpa, porque sou uma paulistana de meia tigela, que não conhece o coração da própria cidade. Sou de uma geração de classe média criada longe desse burburinho. A infância e a juventude dos meus pais foi marcada por constantes idas ao centro, ou “à cidade”, como se costumava dizer. Os bairros não tinham todas as facilidades da região central, de forma que qualquer necessidade além do cotidiano implicava em uma visita ao centro. E essas necessidades iam de consultar um oculista a comprar tecidos finos. Estar no centro parece significar, para mim, a volta a um passado que nem é meu, afinal de contas.

Mas há outros motivos para meu carinho com a Corrida do Centro Histórico. O ritual que antecede a prova, por exemplo. É a única ocasião do ano em que tomo o metrô às 6h30 da manhã de um domingo. Na primeira vez, fui meio ressabiada, achando que seríamos só eu e poucas almas penadas. Logo descobri que o metrô paulistano pulsa cedo, mesmo em um domingo de agosto, habitualmente frio. Não foi o caso deste 13 de agosto, que amanheceu quente.

A arena montada pela Corpore, que organiza a corrida, também tem um charme especial. Estendem-se as barracas pelo Vale do Anhangabaú e eu, que nunca fui de passeatas e protestos, me sinto um pouco mais perto da história, do comício das Diretas Já, das comemorações nas Copas do Mundo, dos já longínquos títulos do meu (Las)timão. E o fato de estarmos ali, em lugar apropriado para aglomerações humanas, permite que encontremos conhecidos, troquemos impressões sobre a corrida, tudo muito bom.

Este ano, a Corpore introduziu uma prática muito simpática durante as provas. A exemplo de maratonas tradicionais, como a de Nova York, a organização programa apresentações de grupos musicais ao longo do percurso (fruto da parceria com o Conservatório Musical Souza Lima). Na prova de ontem, a largada foi brindada com um tenor cantando sucessos italianos antigos e outras peças para vozeirões privilegiados. Na Praça da República, uma cantora entoava Volare (Nel blu di pinto di blu). Achei que a coisa estava italianada demais para o meu gosto. Nada contra peças em italiano, mas me pareceu caricato.



Até que cheguei ao Pátio do Colégio e um grupo de câmara, composto por quatro jovens músicos, soltava no ar a melodia do Allegro da Primavera, “As quatro estações”, de Antonio Vivaldi. Deixei-me render pelos italianos: que cena bonita de se ver! Música erudita para todos, e com visível interesse dos transeuntes. Passei (claro!) muito rápido pelo local, mas pude perceber como tinha juntado gente em torno do pequeno palco. E, convenhamos, quem estava no centro de São Paulo, às oito e pouco da manhã de um domingo, não era a fina flor da elite paulistana, o que derruba a tese preconceituosa de que “música clássica é coisa de rico”. O culto à beleza, a fruição da arte é para todos.

Thursday, August 10, 2006

Ciranda de livros

O tema nasceu nas discussões do tópico abaixo ("Vamos defenestrar o ambíguo?") e, para minha grande satisfação, nos colocamos todos a falar sobre livros e experiências de leituras. Como o tema é vastíssimo e como eu não sou nada além de uma leitora dedicada, não terei pretensões de crítica literária. A idéia é compartilhar impressões sobre livros e literatura em geral e me comprometo, dado ao entusiasmo geral manifestado, a periodicamente retomar o tema da literatura, com foco em algum aspecto específico.

Para começar, sugiro que falemos de um livro que tenha marcado intensamente a vida de cada um. Quem gosta de ler certamente terá dificuldade em escolher um só, mas vamos tentar.

"Ciranda de livros" também é o nome da atividade de incentivo à leitura da escola do meu filho, o Gabriel. Cada semana, o aluno leva para casa o livro de um colega até que, encerrado o ano, todo mundo tenha lido o livro de todo mundo.

Vale, novamente, a indicação. Quem quiser saber mais sobre literatura, acesse O Biscoito Fino e a Massa, blog do professor Idelber Avelar que tem, inclusive, um Clube de Leituras virtual.

Começo falando de "Cem Anos de Solidão", de Gabriel García-Márquez.

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Realismo fantástico, fantasia real

"Cem Anos de Solidão", do colombiano Gabriel García-Márquez, lançado em 1967, foi provavelmente o primeiro livro "adulto" que li. Foi no abrasador verão de 1984, um mês antes que eu completasse 14 anos. Desde os sete, sempre fui uma leitora interessada, mas nunca havia me apegado a um livro como daquela vez. A versão que me caiu nas mãos, emprestada, tinha 364 páginas, que venci em quatro dias.

Não é totalmente verdade dizer que "Cem Anos" foi o primeiro livro de gente grande que li. Antes disso, meninota ainda, dediquei-me a alguns livros de Agatha Christie, autora muito apreciada por meu pai. Ao ler meu primeiro García-Márquez, tive a dimensão do que eram livros para entretenimento e o que era literatura (sem, por favor, entrar em juízos de valor, não por enquanto!).

Talvez tenha sido imprudência entrar na literatura pelas portas do realismo fantástico, esse gênero tão identificado a García-Márquez, que no entanto ele não fundou, mas que ficou indelevelmente associado à sua obra. Imprudência porque a impressão foi tão forte, à época, que depois fiquei algum tempo em dúvida: será que "Cem Anos" me marcou tanto mais por seu universo surreal do que pela qualidade da obra em si?

Afastei essa dúvida a cada nova leitura da obra, na medida em que a riqueza da linguagem, a fluência da narrativa e a exposição de tantos e tão diversos dramas humanos confirmavam que ali estava de fato uma obra-prima, independente do padre que levitava, aparições precedidas de borboletas, uma anciã que encolhia até quase caber numa caixa de sapatos, um bebê com rabo de porco devorado por formigas.

Gente muito mais gabaritada que eu já se debruçou sobre "Cem Anos de Solidão" para dizer o que é, afinal, a fantasmagórica Macondo, o que representa a figura do Coronel Aureliano Buendía, onde estão escondidos mitos milenares nos personagens e fatos da história, o significado daquele final a um tempo tão anunciado e chocante, tão óbvio e tão carregado de angústia. Pessoalmente, a experiência com "Cem Anos de Solidão" ganhou um capítulo riquíssimo e, ouso dizer, alentador, com a leitura de "Viver para Contar", a primeira parte da biografia de García-Márquez, lançada em 2003.

Nesse livro, o autor relembra sua infância, adolescência e os primeiros anos da vida adulta. Muitos dos personagens e fatos contidos em "Cem Anos" são reproduções fantasiosas de personagens e fatos de sua própria vida. Há um fato isolado do período que rendeu, sozinho, um livro inteiro, o também ótimo "Crônica de uma morte anunciada" (leitura recomendada e capítulo obrigatório para estudantes de jornalismo!) O alento vem justamente da percepção que a infância e a juventude de García-Márquez não foram nada de extraordinário, uma vida comum, como a de tantos de nós. E, no entanto, dessa vida ordinária, ele extraiu a matéria-prima para construir uma obra fanstástica, nos dois sentidos. E o alento é perceber que é possível fazer literatura a partir do dia-a-dia mais previsível. Transformar os fatos em um texto imortal é que são elas...

Quem quiser saber um pouco mais sobre "Cem Anos de Solidão" encontra uma breve introdução aqui.

Quem quiser puxar discussão sobre "Cem Anos", esteja à vontade. Quem quiser falar de outros livros, vambora!