Wednesday, August 18, 2010

Kleiton e Kledir


Nestes tempos de férias da Fórmula 1, aproveito um tempo raro para escrever novamente sobre música. A motivação, ora vejam, partiu do esporte. Liguei a TV na segunda-feira no programa "Bem, amigos", apresentado pelo Galvão Bueno, e lá estava a dupla de cantores e compositores gaúchos Kleiton e Kledir. Nossa, que sequência de flashbacks!

Antes que o conceito de dupla, na música brasileira, fosse imediatamente associado ao gênero sertanejo, os irmãos Ramil fizeram muito sucesso, mas por poucos anos. A carreira começou no meio dos anos 1970, como integrantes de um grupo de rock batizado de Almôndegas, que chegou a ter uma de suas músicas ("Canção da meia noite")incluída na trilha sonora da novela global "Saramandaia". Quando o grupo acabou, os irmãos resolveram continuar a carreira como dupla.



Em 1979, o primeiro grande sucesso - "Maria Fumaça", que disputou o Festival da TV Tupi daquele ano. O trenzinho acelerado de Kleiton e Kledir puxou as vendas do primeiro disco, que tinha outras músicas ótimas - "Vira, Virou", com participação do Ivan Lins, "Fonte da Saudade", "Roda da Fortuna", que também foi tema de novela (quem se lembra desta? "Cavalo Amarelo", da TV Bandeirantes) e até uma canção em tupi-guarani, chamada "Tassy".



No ano seguinte, a vocação para festivais dos gaudérios voltou a se manifestar. Inscreveram a bela "Navega, coração", que era apresentada com o auxílio luxuoso dos vocais do grupo Céu da Boca. Não ganharam. O prêmio ficou para a pobre Lucinha Lins, dona de uma das mais traumatizantes vaias de que se têm notícia, coitada. A música "Navega, coração" foi lançada no segundo LP da dupla, que tinha igualmente ótimas canções, como o mega sucesso "Deu pra ti", "Lagoa dos patos", com participação do MPB-4, "Paixão" e uma música ao estilo duelo de trovadores, não por acaso chamada "Trova", música que me divertia, principalmente pelo verso "eu não sou de perder trova pra gaúcho bunda mole". Nossa, eu achava aquilo tão corajoso e transgressor. Não tenho certeza nem consegui informações para confirmar, mas acho que "Trova" foi censurada na época, e talvez fosse por "tanta grossura", como diz a letra, mas também poderia ter sido pelos versos "daqui a pouco, se ofendemos de filho da ditadura, o homem pode engrossar, e fecha a tal da abertura".

Fui assistir Kleiton e Kledir no Palácio das Convenções do Anhembi. Havia shows lá praticamente toda semana e, como eu morava relativamente perto, lá vi Caetano, Rita Lee, Milton Nascimento, Eduardo Dusek, Ney Matogrosso, era uma festa. Quem não é daquela época ou não se lembra pode achar estranho que uma dupla de cantores e compositores gaúchos, que fazia música moderna mas de forte influência sulista, cantava com sotaque e incluía sons de violino e sanfona em seus arranjos fosse extremamente popular. Mas eram, inclusive com as crianças, provavelmente ainda pelos ecos de "Maria Fumaça".

Não sei ao certo se eu me apaixonei pelo Kledir nesse show ou se já fui a ele gamada no moço. Depois do Oscar e do Éder, da seleção brasileira de 1982, Kledir ganhou todos os meus suspiros entre os anos de 1983 e 1984. O show comendo solto e uma pequena multidão de crianças se esbaldando na frente do palco. Pois os gentis cantantes convidam a petizada a subir no palco. Estava eu entre eles? Claro que não! Eu tinha 13 ou 14 anos, e naturalmente já me achava fora da turma dos baixinhos. Mas meu irmão estava! E acabou ganhando um aperto de mão do Kledir, para minha inveja trepidante.

Era uma família toda musical, essa Ramil. Além dos dois, o irmão caçula, Vitor Ramil, revelou-se também um compositor extraordinário, depois virou escritor, como aliás também o é o próprio Kledir.



O terceiro disco da dupla não teve o brilho dos dois anteriores, na minha opinião. E também fez menos sucesso, mas não escapou da censura, tendo a faixa "O analista de Bagé" proibida para divulgação pública. Mas nesse disco, Kleiton e Kledir gravaram uma versão em português para "Bridge over troubled water", de outra dupla conhecidíssima - Simon & Garfunkel. Esta versão, batizada em português de "Corpo e Alma", celebra justamente a amizade entre irmãos, sejam eles de sangue ou de afinidade. Foi uma das músicas escolhidas pelo meu pai, ao lado de "Imagine", de John Lennon, para tocar em sua cerimônia da cremação.

Sunday, August 01, 2010

Uma tarde em 2010



Quem me dera, agora, eu tivese a viola pra cantar. Mas, a viola foi quebrada e jogada na plateia.

A piada contada por Roberto Carlos, nos bastidores do III Festival da Música Popular Brasileira, da TV Record, é uma das singelas revelações trazidas pelo documentário "Uma noite em 67", de Renato Terra e Ricardo Calil. O filme, de fato, não se presta a fazer revelações. É uma reconstituição de um acontecimento artístico fartamente documentado, referência para temas tão diversos quanto vaias, Tropicália, guitarras elétricas, Edu Lobo, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Mutantes, Sérgio Ricardo, Roberto Carlos cantando samba e além.

"Só queríamos fazer um bom programa de televisão, e que desse tudo certo", diz o produtor Solano Ribeiro logo no início do filme. Alheios a esse propósito simples, os atores desse programa acabaram fazendo uma revolução na música. Talvez Renato Terra e Ricardo Calil quisessem apenas fazer um documentário, mas promoveram um encontro histórico de gerações nas salas de cinema do Brasil.

Fui ver "Uma noite em 67" hoje à tarde com a minha mãe, frequentadora de vários daqueles espetáculos da TV Record. Ela não chegou a ver nenhum dos festivais in loco, pois conseguir ingressos para eles não era tarefa fácil. Mas viu vários programas como "O fino da Bossa" e "Bossaudade" sentada na plateia do Teatro Paramount, na avenida Brigadeiro Luiz Antônio. E assistiu a todos os festivais da Record pela TV. E torceu por Chico Buarque e Nara Leão, em 1966, defendendo "A banda", e manteve a aposta em Chico, em 1967, com "Roda Viva".



Já escrevi aqui e aqui que reverti meu sentimento quanto à nostalgia de um passado que não vivi. Mas o documentário "Uma noite em 67" me fez balançar do conformismo. É bom fruir a produção cultural daquela época com o filtro dos anos. É bom, sobretudo, não ter de tomar partido em uma circunstância tão esdrúxula quanto a passeata contra as guitarras elétricas mas, que diabos!, eu queria muito estar naquele teatro (ou, pelo menos, à frente de uma TV) naquele dia 21 de outubro de 1967!

Não vou me alongar na relevância dos festivais dos anos 1960. Zuza Homem de Mello já escreveu tudo o que precisava ser escrito sobre o tema no livro "A era dos festivais - Uma parábola". Também é inútil teorizar sobre o motivo pelo qual os festivais nunca mais foram como aqueles. O formato festival apenas reuniu em um mesmo palco, e com os ingredientes agudos da disputa, a extraordinária geração de artistas que surgiu naquele tempo.

O documentário "Uma noite em 67" torna-se indispensável para conhecer o tema por um conjunto de atributos. Em primeiro lugar, a reprodução das apresentações originais, e com as músicas exibidas integralmente. Depois de tanto videoclip, de tanta edição nervosa de imagens, de colagens e descontruções de narrativas, como é bom assistir a um filme que respeita o tempo das coisas - músicas, falas, a respiração do entrevistado. Apresentações no palco, entrevistas nos bastidores: está feita a reconstituição do festival. Ali, está o passado, contado e delimitado.

Mas "Uma noite em 67" não se limita a exibir imagens raras. A costura, também muito simples, é feita pelos depoimentos atuais daqueles mesmos personagens - Edu Lobo, Gilberto Gil, Chico Buarque, Caetano Veloso, Sérgio Ricardo, até Roberto Carlos falou. E ainda Paulinho Machado de Carvalho, um dos proprietários e diretor da Record, o próprio Zuza, consultor do filme, Nelson Motta, Sergio Cabral. E esta costura de depoimentos, ao mesmo tempo que traz à tona informações encobertas, parece ajudar esses mesmos personagens a mergulhar em si mesmos. Tocantes, auto-reflexivas, algumas falas desses artistas expõem o quanto aquela noite de outubro de 67 foi o marco zero de várias revoluções.

Ainda que Chico diga que raramente pensa naqueles tempos e que nem se lembre mais da letra de "Roda Viva".

Ainda que Caetano preferisse ter sua imagem descolada de "Alegria, Alegria".

Ainda que Gil revele o pânico sentido naquele dia e o compare, em nível de angústia, ao que sentiu ao ser preso.



Pois Chico revela que, depois daquilo tudo, acabou se sentindo sozinho, isolado como figura conservadora, o bom moço da MPB.

Pois Caetano localiza naquele evento, na reversão que fez da plateia - da vaia ao aplauso - o momento de se sentir forte para ir além e organizar o movimento.

Pois Gil, olhos a um piscar de derramar lágrimas, admite que ali percebeu a viabilidade de sua ideia libertária de música.

Sorte de quem viveu naqueles anos 1960. Sorte de quem assistir "Uma noite em 67".