Thursday, January 19, 2012

Mais de mim que de você



Passei os últimos dias postando vídeos de Elis Regina no Facebook. Músicas que me falam mais de perto, músicas menos conhecidas, com a pretensão de apresentar Elis para os mais jovens, ou para os que nunca se interessaram por ela. Antes de qualquer coisa, registre-se: é possível que Elis Regina seja não apenas minha cantora preferida, mas minha artista preferida, e coloque aí músicos, compositores, escritores, atores, todo mundo. Digo talvez porque, ombreando-se com ela, surge para mim Gabriel García Márquez. Mas não se trata agora do colombiano, vivíssimo em seus 80 e lá vai pedrada.

Hoje, faz 30 anos que Elis morreu e percebo que falar dessas três décadas pode significar falar mais de mim que de Elis. É só buscar na internet, nos livros. Tudo o que se tinha a falar da Elis artista já foi dito, inclusive por gente que conviveu com ela. Olhando assim, de relance, o tempo parece estar do meu lado. Estou viva, com saúde, tenho uma vida privilegiada e já vivi seis anos mais que ela. E almejo viver muitos mais, e partir desta bem velhinha, sem um milionésimo da comoção que ela causou. E fico achando que, como outros artistas mortos ainda jovens, Elis beneficiou-se do mito. Eu acompanhei a morte dela, com 12 anos incompletos. Foi a maior comoção que presenciei até então. Depois dela, só Tancredo e Ayrton Senna entristeceram tanto o Brasil.

Naquele mesmo 1982, eu vi a seleção brasileira de futebol jogar um futebol lindo e cair aos pés de Paolo Rossi. Ela, não.

Também em 1982, vi a Democracia Corintiana quebrar paradigmas e conquistar seu primeiro título. Ela, que era corintiana, não.

Em 1984, vi o movimento das Diretas Já, chorei sua derrota. Ela, que deu voz ao “hino da anistia”, não.

1985, e vi o primeiro presidente civil ser eleito, ainda que por voto indireto, depois de 21 anos de ditadura. Ela, não.

Em 1989, votei para presidente pela primeira vez, junto com meus pais, estreantes na função. João Marcelo, seu primogênito, imagino que também. Ela, não.

Em 1992, vi o movimento estudantil voltar às ruas, caras-pintadas, um presidente derrubado. Ela, não.

E, assim, vi a seleção brasileira ganhar dois títulos mundiais de futebol, o Brasil conquistar seis títulos de Fórmula 1, vi o Muro de Berlim cair, o socialismo ruir, a internet nascer, um presidente operário se eleger, Maria Rita gravar, o sistema financeiro internacional entrar em parafuso, bancos falirem, um negro virar presidente dos EUA, uma mulher, do Brasil. Ela, não.

E fico pensando – óbvio – se ela virou mito porque morreu cedo, e se estaria hoje grisalha, como Bethânia, ou rechonchuda, como Gal, relegada à condição de diva de um passado não muito distante, mas muito anacrônico para a maioria. Se estaria em paz com seu legado (ainda que não tivesse gravado nada, o legado existe e nos alimenta até hoje) ou se estaria inquieta, procurando gente nova para gravar. Ou reclamando que a MPB morreu.

Passei os últimos trinta anos vendo e vivendo coisas que ela não conheceu. Mas em cada um desses anos, em alguns mais, noutros menos, fiz tudo isso tendo como trilha sonora... Elis.