Sunday, August 12, 2012

Maria Rita, Dumbo e um rio de lágrimas


Indo para o trabalho, coloquei o CD para tocar no carro e, quando Elis começou a cantar “Travessia”, eu comecei a chorar. Ainda faltavam mais de doze horas para o show. Tentei me convencer de que não era difícil esperar até as dez da noite. Eu havia esperado trinta anos, caramba! Foi o dia inteiro assim. Cada vez que pensava que, dali algumas horas, estaria ouvindo Maria Rita cantar músicas de Elis Regina, o nó na garganta. Se eu não tivesse chorado várias vezes no dia 4 de julho, quando meu Corinthians venceu a Libertadores, acharia que havia algo de estranho comigo. Não há. Estou mais velha, finalmente aprendi a chorar.

Foi um dia tenso. Compromissos importantes e inadiáveis de trabalho, coisa à beça para fazer. Saí de um cliente às 17h, preocupada se não me atrasaria para o show... às 22h! Viver em São Paulo, hoje, é isso. Em “Transversal do Tempo”, Elis perguntava: “será que o amor é a ausência de engarrafamento?”. O amor talvez não seja isso, mas a felicidade de um paulistano, hoje, é percorrer dez quilômetros em menos de duas horas. Sair do trabalho, pegar o filho, fazer as unhas, dar comida ao rebento, deixar o rebento na casa do tio, ir encontrar o namorado, seguir para a casa de espetáculos. Maratona é comigo mesma, mas acho que os 42 quilômetros no Rio me foram mais leves.

E eis que entro no lobby do teatro e dou de cara com a camiseta estampada com a bandeira do Brasil, o nome Elis Regina no lugar de “Ordem e Progresso”, igual à camiseta com que Elis foi enterrada. Pronto. Baixa de novo a manteiga derretida, os olhos marejam, mas seguro a onda. Ainda não era hora de borrar o make up.

Alívio. Estou na fila G, o teatro ainda não está lotado. Cheguei. Chegou o dia. Enfim, relaxei. É claro que a Budweiser ajudou.

O show começa com um breve vídeo de Maria Rita explicando o porquê da homenagem. Trinta anos, em 19 de janeiro. Elis Regina causou um dos maiores traumas na história recente do Brasil. Eu, com doze anos, nunca havia sido tão impactada por uma notícia de morte. Maria Rita tinha pouco mais de quatro anos, na época. Eu – e um monte de gente – passei muitos anos acalentando sonhos. Primeiro, que a filha da Elis se tornasse cantora. Depois, que ela cantasse músicas da Elis. O primeiro sonho se realizou lá para 2002, quando começamos a ouvir, aqui e ali, notícias sobre a cantora Maria Rita Mariano. Gravou com Milton Nascimento. Quando a escutei pela primeira vez em “Tristesse”, emudeci. Ela não apenas cantava, como tinha o registro de voz muito semelhante ao da mãe.

O segundo sonho demorou um pouco mais. Em um especial da Globo, em 2007, Maria Rita cantou “Essa mulher”. Discreta, em um estúdio, sem parafernália. Eu até poderia me contentar. Mas foi impossível não almejar mais. E ali estava eu, a alguns minutos de ver realizado um dos maiores sonhos da minha vida.

As luzes quase todas se apagam. Os músicos entram no palco, Maria Rita entra em seguida a eles. Sem frescura, sem tapete vermelho, sem uma longa introdução instrumental que termine com um foco de luz sobre ela, mas como membro daquele time. Piano, baixo, guitarra, bateria e voz. Como uma artista musical integrada à sua orquestra. Como era Elis. Na abertura, “Imagem”, música que Elis cantava nos tempos do Fino da Bossa, na Record. Generosamente, Maria Rita começa o espetáculo agradecendo à plateia, posto que a canção é uma ode ao ouvinte, ao espectador, à razão de ser de qualquer espetáculo. E então soa a voz de Elis, em um breve discurso, enquanto Maria Rita se afasta para trás do microfone, que fica iluminado enquanto Elis “fala”. Maria Rita ataca de “Arrastão”, o primeiro grande sucesso de Elis.

Até então, eu estava feliz, empolgada, realizada, uma lady de maquiagem quase intocada. E a bandidinha me faz esta: sem prévio aviso, como na gravação original, solta um “não quero lhe falar, meu grande amor...”. Aquele verso que dói no estômago, trava a garganta e despeja hectolitros de lágrimas na plateia. Se não fosse aquele o show da minha vida, eu diria: “que mico!” No histórico dos meus vexames em público, este superou de longe o filme “Dumbo”, maior peça de bullying da filmografia infantil, que vi quando tinha uns quatro anos. Chorei tanto quando o elefantinho das orelhas enormes é separado da mãe dele que molhei a blusa da minha. Depois, eles ficam juntos, como convém a um bom Disney. Agora, estou diante de Maria Rita reencontrando sua mãe, e fazendo isso à nossa frente, e deixando a voz embargar algumas vezes, como em “Se eu quiser falar com Deus” ou em “Romaria”.



O show é extremamente bem encadeado. Maria Rita criou blocos temáticos, nos quais foi encaixando canções de vários períodos da carreira de Elis Regina. Juntou, por exemplo, “Vida de bailarina”, “Bolero de Satã” e “Águas de março” para falar de ídolos da adolescência da mãe que, depois, tornaram-se parceiros dela. No bloco “político”, novo desaguar de lágrimas. “Querelas do Brasil”, “O bêbado e a equilibrista”, “Menino” e “Onze fitas” me derrubaram novamente. Nessa altura, a lady já tinha ido pro espaço, minha cara estava vermelha e borrada. Maria Rita me deve um rímel. Ninguém conseguiu reunir discursos tão contundentes e de matizes tão diversos como fez Elis naqueles anos 1970. Escutar de novo frases como “quem cala sobre teu corpo consente na tua morte” é reverenciar uma artista corajosa, que deu voz a compositores destemidos, que ajudaram a dinamitar uma ditadura.

Ou talvez não seja nada tão nobre assim. Escutar, ao vivo, músicas que ouvi dezenas de vezes nos meus LPs ainda hoje preservados talvez seja só voltar à minha adolescência, quando descobri a música e percebi que queria ser jornalista. E voltar a um tempo em que eu tinha tantos sonhos não realizados (uma profissão, um amor, um filho, a Libertadores, Maria Rita cantando...), e projetava naqueles versos o futuro que eu achava ser o meu. Durante um tempo, eu achei que a gente se identifica com certas canções e acha que elas nos representam. Não é bem assim. Às vezes, a gente se encanta com uma canção e passa a perseguir aquele verso como modelo de vida. Eu não gosto de “Dona”, do Sá & Guarabyra, porque acho que ele descreve uma mulher como eu sou. Eu gostei de “Dona” ainda menina, e me moldei para ser aquela mulher para a qual não há pedras no caminho, nem ondas no mar, não há vento ou tempestade que impeça de voar. Ou, pelo menos, tento ser. Eu não me identifiquei com a obra de Elis Regina. Eu vivi trinta anos perseguindo uma grandeza, uma dignidade de vida que me aproximasse dela.

E ali está aquela moça, no palco, me lembrando de tudo isso. Não consigo escutar Maria Rita cantando uma música de Elis Regina sem pensar que é apenas e exatamente isso: uma cantora cantando a obra de outra. Não vejo traço de imitação, já encontro até colorações diferentes nas vozes das duas. E uma alegria extra foi ver que Maria Rita não quis fazer releituras da obra da mãe. Cantou todas as músicas praticamente da mesma forma que Elis fazia. E quem já ouviu músicas regravadas por Maria Rita sabe como ela é capaz de reinventar uma obra conhecida. Encarar esse projeto desta forma, sem a necessidade de autoafirmação, me fez sentir muito orgulho dessa cantora. “Redescobrir”, o show da minha vida, é uma homenagem à maior cantora do Brasil de todos os tempos. Que bom, Maria Rita, que eu estava lá. Obrigada por isso.