Sunday, September 24, 2023

Elis, Tom & a turma do bom-gosto

 


É impossível ficar uma hora e cinquenta minutos escutando a arte de Tom Jobim e Elis Regina e não sair com um sorriso no rosto. O documentário “Elis & Tom – Só tinha de ser com você” traz imagens da gravação do disco, lançado em 1974, bastidores dessa gravação, entrevistas recentes com personagens desse álbum e muita música. Como poderia ser uma experiência ruim ouvir “Águas de Março”, “Só tinha de ser com você”, “Pois é”, “Chovendo na Roseira”, “Modinha”, “Por toda a minha vida” e outras? Ouvi-las em ensaios, nas gravações, nas audições dos próprios artistas, ainda no estúdio, em vídeos promocionais do disco é puro deleite. E quando se lembra que tudo, absolutamente tudo ali exposto, é fruto de pura arte, sem recursos tecnológicos que operam milagres para melhorar a qualidade do som, inclusive afinar vozes, o deleite vira deslumbramento.

 

“Elis & Tom – Só tinha de ser com você”, no entanto, persegue a confirmação de uma tese:  a de que Elis se tornou uma cantora mais contida, técnica e precisa após a gravação desse disco. Além da tática “jornalismo declaratório” (se alguém disse, é verdade), o filme também comprova tal tese com gravações de Elis anteriores ao álbum gravado com Tom Jobim. Nelas, Elis aparece em performances grandiosas, soltando a voz em arranjos exuberantes, com muitas cordas e metais.

 

Elis, de fato, surgiu assim para a grande mídia sudestina, em 1964, quando se mudou de Porto Alegre para o Rio de Janeiro. Era a cantora “hot” em um ambiente Bossa Nova incensado como “cool”. Era uma intérprete vibrante, dramática, que agitava os braços enquanto vencia um festival, cantando “Arrastão” e ganhando o apelido de “Hélice Regina”. Era a anfitriã de um programa em horário nobre da mais importante emissora de TV da época. E, em que pese chamar-se “O fino da Bossa”, a atração trazia Elis e seu colega Jair Rodrigues embalados em sambas rasgados, em músicas de cunho social (“de protesto”), em uma efervescência que pouco ou nada tinha a ver com a sofisticação dos apartamentos refinados de Ipanema onde nasceu a Bossa Nova.

 

Elis, cantando Arrastão: Hélice Regina

A cantora continuou não sendo “cool” quando deu uma guinada, no final dos anos 1960, e incluiu Roberto Carlos, Beatles e Tim Maia em seu repertório, em uma fase de sua carreira que contou com a produção de Nelson Motto. Elis, também não era contida nem minimalista quando comandou outra atração de TV, ao lado de Ivan Lins, já no início dos anos 1970.

 

Mas nada foi como antes quando Elis encontrou em César Camargo Mariano seu mais frequente parceiro na música. Foram nove anos de conjunção musical (e casamento). O primeiro álbum dos dois juntos, em 1972, configurou um importante ponto de virada da personalidade de Elis como cantora. Foi naquele álbum, que contém a primeira gravação de “Águas de Março”, e também “Atrás da Porta”, “Casa no Campo”, “Nada será como antes”, “Mucuripe”, entre outras, que Elis despiu-se da grandiloquência dos arranjos e passou a entregar interpretações muito mais precisas, contidas, diretas.

 

O disco de 1972: o ponto dessa virada

Pianista e arranjador, César concebeu para esse primeiro trabalho dos dois um conceito musical que mesclava as sonoridades do samba e do jazz, com uma densidade sonora que incluía Elis não como uma crooner, que habitualmente se estimulava a cantar alto e forte para vencer com sua voz os instrumentos. Ali, ela passa a ser uma integrante daquele grupo de músicos ao seu redor. O que parece uma interpretação contida, quase minimalista de Elis, a partir desse disco, é o resultado de um equilíbrio entre vozes – do piano, da guitarra, do baixo, da bateria, de Elis.

 

O álbum seguinte, de 1973, que trouxe “Ladeira da Preguiça”, “Meio de Campo”, “Oriente”, “É com esse que eu vou”, entre outras, tem uma personalidade diferente do disco de 1972, mas continua seguindo a receita da precisão, do equilíbrio, de uma interpretação contida, afinada e afiada.

 

Por isso, parece incorreta a tese de que “Hélice Regina” tenha se tornado uma cantora mais sofisticada, precisa e “cool” apenas depois de gravar com Tom. Antonio Carlos Jobim foi um compositor extraordinário. Moderno, inventivo, revolucionário até. É correto dizer que, ao gravar com Tom, em Los Angeles, Elis provavelmente buscava acoplar sua imagem ao prestígio que o compositor brasileiro já tinha no exterior. Mas essa transmutação veio pelo menos dois anos antes do histórico álbum Elis & Tom.

 

Afirmar que Elis tornou-se uma cantora mais refinada depois desse disco é repetir a visão preconceituosa e elitista que classifica como música “de bom gosto” apenas o que tem a chancela das eminências pardas da dita MPB. Inclusive porque essa versão contida e minimalista da intérprete Elis Regina não se manteve como sua única versão nos oito anos que se seguiram, até sua morte, em 1982.

 

Dois anos depois de “Elis & Tom”, ela rasgava a voz em “Como nossos pais” e “Gracias a la Vida”, e emulava novamente as cantoras do rádio, como no início de carreira, em “Fascinação”, no também histórico “Falso Brilhante”. Alguns anos mais tarde, Elis perfilava-se de novo ao lado de orquestras exuberantes para soltar sua potência vocal em registros como “Cai Dentro” e “Eu, hein, Rosa”, e duelava prazerosamente com Cauby Peixoto em “Bolero de Satã”, qual uma nova versão de Angela Maria, uma de suas grandes referências.

 

Cauby e Elis, 1979: soltando as vozes

Não bastasse o que veio depois de “Elis & Tom”, convém parar para ouvir o que Elis produziu no Rio Grande do Sul, ainda adolescente, quando foi lançada no mercado fonográfico como um genérico de Celly Campello. Nos discos em que desempenhou esse papel, Elis já era capaz de interpretações contidas e românticas, porque era o que se esperava de uma cantora cuja aspiração maior deveria ser embalar o romance dos casaizinhos de sua geração.

 

Elis, aos 16 anos

Elis Regina amadureceu como artista, naturalmente, mas foi sempre uma cantora incrivelmente versátil, que moldava sua voz e sua interpretação ao momento que estava vivendo. Talvez, em 1974, quando se uniu a Tom, ela passou a cantar aquilo que a turma do “bom gosto” esperava dela. O que não quer dizer que ela não sabia fazer isso antes.

Thursday, January 26, 2023

É tudo culpa dela?



Quando uma mulher dá à luz, junto com a criança nasce uma entidade que vai acompanhar essa mãe por toda a vida – a culpa. Talvez exista algum mecanismo mental que faça com que a mãe se sinta culpada por não poder manter aquela criatura, que ela mesma produziu, para sempre na segurança do útero. Choros, cólicas, engasgos, tombos, notas baixas na escola, o vestibular, desilusões amorosas, multas de trânsito, demissões, dívidas, divórcio, tudo o que vier pela frente, na vida daquela criança já transformada em adulto, soará sempre para a mãe como uma falha dela mesma, como se ela pudesse ter evitado tudo isso, se tivesse prendido aquela criança em suas entranhas. Aquele pequeno e indefeso ser, no fundo, é um manancial de preocupação eterna, um pesadelo, um monstro.

Não é à toa que a personagem principal de “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo” tenha de enfrentar, em uma série de universos paralelos, uma entidade maligna que tem as feições de sua própria filha. Evelyn, a heroína da história, tem claras diferenças com a filha Joy, que se transforma na vilã Jobu Tupaki na realidade paralela. E é significativo que quem apresente essa vilã para Evelyn seja seu marido, Waymond, um sujeito metido a engraçadão que quer se divorciar da esposa porque, aparentemente, ela não o trata com muita gentileza.

Essa relação parece significativa porque, tão frequente quanto a mãe soterrada em culpa após o nascimento de filhas e filhos é a figura do pai carente, que se ressente da falta da esposa pré-parida, que antes só tinha olhares para ele. Erasmo Carlos até fez uma canção sobre isso (“Quando chego em casa, à noitinha, quero uma mulher só minha/ Mas pra quem deu luz não tem mais jeito, porque um filho quer seu peito”).

Mas Evelyn não é apenas uma mãe mergulhada em culpa e ressentimento com a filha que parece frustrar todos os seus planos. Ela é um burro de carga na empresa que administra com o marido e na qual estão encrencados com uma questão fiscal. Ela atende os clientes desse estabelecimento, uma lavanderia que parece ter tido dias melhores, faz a contabilidade do negócio (e naturalmente se complica com isso) e ainda tem de se haver com o pai idoso, um sujeito aparentemente conservador e invasivo. Aparentemente porque, de certa forma, o filme dá a entender que essa prevalência mental do pai sobre Evelyn pode ser uma dramatização excessiva que ela mesma faz do velho. Ou seja, culpa dela.

“Tudo em todo lugar ao mesmo tempo” é bom entretenimento, e cheio de bons momentos, enquanto não tenta amarrar aquele grande delírio mental como produto da instabilidade de uma mulher. Talvez seja fácil para o marido bobalhão pedir a ela que “seja gentil” e resumir as razões do casamento desgastado à brutalidade dela. Talvez seja impossível para ele entender toda a carga de culpa que o modelo de vida contemporâneo despeje sobre uma mulher.