Sunday, October 23, 2016

Mostra de Cinema de SP - O que vi até aqui (1)

De 20 de outubro a 2 de novembro, acontece a 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Cinéfila que sou, estou acompanhando a Mostra nos poucos horários que me restam fora do trabalho, mas já consegui assistir a filmes excelentes.

Tenho alguns critérios para escolher os filmes. Embora a Mostra sempre tenha homenagens e ciclos de determinados realizadores, meu foco principal são as novas produções. De maneira especial, gosto de ver o trabalho de jovens diretores (sim, é a busca pelo Santo Graal do "novo Tarantino, que teve seu primeiro longa, "Cães de Aluguel", exibido na Mostra de SP quando ainda era desconhecido do grande público.) Também dou preferência a mulheres na direção e, sempre que possível, a produções nacionais.

Aqui, pílulas sobre os filmes que vi até agora:

O sonho de Mara'Akame (México) - direção de Federico Cechetti
Primeiro longa do diretor mexicano, o filme é centrado no conflito entre pai e filho, mas logo é fácil perceber que aquele microcosmo reflete o conflito entre tradição e modernidade que permeia os países em desenvolvimento. Contraste, por sinal, é algo sempre presente no filme, inclusive com a alternância de claro e escuro, interno e externo, liberdade e opressão, realidade e delírio. As atuações naturalistas do elenco são muito bem conduzidas por Cechetti, que parece interferir minimamente nas cenas de teor mais intimista, aumentando a veracidade do enredo. O único senão do filme é a desconexão da história com o contexto ambiental exposto no começo e no final da produção. Ainda que o diretor tenha concebido o filme para exaltar uma região e uma tradição ameaçadas pelo avanço da "civilização", esse discurso é, no mínimo, tímido ao longo do filme. Atenção: há uma cena explícita de sacrifício animal.

Mercado de Capitais (EUA) - Meera Menon
Típico filme sobre o tema, no qual o enredo mostra-se sempre intrincado para a maior parte da plateia que não domina assuntos e termos financeiros. Isso não costuma ser um problema quando o mercado financeiro, em si, é pano de fundo para mostrar os conflitos pessoais, sociais e psicológicos que surgem como consequência. E esse é o maior problema de "Mercado de Capitais", que se mostra sempre muito raso e óbvio, embora paradoxalmente partindo de uma opção transgressora, ao colocar mulheres em papéis que, na vida e no cinema, normalmente cabem aos homens. Centrado na figura de Naomi Bishop (Anna Gunn, de Breaking Bad), "Mercado de Capitais" ensaia um discurso feminista, em seu início, mas ao longo da história, e em seu final, apenas repete chavões que poderiam também estar na boca de homens. Convencional, "Mercado de Capitais" tem suas virtudes, como a paleta de cores sempre tendendo ao cinza e prata, como se refletisse grandes centros financeiros, com seus prédios espelhados, vidros e aço escovado. Mas torna-se repetitivo, inclusive pela onipresença de uma trilha sonora meramente incidental que parece ter como única função preencher um vazio permanente.

Amor e outras catástrofes (Dinamarca) - Sofie Stougaard
Longa de estreia da atriz Sofie Stougaard, "Amor e outras catástrofes" é um filme surpreendente, baseado em uma história muito simples. Duas mulheres descobrem estar grávidas, ao mesmo tempo, e logo percebemos que as duas estão se relacionando com um mesmo homem. As semelhanças entre a esposa e a amante, no entanto, param aí, porque o primeiro ato do filme basicamente é dedicado a traçar o perfil de ambas e, se o roteiro incorre em uma pequena obviedade (a psicóloga que alcança o sucesso escrevendo sobre relacionamentos e, de repente, vê-se em um casamento destruído), a condução das duas histórias soa convincente. Sofie domina a alternância entre luz e sombra com técnica e propósito e, embora abuse de um recurso visual interessante na fusão de algumas sequências, concebe cenas fluidas geralmente usando uma câmera única em vários momentos. Construído como libelo de exaltação feminina, o filme talvez tenha seu ápice na cena em que a sogra da protagonista faz um curto e contundente desabafo contra os homens que a cercaram ao longo da vida. E a surpresa maior do filme revela-se em seu terceiro ato que, de forma natural, começa a reconhecer o humor no meio daquela sequência de tragédias pessoais, tornando-se uma narrativa muito divertida.

Elle (França) - Paul Verhoeven
Para este filme, prefiro simplesmente linkar a crítica do Pablo Villaça, do Cinema em Cena, mas queria compartilhar apenas uma impressão que "Elle" reforçou em mim. Isabelle Hupert, esse monstro da atuação, me fez lembrar a interpretação de Elis Regina para "Sabiá", de Tom Jobim e Chico Buarque. Nesta canção, Elis adota uma interpretação sempre tão suave e intimista que, à primeira audição, você parece ficar esperando a todo tempo o momento em que ela vai soltar a voz, gritar para o mundo a saudade contida naquela letra. E ela não o faz. E é genial justamente por não fazê-lo, porque a tristeza e a melancolia da música expressam isso de forma cortante. A Michelle de Isabelle Hupert, em "Elle", faz exatamente isso.

Pitanga (Brasil) - Camila Pitanga e Beto Brant
Descrever "Pitanga" como um documentário sobre "a vida e a obra" do ator Antonio Pitanga é reduzi-lo ao seu formato. A essência desse trabalho é a história do próprio cinema brasileiro, da emancipação do negro na sociedade, da inserção do artista negro em produções de massa, da censura e da ditadura no Brasil, da liberdade sexual, da luta pelas desigualdades e da desconstrução de papéis. "Pitanga", como o próprio Pitanga, é um ato de resistência em um momento tão difícil da história do Brasil. É uma reafirmação de que é possível sobreviver, com alegria, aos recorrentes golpes na autoestima do povo brasileiro.


Então morri (Brasil) - Bia Lessa e Dany Roland 
Mais de 500 horas de filmagens, dezenove anos de trabalho, e um resultado desconcertante. O documentário "Então morri" percorre cenas da vida de uma mulher, da morte ao nascimento, no sertão do Norte e do Nordeste brasileiro. Na sessão de estreia, na Mostra, os diretores Bia Lessa e Dany Roland contaram que a opção por conduzir o documentário a partir da história dessa mulher, repartida em várias histórias de mulheres diferentes, aconteceu depois da captação desse vasto material. Não por acaso, o trabalho é dedicado ao cineasta Eduardo Coutinho, que participou da produção e, inegavelmente, é uma influência visível na construção desse verdadeiro tratado sociológico brasileiro. (A noiva, que aparece na foto acima, protagoniza uma das cenas mais tocantes do filme e, confesso, suas lágrimas não me saem da cabeça...)