Sunday, July 16, 2017

Carros 3: a mulher e o espaço concedido

O novato Jackson Storm (à esquerda) e Relâmpago McQueen
A franquia “Carros” beneficiou-se largamente da evolução das técnicas de animação no intervalo de onze anos que separa o primeiro filme da série, de 2006, do terceiro, recém-lançadono Brasil. As cenas de corrida são realistas a ponto de parecerem transmissões de provas de Nascar, o campeonato norte-americano mais famoso de carros de turismo. E aparece aí um dos problemas de “Carros 3”: são poucas cenas de corrida.

É certo que, desde o primeiro filme, a franquia “Carros” apoia-se no automobilismo como pano de fundo para discutir outras questões: a tradição suplantada pela modernidade, o surgimento de cidades-fantasma, a desvalorização de pessoas e profissionais mais velhos, meio ambiente, ganância, lealdade e amizade. Não é diferente agora: “Carros 3” é um filme sobre conflito de gerações, não sobre corrida. Mas é uma pena que justamente o melhor do longa – as corridas – ocupe tão pouco espaço, na comparação com as cenas de fundo moral.

Relâmpago McQueen, o personagem principal da franquia, é apresentado neste terceiro filme como um veterano multicampeão da Copa Pistão, vencendo corridas e campeonatos quase “no piloto automático” e vivenciando a competição com seus pares em clima de camaradagem. Até que uma nova geração de pilotos – forjada em simuladores de corrida – desembarca na categoria, liderada pelo novato Jackson Storm, e começa a desbancar os velhos competidores. Na ânsia por recuperar o antigo posto, McQueen sofre um acidente. Na volta às pistas, conta com o apoio de um novo patrão, que comprou sua antiga equipe, e a assessoria de uma preparadora de pilotos, Cruz Ramirez.

McQueen e a preparadora Cruz Ramirez

A ação do filme será toda centrada nessa nova dupla – McQueen e Ramirez – e é justamente nessa relação que o filme vai se apoiar para mostrar o choque de gerações. A ideia é contrapor o velho Hudson Hornet, antigo tutor de McQueen, mostrado em muitas e sentimentais cenas de flashback, a McQueen e sua jovem preparadora. Um “baby boomer”, um representante da geração X e um millenial: a reflexão sai das pistas e se aloja em praticamente qualquer ambiente corporativo.

Essa discussão de valores entre gerações ocupa a maior parte do filme e compromete enormemente o ritmo de “Carros 3”, ainda que o roteiro tire da cartola uma exótica prova disputada na terra, em uma sequência com elementos inusitados de “2001 – Uma odisseia no espaço”, “Kill Bill” e “Clube da Luta”. É nesta sequência que o filme introduz uma personagem feminina que começa a delinear a virada da história. Miss Friter, uma jamanta brutamontes, é a corredora “fêmea” com prazer sádico em derrotar os adversários. Depois dela, o espectador vai conhecer Louise Nash, uma veterana dos tempos de Hudson Hornet que diz ter roubado a credencial para poder participar de uma prova, algo vedado a “mulheres” na sua época.

Miss Friter: jamanta brutamontes sádica

A inclusão feminina na disputa surge como um alento naquele universo cheio de testosterona da franquia “Carros”, mas ainda que apareçam como inspiração para a grande virada da história, em seu ato final, a condução dessa virada soa frustrante. Ao contrário das antecessoras, a nova competidora alçará seu posto em um claro movimento de concessão masculina, aplicada como antídoto à sua evidente insegurança.


A impressão que fica, ao final de “Carros 3”, é a de que a Disney conduziu pesquisas junto à audiência que mostraram a necessidade de um maior protagonismo das mulheres na história. Sabe aquela situação? “Precisamos falar alguma coisa sobre as mulheres. ” E o excelentíssimo vai lá e fala que mulher é importante para conferir os preços no mercado. Mais ou menos isso.

Friday, July 07, 2017

Poesia sem fim: a arte catártica de Jodorowsky

Vida passada a limpo pelo crivo da arte
“Na velhice, você se desprende de tudo. ” Surgindo como uma espécie de consciência de si mesmo no autobiográfico “Poesia sem fim”, o diretor chileno Alejandro Jodorowsky, aos 88 anos, verbaliza ao final de seu mais recente longa algo que vai se tornando claro ao espectador durante os 128 minutos de filme. Aquele é um exercício catártico, de um homem apaziguado com seus dramas familiares, mas de um artista inquieto, em que pese a idade.

O conselho de desprendimento para o jovem artista, vivido por Adam Jodorowsky (filho do diretor), parece seguido à risca na concepção do filme. O velho diretor desprende-se inclusive do simulacro que habitualmente cerca a obra de arte e, logo no início, Jodorowsky menino surge ao lado dos pais em um bairro que não se pretende outra coisa que não cenário. O recurso vai se repetir muitas vezes durante o filme, com homens vestidos de preto compondo ou desconstruindo ambientes, sem cerimônia.

O jovem Alejandro (Jeremias Herkovits) e o diretor, enquanto consciência
Como em seu longa anterior, “A Dança da Realidade”, primeira parte dessa jornada autobiográfica, os pais do artista surgem em representações alegóricas. O pai, vivido por outro filho do diretor, Brontis Jodorowsky, é um tirano de inclinações nazistas, que oprime inclemente a vocação artística do garoto. A mãe, uma iídiche mama típica, vivida pela extraordinária Pamela Flores, canta dramaticamente todas as suas falas, como se estivesse em uma ópera eterna. Já no início do filme, um elemento visual importante surge na tela: bicicletas, e elas voltarão à história em momentos cruciais da narrativa.

A ruptura do jovem Alejandro com a família não poderia ser mais literal. Ao ceifar a árvore no quintal da avó, ele se desprende de sua genealogia e assume o risco de ser artista, abraçando uma vida que será, em tudo, diferente da rotina familiar. A paleta de cores do filme acompanha a mudança. Saem o marrom, o ocre e o vermelho envelhecido da casa paterna para explodirem as cores vivas dos artistas e das obras que passam a circundar Alejandro.

A presença dramática da mãe permanecerá relevante, transformada na colossal mulher que se apresenta como a primeira relação amorosa de Alejandro. Freud explica. E continuará explicando com a presença de espelhos que se multiplicam na história, como no personagem Enrique Lihn (Leandro Taub), quase um duplo do jovem poeta.

O espelho: presença recorrente em "Poesia sem fim"

Com fotografia de Christopher Doyle, “Poesia sem fim” não se pretende nunca naturalista. Se esta é uma história de vida passada a limpo, ela chega pelo crivo da arte, como se saída mesmo da mente do artista, em cores por vezes fortes e contrastantes, em outras, opacas e minimalistas. Os cenários e as situações são surreais, os diálogos, muito mais idealizados do que realistas. Cercado de uma trupe de artistas, de novo Alejandro se vê cercado de bicicletas, como no cabide da casa de Enrique Lihn ou no passeio que leva o grupo de volta ao bairro da infância do poeta.

O rescaldo da antiga residência revela objetos e lembranças dos tempos da opressão paterna e da presença ostensiva da mãe. Entre eles, de novo, a bicicleta, agora queimada, como símbolo da ruptura definitiva, um “rosebud” às avessas. A cinta da mãe, presa a balões que a elevam para a liberdade do céu, surge como homenagem àquela figura trágica que talvez tenha sido tão ou mais vítima do jugo paterno que o jovem Alejandro. O ambiente do país, entregue a um salvador da pátria fascista, típico das Américas, ancorado na perene luta contra a corrupção, oferece o argumento definitivo para a partida do poeta.


Alejandro segue para a Europa, não sem antes confrontar-se novamente com o pai, lutando literalmente com o velho tirano, depois de quebrar... um espelho. Filme ou psicanálise? Freud na veia, de novo. “Ao não me dar nada, você me deu tudo”, diz o filho já envelhecido para o pai, em uma conciliação só possível pela arte. Poesia pura, “Poesia sem fim”.