Thursday, July 12, 2012

Maratona do Rio de Janeiro

Do Pontal do Tim Maia, na praia da Macumba, até o Aterro do Flamengo, são mais ou menos 42 quilômetros. Percorri esse trecho, com alguns desvios, no último domingo, dia 8 de julho de 2012. Foi o percurso da minha primeira Maratona, o capítulo mais recente de uma obsessão que comecei a cultivar há quase treze anos, no último Réveillon de uma era.




Em dezembro de 1999, eu estava grávida de três meses do meu único filho, Gabriel. Pouco antes da Ceia de Ano Novo, um dos convidados chegou à festa exibindo uma medalha da Corrida de São Silvestre. Eu não estava gordinha só por estar grávida. Eu tinha sido gordinha praticamente toda a vida. Olhei para a medalha e pensei alto: “Um dia, ainda vou fazer essa corrida.” Meu irmão, Gustavo, cinco anos mais novo, lançou a pedra fundamental da ideia fixa. “Duvido.”



Gabriel nasceu em junho de 2000. Se a gravidez e o parto foram tranqüilos, o mesmo não se deu com a amamentação. Demorei alguns dias para me adaptar à tarefa e, depois de muitas orientações e alguns palpites, consegui chegar a um padrão ideal na nova rotina. A tensão do período foi dividida com outra, muito maior. Em setembro, poucos meses após o diagnóstico, meu pai morreu de leucemia. Amamentando meu filho e vivenciando a agonia do meu pai, emagreci como nunca. Quando fez nove meses, um dia, sem aviso prévio, Gabriel olhou para o meu peito com cara de nojo e não quis mais mamar. “Perdi meu lipoaspirador natural. E agora?”



Foi assim que abracei a atividade física, em abril de 2001. Timidamente, comecei fazendo um pouco de musculação e caminhando na esteira. Da caminhada ao trote. Do trote à corrida leve. E daí a experimentar uma aula de ciclismo indoor, ou spinning, ou bike class, como queiram. A primeira corrida foi uma Maratona de Revezamento do Pão de Açúcar, convidada por uma colega da academia a completar uma equipe de quatro pessoas. Corri 10 km em 58 minutos e adorei. Como já trabalhava por conta própria e só conseguia uns dias de folga no final do ano, ia fazendo minhas provinhas de 10 km ao longo do ano, e acabava sempre frustrada por sair de São Paulo no Ano Novo e não correr a São Silvestre.



Em 2006, mudei de planos em relação à viagem de fim de ano e fiz a estréia na corrida do dia 31 de dezembro. Claro que a primeira ligação pós-prova foi para o meu irmão. Quatro São Silvestres no currículo, mais de 50 provas (com percursos de 10 km, 12 km e 21 km), eu continuava resistindo à ideia de fazer uma Maratona. “Deus me livre... O homem que deu origem a essa prova correu a distância para dar um recado, chegou e morreu!”. Mas, perto de completar 42 anos, a hipótese de correr 42 km foi se tornando mais atraente. Em 2011, graças a uma estupenda decepção, o projeto Maratona instalou-se definitivamente, e se concretizou poucos meses depois.



Fazendo limonada



No final do ano passado, a organização da São Silvestre anunciou que a prova não iria mais terminar na Avenida Paulista. Fiquei arrasada. Escrevi este post e me alinhei a outros jornalistas e treinadores de corrida em um movimento que tentava sensibilizar os responsáveis pela decisão. Capitaneando o grupo, meu amigo Ricardo Capriotti, jornalista da Rádio Bandeirantes. Na primeira reunião, conheci a treinadora Martha Dallari, que eu já escutava no programa “Fôlego”, apresentado pelo Capriotti. Além de empatia imediata, percebi que tinha encontrado uma profissional extraordinária. A São Silvestre não terminou na Paulista, minha frustração continuou, mas do limão fiz uma limonada, mantendo contato com a Martha. Fiz 42 anos em fevereiro e, dias depois, marquei um café com a treinadora e pedi que ela me orientasse na empreitada de correr minha primeira Maratona.



Ela estava treinando para a prova Cruce de los Andes, duríssima competição realizada no Chile, em fevereiro, e já inscrita para a Maratona do Centenário dos Jogos Olímpicos de Estocolmo, em julho. Martha é uma treinadora diferente: orienta seus atletas individualmente, dando atenção exclusiva a cada propósito. E ainda é professora universitária, e “mãe” do Cacareco, um adorável representante da raça whippet. Resumindo: parecia que não haveria tempo para encaixar minha empreitada nessa rotina, mas, generosamente, Martha aceitou meu pedido e começamos a treinar no dia 3 de março, para a Maratona do Rio de Janeiro, marcada para 8 de julho.



A ideia de correr no Rio foi da treinadora. Em princípio, eu queria disputar a Maratona de São Paulo, mas a antipatia com a organização da prova – a mesma da São Silvestre – logo nos fez abandonar a ideia. Ficamos entre Rio e Buenos Aires, escolhendo a prova carioca por uma questão climática. Se treinasse para correr na Argentina, teria de encarar a fase mais pesada dos treinos no Inverno. Sensível ao frio, dada a crises de rinite e sinusite nesse período, bati o martelo pelo Rio e segui quase à risca a planilha confeccionada pela Martha. O “quase” ficou por conta de adaptações inevitáveis ao cotidiano de jornalista e mãe separada que trabalha muito, inclusive aos domingos, semana sim, semana não.

Com Martha Dallari, no primeiro treino de 30 Km, na USP



Martha – que além de doutora em Educação, mestre em Administração, é economista e matemática – fez uma planilha cheia de variáveis, que previam treinos, folgas, provas, finais de semana com o Gabriel e provas de Fórmula 1 aos domingos. Parecia impossível que o final de semana depois de cinco dias inteiros de chuva torrencial fosse dar treino. E dava. Era improvável que o trânsito fosse cooperar naqueles treinos de sexta-feira pela manhã, a ponto de garantir tiros de velocidade no Pacaembu. E cooperava. O Ibirapuera lotado do sábado de manhã se abria em alamedas tranqüilas no final da tarde. A Cidade Universitária funcionava na emenda do feriado. E Martha, que se achava “a filha mimada de Deus”, começava a achar que tinha encontrado alguém ainda mais protegida, e sempre dizia que “ele” queria que eu fizesse essa Maratona. No final, já variava a frase. Deus nem queria mais que eu fizesse. Iria correr junto comigo, porque não era possível tanta coisa dar certo em um treino só...



42 anos, 42 quilômetros



A preparação de quatro meses daria um livro. Aliás, quem sabe... Mas isto é um blog, não um livro. Pulemos os detalhes. Cheguei ao Rio na sexta-feira, dia 6 de julho, fim do dia. Flashback da primeira vez que estive na cidade, em 1980, também chegando de carro e enfrentando um engarrafamento danado. Em 1980, pela Avenida Brasil. Desta vez, pela Linha Vermelha. Dia seguinte, um sábado de Verão em pleno julho. Deu praia de manhã, depois fui buscar meu kit para a corrida. Eu, que adoro o calor, estava começando a ficar cabreira. Se estivesse aquele sol no dia da corrida, eu estaria lascada. Mas, como sou a nova filha mimada de Deus, estava chovendo fino quando cheguei ao Aterro, para pegar o ônibus da organização que nos levaria até a largada, pra lá do Recreio dos Bandeirantes.



Martha foi se despedir e me dar as últimas dicas mas, principalmente, transmitir tranquilidade. Eu estava emocionada desde a quarta-feira anterior, quando meu Corinthians ganhou a Libertadores pela primeira vez. E sempre ficava com os olhos cheios d´água ao pensar na corrida, nos últimos dias. Quis juntar uma emoção com a outra e resolvi correr com uma camiseta nova do Timão, em vez de usar a camiseta com a inscrição MMD – Movimento na Medida da Diversão, nome da assessoria da Martha que, aliás, formam suas iniciais. Cheguei a ficar chateada por ter feito essa escolha. Eu devia mais à Martha que ao Corinthians, e usar a camiseta seria uma forma de homenagem. Mas, escolha feita, camiseta vestida, embarquei para a Praia da Macumba.

Timão pelas ruas do Rio de Janeiro


Mais de uma hora de ônibus, e a largada não chegava. O motorista parecia estar perdido, e chegamos uns quinze minutos antes do horário previsto. Tempo para um pit stop, uma barrinha e, meio atordoada, larguei para minha primeira Maratona. Nos planos (devaneios?) dos meses anteriores, eu fantasiava que iria fazer associações mentais a cada quilômetro, tentando relacionar cada um dos 42 km aos 42 anos da minha vida. Delírio. Com chuva quase todo o tempo e um vento forte que nos empurrava em direção ao Aterro (sou a filha mimada de Deus, lembra?), eu só pensava na prova. O longo trecho entre o Recreio dos Bandeirantes e a Barra era monótono – como a Martha havia dito – e tinha uns olhos de gato no asfalto a cada 200 ou 300 metros. Fiquei o tempo todo preocupada em manter o ritmo, cuidar da hidratação e acertar a pisada, evitando os olhos de gato. Não pensei na minha vida, só na corrida da minha vida.



Eu, que sempre fui obcecada em baixar tempo, fui para o Rio disciplinada a não pensar nele. Não tracei metas de desempenho e tinha dois únicos objetivos: completar minha primeira Maratona e correr o tempo inteiro, sem parar nem andar. Cumpri ambos, mas hoje reavalio se a obsessão por não parar nem andar me foi mesmo útil. Mantive um ritmo extraordinário na primeira metade da corrida. Fiz os 21 km em 1h58. Mas reduzi drasticamente a velocidade na segunda parte e acabei completando o percurso em 4h18. Por que reduzi? Foi pelas subidas do Túnel do Juá e da Avenida Niemeyer? Ou pela temida “parede dos 30 km”, que Martha jurou para mim que não existe, e talvez não exista mesmo, mas um mané resolveu ficar me falando dela durante uns dois quilômetros, ainda na Barra? Dava outro livro... Vamos em frente.



A Maratona do RJ foi extraordinariamente bem organizada. A questão da hidratação, um primor. Além dos postos de água a cada 2 km, uma novidade maravilhosa: isotônico em saquinhos, na quantidade certa, evitando o desperdício e muito mais fácil de tomar que em copo. A chuva afastou um personagem que teria sido muito bem-vindo: o público. É chato correr sem platéia, algo a que estamos acostumados em São Paulo, cidade sempre muito fria em relação à maioria de seus eventos esportivos. Fosse um domingo de sol, seria inesquecível correr pela orla, com as palavras de incentivo da torcida, que não teria restrição para chegar bem perto dos atletas. Não se pode ter tudo.



Na falta das palavras de incentivo, outros inesquecíveis surgiram. A saída do Túnel do Juá, por exemplo. Escuro, claustrofóbico, só digerível porque foi ali, afinal, que soltei meu mais encorpado brado de “vai, Curíntia” em toda a prova. Na saída, a visão do Atlântico sob chuva, ondas batendo nas pedras, ilhas ao fundo, e a caipira aqui se põe a chorar. Muita beleza, muita alegria, muita sensação de ir além, e poder tudo. A camisa do Corinthians, que quase virou drama, tornou-se meu cartão de visita. “Vai, corintiana”, “É isso aí, campeã”, “Boa, Corinthians” foram me acompanhando ao longo do trajeto.



Quase tudo



Correndo pela primeira vez por tantas horas seguidas, acabei me lembrando do piloto Ayrton Senna. Certa vez, pilotando em Mônaco, ele disse que tinha visto Deus. Pois eu lhes digo: em esforço extremo, a cabeça começa a girar. A confusão mental me levava, em certos trechos, a não lembrar se eu estava no quilômetro 36 ou 34, se ali já era Copacabana, ou se eu nem tinha saído de Ipanema. Nessa circunstância, eu acho que vi Deus, Tio Patinhas e a Carmen Miranda. E, por sorte (ou treino na medida exata), não me doía nada, além de um grande desconforto nas unhas dos pés, que estavam curtas, antes que me perguntem.



Gabriel, no pódio: para o pequeno repórter, o mais importante era informar que Webber vencera o GP da Inglaterra



Mesmo sem câimbra (ô palavra feia!) ou dores musculares, o cansaço e o excesso de chuva me consumiam quando cheguei ao Flamengo. Ao ver as barracas das assessorias de corrida, prenunciando a chegada, ganhei um turbo nas pernas. Voltei a aumentar o ritmo e, maloqueiramente, fui gritando palavras que misturavam manual de motivação pessoal com gritos de guerra da Gaviões da Fiel. O local estava mais movimentado que todo o restante do trajeto, e as pessoas à beira da pista se esmeravam em aplaudir e proferir palavras de incentivo aos sobreviventes.

Edu, depois das lágrimas



Entrei na alameda que conduzia à linha de chegada e vi o Gabriel, o Eduardo e a Martha, logo depois do pórtico. O locutor, alertado pela Martha, chamava meu apelido: “Vai, Lelê! É a primeira maratona da Lelê!” Cruzei a linha, corri em direção a eles. Fiz uma reverência à Martha, mandei beijos ao Gabriel e ao Edu. Gabriel, repórter nato, gritava: “Webber, Webber!”, informando que o piloto australiano havia vencido a corrida que não comentei pela rádio, por motivos de força maior. Eles chegaram perto da grade que separava os atletas do público. Gabriel não entendeu minhas lágrimas. Edu não só entendeu, como me acompanhou. Martha me abraçou e enalteceu meu bom estado. Nos últimos meses, ela escrevia e-mails e mensagens para mim acrescentando letras à palavra "maratonista". Os últimos, vinham com maratonist. Faltava pouco. Me abraçou e me chamou de maratonista. Ela precisava dizer que eu estava bem, porque sabia o quanto eu estava me sentindo frustrada com aquelas 4h18, ainda que eu não tivesse traçado metas de desempenho. Eu completei uma Maratona. É difícil não cair em tentação e achar que posso tudo. Eu levei muito mais tempo do que queria. A Maratona ensina. Eu posso quase tudo.