Monday, January 19, 2015

Elis: eu trocaria o mito por qualquer equívoco

Capa do LP Elis - Em pleno Verão, de 1970
No primeiro domingo deste ano, a cantora Maria Rita apresentou o programa “Sai do chão”, na Rede Globo, recebendo vários convidados. Ao cantar “Romaria” com ela, Sérgio Reis chorou. Mas o trecho do programa que mais me impactou foi o dueto com Marcelo D2. Entre outras, a dupla cantou o rap “Desabafo”, do próprio D2. Sou ignorante no gênero, não conhecia a música. Quando soube que ela cantaria uma música com esse nome, confundi com um antigo sucesso do Roberto Carlos (“por que me arrasto aos seus pés... porque me dou tanto assim”). No dueto com o rapper, Maria Rita causou comoção entre seus fãs ao entoar, em agudo rasgado, o refrão da música (“deixa, deixa eu dizer o que penso dessa vida, preciso demais desabafar”). Sou ignorante em rap, mas imediatamente percebi que conhecia aqueles versos. Fui pesquisar e descobri que o trecho era um sampler da música “Deixa eu dizer”, gravada pela cantora Claudia (hoje Cláudya), em 1973. E logo pensei em Elis Regina.

Sem falsidade. Não preciso de motivos para lembrar Elis. Ela está na capinha do meu celular, em um ímã na minha geladeira, na estampa de uma camiseta, junto com o nome do show/disco “Falso brilhante”. Foi, é e sempre será meu maior ídolo. Ponto. A menção à cantora Claudia me fez lembrar de uma passagem contada por uma testemunha ocular de um show de Elis, ainda nos tempos da TV Record. Elis recebia convidados no programa que apresentava com Jair Rodrigues, “O fino da Bossa”. Claudia foi cantar no programa e Elis a recebeu de maneira no mínimo fria, como se duvidando da perenidade da carreira da colega. De fato, hoje faz 33 anos que Elis morreu, gerações de amantes de MPB nasceram depois disso e aprenderam a cultuar Elis pelas qualidades óbvias de sua arte.

Não é preciso gastar muitas palavras para enumerar várias delas: cantora superdotada, com enorme alcance vocal e afinação; intérprete privilegiada, que conseguia carregar as músicas com a emoção precisa, a ponto de cantar sorrindo ou chorando, sem perder o tom, uma verdadeira atriz da música; artista musical completa, que se enquadrava no arranjo como um instrumento da banda; produtora cultural em sentido amplo, concebendo, junto a parceiros músicos, espetáculos e discos a partir de conceitos consistentes e, em muitos casos, transgressores; isso sem contar na capacidade aguçada para garimpar novos compositores e instigá-los na produção de letras e melodias que traduziam sua própria visão, expectativas, ansiedades. É até óbvio que Elis tenha se eternizado na memória cultural brasileira, sendo uma referência para jovens adultos que nem sonhavam em nascer quando ela morreu, naquela manhã de 19 de janeiro de 1982.

Claudia (ou Cláudya) surgiu como um fenômeno naqueles anos 1960. Contemporânea de Elis, ganhou o Troféu Roquete Pinto (uma espécie de Troféu Imprensa ou Melhores do Ano, à época) como cantora revelação. Se é verdade que Elis baniu Claudia do programa “O fino da Bossa” por insegurança não sei. Elis vaticinou que Claudia não duraria. Claudia continuou cantando. Gravou mais de três dezenas de discos, interpretou Evita no teatro. Nunca arrastou multidões, mas ficou no imaginário popular a ponto de ser sampleada por um rapper já no século 21. Elis não durou em vida. Mas eternizou-se na arte. Saber quem levou a melhor na eventual pendenga é discussão filosófica à qual não me aventuro.

Mas sempre me pego pensando que Elis Regina leva imensa vantagem por estar cristalizada em nossas mentes e inconscientes como uma mulher altiva de 36 anos. Gal e Bethânia, beirando os 70, ganharam peso e cabelos brancos, enquanto Elis está lá, exuberante naquele macacão dourado de seu último show, “O trem azul”. Gal gravou Michael Sullivan e Paulo Massadas. Bethânia flertou com os sertanejos. E Elis lá, firme com Tom, Milton, Chico, João Bosco & Aldir Blanc, Joyce, Ivan Lins.

Elis não vivenciou as Diretas Já, a democratização do Brasil, a invasão dos importados, a privatização de bancos e concessionárias de energia e de telefonia. Não viveu para comentar o Mensalão, o BBB, a glamourização dos trios elétricos, o surgimento do “politicamente correto” e seu avesso em programas de humor ou talk shows. Aliás, nem os talk shows ela conheceu. Não viveu para assistir à ascensão de novas religiões, o beijo gay na novela, a Copa do Mundo no Brasil, o nascimento do telefone celular ou das redes sociais.

Ai, que medo de imaginar Elis convertida a uma seita bizarra, cantando músicas de qualidade questionável, defendendo posições retrógradas, antagônicas com seu passado de indignação e dedo em riste contra gorilas fardados. Por mais que eu pense que ela não faria nada disso, que diabos. Elis viva seria humana, não mito. Não viveria para consolidar perenemente minha imagem idealizada dela. Viveria, correria riscos, acertaria e erraria. Pensando assim, eu quase consigo imaginar que foi melhor, para a imagem dela, ter se cristalizado no tempo como a cantora altiva de 36 anos, embrulhada em um datado macacão dourado.


Mas a verdade é que eu trocaria esse mito por qualquer um desses eventuais equívocos, só para que este dia 19 de janeiro não martelasse na minha cabeça há 33 anos. Para que ela pudesse ter conhecido Zeca Baleiro. Ou Adriana Calcanhoto. Ou Arnaldo Antunes. Ou Nando Reis. Ou Jair Oliveira...