Tuesday, February 09, 2016

Je suis Vai-Vai


“Eu não nasci no samba, mas o samba nasceu em mim...”. O primeiro verso da canção “É corpo, é alma, é religião”, de Arlindo Cruz, Rogê e Arlindo Neto, define a minha relação com o ritmo que é um dos mais fortes símbolos brasileiros. Sou uma branquela de classe média, nascida e criada na Zona Norte de São Paulo. Tinha, na infância, uma remota ligação com o Carnaval pela frequência às matinês do Acre Clube, também na região. Eu adorava aquela bagunça, muito mais para juntar confetes e jogar para cima do que propriamente pela música.

Mas o jogo começou a virar a favor do samba quando descobri os desfiles das escolas. Desde muito pequena, eu adorava assistir àquela maratona pela TV e suportava com valentia as piadas recorrentes sobre “ver a Mangueira entrar” na casa da família, em Mairiporã, onde passávamos o feriado. E, desde cedo, fui capturada por duas escolas de samba, uma em São Paulo e outra no Rio. A carioca era justamente a Mangueira. A de São Paulo, “meu Vai-Vai no Bixiga”, como diz a música que abre este post, gravada pela cantoraMaria Rita.

No ano passado, vivi uma das maiores emoções da vida ao assistir ao desfile do Vai-Vai, que homenageou Elis Regina e conquistou o campeonato. Contei a história neste post.

No texto, eu comentava que tinha enorme vontade de desfilar, mas que havia me retraído porque não conhecia ninguém da escola e não queria simplesmente chegar, comprar uma fantasia e me convidar para a festa. Isso me parecia invasivo com uma comunidade de 86 anos que é uma das maiores referências do samba de São Paulo. Frescura minha? Talvez, mas eu respeito instituições.

Poucas semanas após o Carnaval de 2015, começou a frequentar minha academia um rapaz muito simpático que ia todos os dias treinar com uma camiseta do Vai-Vai. Depois de alguns dias daquele desfile de estampas, perguntei diretamente: “você é da escola?”

E assim conheci Leandrinho Amêndola, um dos responsáveis na diretoria pelo barracão do Vai-Vai, que não fica no Bixiga, mas perto do Sambódromo do Anhembi. Contei para ele sobre minha emoção no desfile anterior e de como gostaria de ter desfilado. “Não seja por isso, no ano que vez você vai.”

Eu e Leandrinho Amêndola


No segundo semestre de 2015, comecei a frequentar a quadra do Vai-Vai no Bixiga. O enredo já havia sido divulgado e as fantasias para o desfile foram apresentadas em um domingo de chuva torrencial. Não tive muita dificuldade para escolher a ala Forte Conceito, chefiada pela Sueli de Souza. Não foi exatamente a fantasia que me cativou, embora fosse muito bonita, mas o sorriso largo da Sueli. E foi uma surpresa descobrir que ela, tão risonha, era irmã do Mestre Tadeu, o sempre sério maestro da bateria Pegada de Macaco do Vai-Vai há 43 anos.

Meu filho Gabriel, Sueli e eu, no dia em que me tornei componente da ala Forte Conceito


Escolhida a fantasia, ganhei minha camiseta de componente – que equivale a um ingresso para os ensaios, pagos por quem vai apenas assistir. E passei a frequentar o Vai-Vai todos os domingos, para ensaiar o samba e a formação da escola. Além dos ensaios no Bixiga, que também eram realizados às terças e quintas na época mais próxima ao Carnaval, houve três ensaios técnicos no Sambódromo, algo fundamental para ir acertando a evolução, especialmente para nós, do Vai-Vai, que temos uma quadra muito pequena e ensaiamos na rua. Conheci alguns componentes da ala e, aos poucos, fui me familiarizando com aquela atmosfera. Definitivamente, eu não me sentia mais como alguém “de fora” e, a cada ensaio, ao repetir o verso “sou raça, sou raiz, há tantos carnavais, je suis Vai-Vai”, as palavras ganhavam mais legitimidade para mim.

Faltando alguns dias para o desfile, comecei a sentir uma espécie de crise de abstinência antecipada. “Meu Deus, o Carnaval está chegando e isso tudo vai acabar.” Passei a desejar que o tempo passasse mais lentamente, para aproveitar melhor aqueles últimos ensaios, ouvir de perto a bateria, simplesmente estar ali.

Na concentração, minutos antes de entrar na passarela do samba


Tudo isso se revelou algo muito menor quando o intérprete Wander Pires começou o “esquenta” do Vai-Vai e, da concentração, eu comecei a enxergar nossos carros alegóricos, posicionados para entrar na passarela. A massa cantava o esquenta (“Vem novamente a disputa, meu povo à luta, Vai-Vai”). Na sequência, a cantora Didi Gomes fez a introdução, entoando um trecho de La Vie em Rose, em alusão ao enredo da escola em 2016, a França. O cavaquinho chamou a melodia, os violões entraram, e mergulhamos no refrão que abre o samba deste ano. “Mon amour, a voz do povo é quem diz, sou raça, sou raiz, há tantos Carnavais...”.

Não era mais emoção, era euforia. Eu não tinha só que cantar e dançar diante do público. Eu passava a ser parte da escola, e me tornava responsável por ajudar a construir suas notas. A escola avançava na avenida e nós, na concentração. A faixa que define o início da passarela pareceu para mim como a cortina do palco. Eu não me sentia mais foliã ou torcedora do Vai-Vai. Ali, éramos todos artistas, aquela era nossa peça. Ultrapassei a faixa. Estreei.

A luz, meus amigos, é forte, o que faz da passarela um lugar quente, muito quente. Tem que cantar – harmonia é feita disso: a escola cantou o samba em uma única voz? Tem que dançar, sorrir e se movimentar. Os gestos coreografados nos ensaios não serviram todos na nossa fantasia, que era imensa, com um costeiro enorme e um chapéu que apertava a cabeça com a força de muitas enxaquecas. Tem que observar a ala da frente, para respeitar a evolução. Tem muita gente, e gente muito perto da pista, e é possível interagir com o público, que canta junto, faz coração com as mãos, pula e chora.

E tem a hora que a ala passa pela bateria, e todo o resto parece sumir no ar, com a ressonância das batidas preenchendo toda a paisagem sonora. E quando se sai dessa massa de batuque, você escuta novamente a sua voz e, melhor ainda, escuta a voz da arquibancada repetindo seu refrão. O corpo cansa, a fantasia pesa, o suor escorre, e ainda assim, você sente pena quando enxerga a outra faixa, a do fim da passarela. O show vai terminar.

Entrei na dispersão e levei um susto, vendo alguns componentes chorando. Cheguei a pensar que a escola tinha tido problemas. Logo saí e liguei para minha mãe, que tinha visto o desfile pela TV e, eufórica, disse que tinha sido lindo, perfeito. Entendi o choro dos colegas. Era o mesmo que eu vertia, agora, ao perceber que meu show tinha sido um sucesso. 

No momento em que escrevo, terça-feira de Carnaval, já sei que o Vai-Vai não conquistou o bicampeonato, ficando atrás da campeã Império da Casa Verde, da Acadêmicos do Tatuapé e da Mocidade Alegre. Assim que acabou o desfile, escrevi uma mensagem para a Sueli:

Minha querida chefe, estou triste com o resultado, mas nada vai apagar a emoção de ter desfilado pelo meu Vai-Vai e de fazer parte da família Forte Conceito, com muito orgulho.”


O Vai-Vai buscará sua 16ª estrela no ano que vem, e continuará buscando novos títulos nos próximos anos. E eu vou com ele, porque agora eu sou e me sinto parte dessa instituição, legitimamente. Je suis Vai-Vai.