Tuesday, December 27, 2016

Promessa de ano velho

“Acabei de pensar numa resolução para 2017: ligar pras pessoas.” A frase, escrita em um aplicativo de mensagens, não dita ao telefone, soou para mim como uma viagem no tempo. Como se alguém tivesse me dito que iria tirar leite da vaca, viajar em um bonde, escrever uma carta. Coisas que faziam parte da rotina e hoje figuram como hábitos exóticos.

Não estranhei totalmente. Ele tem uns olhos de poeta romântico, um quê de Gary Oldman em “Drácula de Bram Stoker” (talvez pelos cabelos compridos). Parece o tipo que morreria tísico com certo orgulho. A nostalgia lhe cai bem.

Achei graça na resolução, mas logo emendei um desejo recentemente nascido: também sinto falta de conversar mais, talvez volte a fazer terapia. “Você pode ligar para as pessoas!”, insistiu com frescor juvenil. Ácida, como quase sempre, retruquei que a ideia carecia de um planejamento estratégico. Senão, vejamos.

“Ligar para as pessoas” é coisa que não se faz ultimamente. Tirando as ligações profissionais, e eu ainda faço um bocado delas, acho que só falo ao telefone com a turma da terceira idade. Tudo o que vale para os bem jovens – quer passar um recado? Mande uma mensagem – não vale para o pessoal acima dos 60 – quer falar com eles? Ligue, de preferência no telefone fixo. Mensagens correm o risco de serem vistas apenas várias horas depois. Celular não é uma extensão do corpo dos que nasceram antes do advento dos Beatles.

O mercado reagiu à nova realidade. Ligações estão se tornando algo exótico, como se tornaram os LPs. Talvez, ligar para as pessoas, e conversar como se conversa com um terapeuta, não fique mais barato que pagar a terapia. Eu sei. Destruí a poesia nostálgica daquela resolução de ano novo. Senti culpa (oh, que novidade) e me pus a pensar que alguns hábitos de outros tempos talvez estejam mesmo fazendo falta.

As cartas, por exemplo. Adolescente, escrevia-as aos montes. Tendo vivido as décadas seguintes de escrever, enxergo naquelas pilhas de cartas tanto a vontade de saber dos outros quanto a de exercitar a escrita. E acho que não teria me tornado profissional da palavra, com parcos vinte anos, se não tivesse escrito tantas cartas. Theodore, o personagem de Joaquin Phoenix no filme “Ela”, vive de escrever cartas, em um futuro não muito distante, um tempo em que as pessoas não escrevem mais mensagens pessoais, então contratam um serviço para fazer isso por elas.



Quando saí do cinema, ainda impactada pela história desconcertante daquele homem que se apaixona pela voz do sistema operacional de seu computador, fui tirar dinheiro em um caixa eletrônico e a porta de vidro fechou em cima de mim. Foi rápido, só bateu rapidamente na minha cabeça, mas chorei feito criança, mas não era pela batida da porta. Pela miséria humana, por me sentir meio Theodore, escrevendo milhares de caracteres por dia sobre coisas que não me dizem respeito. E por vislumbrar um mundo onde se compre tudo, até as mensagens pessoais que pretendemos entregar para os donos do nosso afeto.


Talvez a resolução de “ligar mais para as pessoas” não seja tão anacrônica assim. Antes que a falta desse hábito crie uma inibição tão grande, de parte a parte, que a única alternativa seja terceirizar esse afeto, apelando para outros Theodores.

Saturday, December 10, 2016

O rastro do meu sangue na cozinha


Era um final de tarde de sábado, abril, com certeza. A rotina de sempre: adiantando refeições para a semana, as cinco bocas do fogão emprestavam calor para panelas que cozinhavam arroz, feijão, legumes. Na panela de pressão, uma carne em cubos se preparava para virar carne de panela.

Sempre que estou nesse ritmo multitarefas, em casa, recordo um editorial da revista Claudia. Anos 1980, acho. Lembro bem que a editora era Maria Cristina Gama Duarte, definindo um fogão com ocupação máxima como a tradução da mulher contemporânea. Há que fazer muita coisa, e rápido, tudo ao mesmo tempo. Não é a mesma coisa que fazer toda a comida na hora, servir-se direto da panela, claro. Mas é isso ou lasanha congelada. Eleve-se o fogo, nas cinco bocas, então.

Também não é a mesma coisa usar alho triturado, comprado em potinhos, que descascar os dentes, picá-los ou amassá-los. Mas é isso ou mão fedendo a alho. Abra-se o potinho que a carne já está no ponto para temperar. O pote de plástico, aquele lacre, uma faca de ponta, a carne chiando na panela, vai, rápido. Enfio a ponta da faca no minúsculo espaço entre o lacre e o pote, forço para cima. Vai lacre, tampa, tudo de uma vez, até a ponta da faca parar dentro da minha mão, fazendo um talhe naquela parte de pele mole, entre o dedão e a palma.



Em casa, como sempre, só eu e meu filho, menos que um adolescente, na época. Ao meu lado, na pia, ouve minha frase, ainda em tom comedido. “Cortei a mão.” Abro a torneira, coloco a mão embaixo da água fria. Sangue. Olho atenta para o corte. Um talhe relativamente profundo. Sangue. Enfio de novo a mão embaixo da água. A pia vai se tingindo de rosa. Sangue. Desmaiei pela primeira e única vez na vida.

Ato seguinte, estou deitada no chão da cozinha. O menino grita, eu desperto.

O resto da história não tem nada de dramático. Pronto-socorro, um ponto no corte, curativo, final de noite em paz. Os que ouviam a história, nos dias seguintes, sempre faziam a mesma observação: “ah, eu também não posso ver sangue que desmaio”. Errado. Não desmaiei porque vi sangue, nunca tive esse tipo de reação. O processo mental que me levou ao ataque de ansiedade – esse, sim, um velho conhecido, mas nunca antes concluído em desmaio – não foi uma crise de hemofobia.

Lembro, nitidamente, do meu último pensamento antes de desabar, sem nenhum glamour. “Cacete, vai acontecer comigo o mesmo que aconteceu com Nena Daconte.”

Acho que já fazia mais de dez anos que eu tinha lido o conto “O rastro do teu sangue na neve”, de Gabriel García Márquez, mas nunca deixei de associar a ideia de “sangrar até morrer” a essa história, publicada no livro “Doze contos peregrinos”. O idílio de um jovem casal, em lua de mel pela França, termina de forma trágica, por conta de um corte no dedo, provocado pelo espinho de uma rosa. Não foi o sangue na pia, foi a evocação do rastro de sangue na neve, terminando em morte, que me fez desmaiar.

Aqueles que têm o hábito de fruir a arte costumam identificar-se com filmes, livros e letras de música, repetindo que tal obra parecer ter sido feita para eles. Tenho outra tese. Gente dessa estirpe – os que amam a arte – por vezes parecem moldar sua personalidade para se parecer com os personagens dessas obras.

Será que gosto tanto da letra de “Dona”, de Sá & Guarabyra, porque ela evoca uma mulher que se parece comigo ou será que me forjei como alguém para quem “não há pedras no caminho, não há ondas no mar, não há vento ou tempestade que impeçam de voar”? Será que me enxergo tanto em “Ruby Tuesday”, dos Rolling Stones, ou teria eu me moldado para ser uma mulher livre, “porque esse é o único jeito de ser”?


Não, não acho provável que eu tenha me cortado de propósito para emular Nena Daconte. Mas também não nego que aquele corte na mão, por dias seguidos, criou a confortável ilusão de que enfrentei a Mamba Negra, de Kill Bill, em um duelo de facas. A julgar pelo corte mínimo, venci.

Vivica A. Fox e Uma Thurman, na cena da luta de facas, em Kill Bill volume 1

Friday, November 25, 2016

Elis

Elis (Andréia Horta): expressões e gestual de Elis
Elis Regina estava dentro de um táxi, em um congestionamento na Avenida Paulista, em São Paulo, quando concebeu a linha-mestra do espetáculo “Transversal do Tempo”, de 1978. Em tempo de ditadura militar, antes da abertura, Elis enxergou na metrópole um ambiente opressivo às pessoas, e estruturou “Transversal do Tempo” em torno de músicas que falam da exploração do trabalhador, da especulação imobiliária, da solidão. Entre as canções, “Saudosa maloca”, de Adoniran Barbosa. Um dia, em um programa de TV, Elis ouviu a pergunta gravada de uma espectadora, que queria saber por que sua gravação desse clássico paulistano era tão triste, fazendo o samba de Adoniran perder toda a graça. “Porque eu não vejo graça nenhuma em uma pessoa ficar sem casa da noite pro dia”, respondeu séria, olhando para a câmera.

Esta passagem não está no filme “Elis”, que fez sua estreia ontem, nos cinemas, e não precisaria estar. Mas ela ilustra a linha de concepção artística que Elis Regina adotava em sua carreira: ela era capaz de partir de uma obra consagrada e recriá-la sob seu ponto de vista, oferecendo ao público uma nova ideia sobre ela (fez isso muitas vezes, além de subverter “Saudosa Maloca”). E é justamente esse o aspecto mais decepcionante do filme dirigido por Hugo Prata. Ao adotar uma narrativa linear e convencional para contar a história de Elis Regina (nenhum problema em optar por isso), o filme parece ter o único propósito de oferecer ao espectador uma personagem idealizada, a maior cantora do Brasil, sem medir esforços inclusive ao proferir essa frase, pela boca da própria Elis, nos primeiros minutos do filme.

“Elis” começa com um clip da música “Como nossos pais”, composta por Belchior e lançada pela cantora em 1976. O ano da ação é 1964, quando Elis (Andréia Horta) mudou-se de Porto Alegre para o Rio de Janeiro, acompanhada do pai (Zécarlos Machado). O fato de ser um clip não seria problema se o filme não se apoiasse quase obsessivamente nesse formato ao longo das quase duas horas de projeção. Vá contando.

Os primeiros dias no Rio, as dificuldades em arranjar trabalho e as manifestações de destempero da cantora são exibidos quase na mesma linguagem de um clip: cenas rápidas, muitos cortes e uma iluminação em sépia, para reforçar a antiguidade das sequências, o que não faz muito sentido em um filme cuja ação vai terminar em 1982. Logo no início, a mocinha Elis já surge com seu primeiro algoz: o pai, cujas falas nunca escondem seu real propósito – tirar dinheiro da filha talentosa.

Quando chega ao lendário Beco das Garrafas e encontra a dupla Luiz Carlos Miéle (Lucio Mauro Filho, em ótima caracterização) e Ronaldo Bôscoli (Gustavo Machado), Elis tem a chance de se mostrar como cantora para uma plateia qualificada e, naquele ambiente, o filme produz algumas de suas melhores sequências, porque se desprende do formato clip e mostra a artista fazendo aquilo que encantava o mundo: dominar o palco. A passagem do teste para o show propriamente dito, utilizando a mesma música como fio condutor, evidencia essa evolução da artista e cria uma das sequências mais elegantes do filme.

Mas não é difícil notar que o roteiro logo vai aprisionar Elis, novamente, no jugo de um novo algoz. Sai o pai explorador, entra Bôscoli, o mulherengo esnobe que exerce a mistura de repulsa e atração tão típica das mocinhas idealizadas. Não pode ser à toa que ele surge quase sempre com um copo de uísque na mão direita, com um cigarro pendendo da boca e, sutileza zero, várias vezes enquadrado em um fundo vermelho, como simbolizando a paixão infernal que os dois viverão em seguida.

Ronaldo Bôscoli (Gustavo Machado) e o fundo vermelho

Quando Elis ganha o mundo, partindo para uma temporada na Europa, a alternância de imagens sugere a diferença dos mundos em que ela e Bôscoli habitam. Nesse instante, é admirável a mescla de texturas de imagens, alternando cenas da cantora em Paris ou Cannes, que parecem gravadas em antigas Super-8, com as imagens em alta definição que mostram Bôscoli, o novo carrasco, curtindo a vida com outra mulher, no Rio.

O desfecho óbvio do casamento em frangalhos surge na tela – de novo – a bordo de um clip. Desta vez, “Atrás da porta”, de Chico Buarque, com uma Elis prostrada na frente do mar, ou chorando à meia-luz, em um tipo de musical que cairia perfeitamente no Fantástico, em 1972. A introdução de “Atrás da porta” serve de senha para plantar César Camargo Mariano (Caco Ciocler), o segundo marido de Elis, na trama. Se Andréia Horta incorporou Elis em muitas de suas expressões, no tom de voz e no gestual (embora às vezes exacerbado), Ciocler faz de seu personagem a melhor construção do filme. Com pouquíssimas falas, quase sempre em tom muito baixo, ao ator bastou sentar-se ao piano e posicionar as mãos sobre o teclado para oferecer a interpretação mais fiel e verdadeira do filme.

E, mais uma vez, o filme caminha para a idealização de Elis, agora marginalizada pela intelectualidade e por parte do público em função de uma atabalhoada aproximação da artista com forças da ditadura. Incorrendo em uma imprecisão histórica, que pode ser absorvida como licença do roteiro, o filme chega a seu episódio mais caricato quando mostra Elis em uma delegacia, ou quartel (o filme não deixa claro), sendo inquirida por um militar. A fragilidade que a cena pretende impor a Elis contamina a própria narrativa, com uma sequência de frases feitas, quase risíveis, culminando com o oficial destruindo ferozmente um papel que continha a lista de músicas do próximo disco da artista.

E dá-lhe mais um clip, desta vez com “Cabaré”, de João Bosco e Aldir Blanc. Um salto no tempo – omitindo a gravação do histórico álbum “Elis & Tom” – coloca a artista no palco do show “Falso Brilhante”, considerado um dos espetáculos mais marcantes de sua carreira e um dos mais inovadores da Música Popular Brasileira. Com elementos de circo, “Falso Brilhante” transformava os músicos em atores, contava uma história, ia além do show musical. OK, a opção do roteiro foi por reduzi-lo. A quê? A mais um clip, com apenas Elis e César no palco, ao som de “Fascinação”.

César Camargo Mariano (Caco Ciocler): um simples gesto 

Neste ponto, em uma discussão com o marido, Elis diz que está “de saco cheio de ter que ser perfeita”, e ironicamente o filme parece contestar-se a si mesmo e à tendência obsessiva em idealizar a personagem, algo que não precisaria ser feito para engrandecer Elis. O fim de mais um casamento, novamente, traz Elis vitimizada e reduz César Camargo Mariano a mais um coadjuvante que orbitou em torno da artista, quando um rápido exame na biografia de ambos mostra que a parceria musical entre eles talvez tenha sido uma das mais profícuas da história da música brasileira.

O fascínio do filme pela figura de Elis cria situações absurdas, como a entrevista dada a um programa de rádio na qual o entrevistador sequer aparece. Não, não se trata de uma construção heterodoxa como a que Jean-Luc Godard usou em “A chinesa” e acabou incorporada ao lendário programa “Ensaio”, da TV Cultura, na qual um entrevistado respondia a um inquiridor que nunca aparecia, nem sequer as perguntas que eram feitas. Aqui, Elis está diante de alguém que não aparece, mas está presente com uma impostada voz radiofônica. Elis, sempre mostrada em planos fechados, surgindo imensa na tela, parece falar consigo mesma, em uma construção esdrúxula que talvez tenha inaugurado no cinema o plano e contra plano de um personagem só.

Enquanto apenas simplifica-se a vida para adequar a história ao formato "filme", está tudo certo. O problema é que "Elis" acaba cometendo uma derrapada extraordinária em seu roteiro, quando reduz Samuel Macdowell de Figueiredo, último namorado de Elis, a um advogado que aparece na história por volta de 1975 e, depois, nas cenas finais do filme. Foi para Samuel a última ligação de Elis e foi ele quem a levou para o hospital, já sem vida. Quem não conhece muito da história dela fica legitimamente em dúvida: por que diabos Elis ligou para aquele advogado lá de trás na hora em que estava morrendo?

Cantora desde os 13 anos, Elis teve uma carreira de pouco mais de vinte anos. Nesse período, foi a primeira intérprete a gravar compositores como Milton Nascimento, Gilberto Gil, Ivan Lins, Fagner, João Bosco, Belchior, Fátima Guedes e Renato Teixeira. À exceção de uma menção a Chico Buarque e de duas rapidíssimas referências a dois desses (Milton e Gil), não se fala da relevância da artista Elis na gênese dessa geração que se imortalizou como fundadora da MPB. OK, é uma opção do roteiro.  

Mas chega a ser desonesto, por tão apelativo, incorporar um vocalise de Milton na cena final de “Elis”. A admiração da cantora pelo amigo compositor era explícita. Dizia ela que, se Deus cantasse, seria com a voz de Milton. Um corpo caído, uma sequência em câmera lenta, o pai, os ex-maridos chorando ao receber a notícia. E aquela voz divina chamando. Melodrama demais para alguém que ficou conhecida como “Pimentinha”. 


No mesmo “Transversal do Tempo” em que mostrou ao mundo como entendia “Saudosa Maloca”, Elis dizia que o “o Brazil não merece o Brasil”. Elis Regina merecia mais que “Elis”.

Sunday, October 23, 2016

Mostra de Cinema de SP - O que vi até aqui (1)

De 20 de outubro a 2 de novembro, acontece a 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Cinéfila que sou, estou acompanhando a Mostra nos poucos horários que me restam fora do trabalho, mas já consegui assistir a filmes excelentes.

Tenho alguns critérios para escolher os filmes. Embora a Mostra sempre tenha homenagens e ciclos de determinados realizadores, meu foco principal são as novas produções. De maneira especial, gosto de ver o trabalho de jovens diretores (sim, é a busca pelo Santo Graal do "novo Tarantino, que teve seu primeiro longa, "Cães de Aluguel", exibido na Mostra de SP quando ainda era desconhecido do grande público.) Também dou preferência a mulheres na direção e, sempre que possível, a produções nacionais.

Aqui, pílulas sobre os filmes que vi até agora:

O sonho de Mara'Akame (México) - direção de Federico Cechetti
Primeiro longa do diretor mexicano, o filme é centrado no conflito entre pai e filho, mas logo é fácil perceber que aquele microcosmo reflete o conflito entre tradição e modernidade que permeia os países em desenvolvimento. Contraste, por sinal, é algo sempre presente no filme, inclusive com a alternância de claro e escuro, interno e externo, liberdade e opressão, realidade e delírio. As atuações naturalistas do elenco são muito bem conduzidas por Cechetti, que parece interferir minimamente nas cenas de teor mais intimista, aumentando a veracidade do enredo. O único senão do filme é a desconexão da história com o contexto ambiental exposto no começo e no final da produção. Ainda que o diretor tenha concebido o filme para exaltar uma região e uma tradição ameaçadas pelo avanço da "civilização", esse discurso é, no mínimo, tímido ao longo do filme. Atenção: há uma cena explícita de sacrifício animal.

Mercado de Capitais (EUA) - Meera Menon
Típico filme sobre o tema, no qual o enredo mostra-se sempre intrincado para a maior parte da plateia que não domina assuntos e termos financeiros. Isso não costuma ser um problema quando o mercado financeiro, em si, é pano de fundo para mostrar os conflitos pessoais, sociais e psicológicos que surgem como consequência. E esse é o maior problema de "Mercado de Capitais", que se mostra sempre muito raso e óbvio, embora paradoxalmente partindo de uma opção transgressora, ao colocar mulheres em papéis que, na vida e no cinema, normalmente cabem aos homens. Centrado na figura de Naomi Bishop (Anna Gunn, de Breaking Bad), "Mercado de Capitais" ensaia um discurso feminista, em seu início, mas ao longo da história, e em seu final, apenas repete chavões que poderiam também estar na boca de homens. Convencional, "Mercado de Capitais" tem suas virtudes, como a paleta de cores sempre tendendo ao cinza e prata, como se refletisse grandes centros financeiros, com seus prédios espelhados, vidros e aço escovado. Mas torna-se repetitivo, inclusive pela onipresença de uma trilha sonora meramente incidental que parece ter como única função preencher um vazio permanente.

Amor e outras catástrofes (Dinamarca) - Sofie Stougaard
Longa de estreia da atriz Sofie Stougaard, "Amor e outras catástrofes" é um filme surpreendente, baseado em uma história muito simples. Duas mulheres descobrem estar grávidas, ao mesmo tempo, e logo percebemos que as duas estão se relacionando com um mesmo homem. As semelhanças entre a esposa e a amante, no entanto, param aí, porque o primeiro ato do filme basicamente é dedicado a traçar o perfil de ambas e, se o roteiro incorre em uma pequena obviedade (a psicóloga que alcança o sucesso escrevendo sobre relacionamentos e, de repente, vê-se em um casamento destruído), a condução das duas histórias soa convincente. Sofie domina a alternância entre luz e sombra com técnica e propósito e, embora abuse de um recurso visual interessante na fusão de algumas sequências, concebe cenas fluidas geralmente usando uma câmera única em vários momentos. Construído como libelo de exaltação feminina, o filme talvez tenha seu ápice na cena em que a sogra da protagonista faz um curto e contundente desabafo contra os homens que a cercaram ao longo da vida. E a surpresa maior do filme revela-se em seu terceiro ato que, de forma natural, começa a reconhecer o humor no meio daquela sequência de tragédias pessoais, tornando-se uma narrativa muito divertida.

Elle (França) - Paul Verhoeven
Para este filme, prefiro simplesmente linkar a crítica do Pablo Villaça, do Cinema em Cena, mas queria compartilhar apenas uma impressão que "Elle" reforçou em mim. Isabelle Hupert, esse monstro da atuação, me fez lembrar a interpretação de Elis Regina para "Sabiá", de Tom Jobim e Chico Buarque. Nesta canção, Elis adota uma interpretação sempre tão suave e intimista que, à primeira audição, você parece ficar esperando a todo tempo o momento em que ela vai soltar a voz, gritar para o mundo a saudade contida naquela letra. E ela não o faz. E é genial justamente por não fazê-lo, porque a tristeza e a melancolia da música expressam isso de forma cortante. A Michelle de Isabelle Hupert, em "Elle", faz exatamente isso.

Pitanga (Brasil) - Camila Pitanga e Beto Brant
Descrever "Pitanga" como um documentário sobre "a vida e a obra" do ator Antonio Pitanga é reduzi-lo ao seu formato. A essência desse trabalho é a história do próprio cinema brasileiro, da emancipação do negro na sociedade, da inserção do artista negro em produções de massa, da censura e da ditadura no Brasil, da liberdade sexual, da luta pelas desigualdades e da desconstrução de papéis. "Pitanga", como o próprio Pitanga, é um ato de resistência em um momento tão difícil da história do Brasil. É uma reafirmação de que é possível sobreviver, com alegria, aos recorrentes golpes na autoestima do povo brasileiro.


Então morri (Brasil) - Bia Lessa e Dany Roland 
Mais de 500 horas de filmagens, dezenove anos de trabalho, e um resultado desconcertante. O documentário "Então morri" percorre cenas da vida de uma mulher, da morte ao nascimento, no sertão do Norte e do Nordeste brasileiro. Na sessão de estreia, na Mostra, os diretores Bia Lessa e Dany Roland contaram que a opção por conduzir o documentário a partir da história dessa mulher, repartida em várias histórias de mulheres diferentes, aconteceu depois da captação desse vasto material. Não por acaso, o trabalho é dedicado ao cineasta Eduardo Coutinho, que participou da produção e, inegavelmente, é uma influência visível na construção desse verdadeiro tratado sociológico brasileiro. (A noiva, que aparece na foto acima, protagoniza uma das cenas mais tocantes do filme e, confesso, suas lágrimas não me saem da cabeça...)


Sunday, September 04, 2016

Aquarius, um tratado sobre a resistência


Sonia Braga começou a ganhar notoriedade no Brasil em 1968, quando participou da montagem brasileira do musical “Hair”, que tinha como um de seus temas a música “Age of Aquarius”. Nas peças de divulgação do longa “Aquarius”, do diretor Kleber Mendonça Filho, não vi nenhuma indicação de que o nome da obra faça algum tipo de homenagem ou referência ao início da carreira da atriz. No filme, “Aquarius” é o nome do edifício onde a personagem de Sonia mora, e centro do conflito em torno do qual a história foi construída.

Ainda que esta seja apenas uma coincidência, não é incorreto dizer que “Aquarius”, o filme, é um estudo de personagem que dificilmente teria a força que se traduz na tela sem a interpretação de Sonia Braga. O que, ao mesmo tempo, não quer dizer que os elementos que alicerçam a obra sejam desprezíveis nem ao menos acessórios. Começando pelo roteiro, escrito pelo próprio diretor.

A história de “Aquarius” é muito simples: crítica de música aposentada, Clara (Sonia Braga) mora em um pequeno edifício na avenida da praia, no Recife, que é alvo de uma incorporadora imobiliária. Todos os demais proprietários já venderam seus apartamentos, menos Clara, que não quer se mudar do local e enfrenta, por isso, uma série de conflitos, com os donos dessa empresa, com sua família, com outros antigos proprietários e com a estranha fauna que passa a frequentar o prédio.

Como já havia feito em “O som ao redor”, seu excelente primeiro longa de ficção, Mendonça estruturou o roteiro em três capítulos, oferecendo ao espectador o (falso) conforto de dominar os três atos da obra. Volto ao parêntesis depois. No primeiro capítulo, a personagem principal é apresentada, começando com uma sequência ocorrida no passado, precisamente em 1980. E já é admirável observar a reconstituição da época ali apresentada, mais um trunfo de “Aquarius”.

Sonia, o diretor Kleber e Humberto Carrão


Em uma festinha familiar, ali estão as garrafas de refrigerante de vidro, as mulheres com blusas de ana-ruga (acho que esse tecido caiu em extinção...), os meninos com shorts muito curtos, que os deixavam a todos meio pernaltas. Com cabelos também muito curtos, Clara é logo mostrada como alguém que sobreviveu a um câncer e a seu agressivo tratamento. É natural, esperado e quase impossível não se identificar com aquela mulher que se mostra, nos primeiros momentos, como uma resistente.

É também sintomático que o roteiro já circunde Clara, naquele momento, de figuras que não farão parte da sua vida futura, o período que ocupa a grande parte da história, dando pistas inequívocas de que o passado daquela mulher talvez seja seu maior patrimônio. A voz de Freddie Mercury, a canção de Altemar Dutra, a citação a Elis Regina, a presença da tia e do marido: tudo isso serão lembranças na vida da Clara sexagenária, que surge marcada pelo tempo, mas ainda bela e vigorosa e, sobretudo, serena em sua nova vida de aposentada.

Outro detalhe fundador da personalidade de Clara é dado em um breve diálogo da personagem com sua empregada, logo no início da história: a relação de hierarquia, a estratificação social estão ali estabelecidas. Clara é pequeno-burguesa e se beneficia do privilégio de ter alguém para servi-la, mas a gentileza, quase doçura, com que se dirige à diligente Ladjane (Zoraide Coleto) mostra que estamos diante de uma mulher que cultua a empatia, outro ponto a favor da identificação do público com a protagonista.

O desempenho de Sonia Braga é magnífico em “Aquarius”. Ponto. Mas, se o filme se torna uma daquelas referências nas quais não se consegue imaginar outro ator para o papel, isso também é mérito da direção de Mendonça e do ritmo que ele imprime às quase duas horas e meia de projeção. As referências à música são constantes no filme – e nem poderia ser diferente, porque Clara é uma jornalista e crítica de música aposentada e porque som e música já são referências da obra do diretor. Nesse sentido, se fosse uma peça musical, “Aquarius” seria uma sinfonia que começa em intensidade pianíssimo e termina em fortisíssimo (assim mesmo, cheio de “esses” e de fúria). Ainda que a cena de abertura do filme traga um grupo de jovens escutando música em volume alto no carro, o ruído externo desse começo parecerá silêncio perto do grito do ato final. 

A direção de Mendonça é a mão discreta e ao mesmo tempo segura que vai guiando Clara, seus companheiros e fantasmas por uma narrativa que descreve aparentemente um conflito urbano frequente nos dias atuais. Mas que, com um pouco de sensibilidade, pode estar descrevendo o Brasil, e também retomo essa ideia no final.

Mendonça, evidentemente um cinéfilo cheio de referências, imprime enorme variedade de linguagens em “Aquarius”. É capaz de criar, com a mesma habilidade, planos abertos que situam o espectador na Recife que acolhe a história e diálogos internos cheios de tensão, como aquele que coloca os três filhos de Clara (Maeve Jinkings, Germano Melo e Pedro Queiroz) de um lado, a mãe do outro, como em um ringue. Independentemente dos golpes eficientes dos mais jovens, embasados em preocupações genuínas, o espectador naturalmente se coloca do lado oposto, torcendo e quase tendo certeza de que a parte aparentemente mais frágil da história levará os três oponentes às cordas, e os nocauteará com uma firmeza desconcertante.

Com essa mesma habilidade, o diretor apoia-se todo tempo em uma condução generosa, transparecendo não apenas a confiança nos atores como também a aposta na criação coletiva. Essa busca de autenticidade chega a criar trechos com evidente sintoma de improviso nos diálogos, como na cena da conversa de um grupo de mulheres em um baile “de terceira idade”, filha legítima do Neorealismo italiano, ou da Nouvelle Vague francesa. Esta, por sinal, também parece legar à narrativa uma breve, mas poderosa sequência de cortes secos, mostrando Clara sozinha em seu apartamento, como reforço à ideia de que o fato de estar ali, sozinha, não significa letargia ou tédio, já que seu espírito não se contém diante do conflito maior – e dos menores – com que tem de lidar.

Chegando ao terceiro e instigante capítulo, “O câncer de Clara”, o roteiro desconstrói o aparente controle do espectador sobre aquela obra em três atos, e aqui retomo o parêntesis do início. No lugar de um desfecho conformista e eventualmente esperado para a vida de uma mulher sexagenária, a história vai ganhando uma tensão cada vez mais aguda. Prolongando o suspense em perfeita tradição hitchcockiana, a trama se apoia em diversos elementos que não apenas justificam como tornam praticamente inevitável o gesto final da protagonista. E é digno de aplauso o recurso engendrado pelo roteirista/diretor de contar sem mostrar, sugerir sem explicitar, um Polanski pernambucano parindo um bebê demoníaco cheio de vida nauseante em plena praia de Boa Viagem.

Protesto em Cannes: "Aquarius" tem lado


Clara, a mulher aparentemente apegada ao passado, é também a mente mais transgressora de toda a trama, seja pela maneira como assimila as mudanças do mundo ou pela forma como lida com a própria sexualidade e com a incompreensão estúpida ou ingênua sobre ela, dos homens que a cercam. A assimilação do novo é extraordinariamente exposta na sequência em que Clara explica a uma repórter como se relaciona às várias mídias de música do presente. O semblante pouco inteligente da jovem jornalista deixa evidente que ela não entendeu nada do contexto que a veterana colega expôs. Caberá à repórter um mero esforço para enquadrar a antiga crítica em uma frase-manchete que certamente já saiu escrita da redação, antes sequer de ser feita a entrevista.

Mas é no embate com o jovem administrador de empresas Diego (Humberto Carrão), o maior antagonista da trama, que Clara dá voz ao discurso mais forte, resistente e contundente de “Aquarius”. Aquele velho edifício, que por força do dinheiro vira literalmente uma suruba e ao mesmo tempo um ninho de evangélicos, cabe como metáfora do Brasil atual, sempre e ainda dominado por oligarquias que só enxergam seus próprios interesses, agindo de forma diametralmente oposta aos gestos empáticos de Clara. Um autêntico câncer corrói “Aquarius” – o edifício e o Brasil – e não deixa de ser melancolicamente tocante supor que “o país do futuro” possa continuar sendo tão mais “casa grande & senzala” do que “era de Aquarius” como, há quase 50 anos, a jovem Sonia Braga, nua em cima do palco, ousou sonhar.

O discurso político de “Aquarius” é claro, direto e tem lado: o da resistência. Surgido no limiar de um período nascido de um golpe, o filme de Kleber Mendonça Filho provavelmente será visto como símbolo do pensamento oposto a ele. Daqui alguns anos, quando alguns estiverem se desculpando pelo apoio ao golpe, Mendonça estará sereno, com a consciência tão limpa quanto a de Clara, polindo algum dos muitos prêmios que “Aquarius” já recebeu mundo afora.

Sunday, May 29, 2016

Mais uma vez, a arte me salvou


Não sei dizer quantas epifanias e catarses o cinema, a música, o teatro e a literatura já produziram na minha vida. Todas, de alguma forma, me recolocaram no trilho da sanidade mental, embora eu muitas vezes só tenha percebido isso muitos anos depois. Eu achava graça por ter chorado tanto em “Dumbo”, na cena em que o filhote de elefante é separado da mãe, e só depois associei aquele choro como uma resposta elaborada ao ciúme que o nascimento do meu irmão gerou em mim.

Às portas da adolescência, fui assistir ao musical “Aí vem o dilúvio” e fiquei obcecada pela peça, em especial por uma cena na qual os personagens formavam casais que tinham por missão repovoar a Terra. “Bela noite sem sono...” era um dos versos da canção e, novamente, apenas muitos anos depois eu entendi que a sensualidade delicada daquele momento explicou a mim a ebulição de hormônios que eu experimentava – e estranhava. E me pacificou.

Nunca deixou de ser assim. “Cem Anos de Solidão”,“Central do Brasil”, um show extemporâneo dos Mutantes, “Pina”, “Ela”, para citar apenas alguns. De fato, acho que nunca vivi um ano sem que alguma obra de arte fizesse o favor de me colocar no prumo, ou me convulsionar a ponto de repensar as escolhas e o rumo da minha vida. E sempre me sinto um pouco constrangida com isso, porque entendo arte como entidade inútil, no sentido de ter fim em si mesma. Utilizá-la para alguma coisa, ainda que em nível moral, mental, espiritual, soa a mim como profanação.

E hoje essa tarefa coube ao filme “Ponto Zero”, do diretor José Pedro Goulart.

Na sexta-feira passada, comentei brevemente com a minha mãe que não conseguia pensar no estupro coletivo da garota carioca sem ter vontade de chorar. Não era verdade. Cada vez que lia ou escutava algum fato relativo a esse crime, eu não tinha vontade de chorar. Eu sentia angústia, raiva, nojo. Mas lágrima nenhuma descia.

Sintomaticamente, desenvolvi em dois dias uma série de reações físicas a esse conjunto de sentimentos. Uma crise de alergia congestionou minhas vias aéreas superiores. A cabeça pesava e doía, evoluindo durante o dia até virar enxaqueca. Crises de tosse irrompiam sem aviso e me paralisavam a fala. Para coroar, uma afta do tamanho de uma couve-flor deixou meu lábio com o indesejável aspecto de uma aplicação de botox assimétrica.

Fui ver “Ponto Zero” quase num voo às cegas, com pouquíssimas referências. A beleza da cena de abertura vale pelo filme todo, e sua retomada no final, ainda que não viesse carregada de simbolismo, seria justificada plenamente apenas pela questão estética. Acho até que o filme carrega demais nos simbolismos, alguns meio óbvios, como carros andando de marcha à ré, mas nunca vou deixar de ser grata a ele, pela perturbadora sequência de cenas sob a chuva que ocupa boa parte do trecho final.

Além de belíssimas, e de incluir uma dos meus maiores objetos de fascínio no cinema – planos-sequência – as cenas de chuva provocaram uma reação física inequívoca em mim. Chorei. Não, o filme não era especialmente triste, nem esta sequência, carregada de referências a morte e renascimento, tinha algo de triste. Era um rito de passagem do personagem central, mas funcionou como catarse genuína para mim. Três dias depois da notícia do estupro, de pelejar com o peso da cabeça, com o incômodo da alergia, com a afta e com o nó no peito, “Ponto Zero” parecia ter puxado a tampa do meu ralo. Chorei os oito quilômetros que separam o cinema da minha casa. A cabeça não dói mais, estou respirando bem, a afta drenou, aquela dor entre as costelas sumiu.

A arte foi o que de melhor nossa espécie medíocre produziu neste planeta e vou continuar usando-a como tábua de salvação. Bom para mim.


Mas, e a menina?

Friday, May 27, 2016

Cultura do estupro: isso É política



Estou disfarçando, mas não está fácil viver em um país em que uma moça é estuprada por 30 e um “ministro” recebe um apologista do estupro.

Escrevi esta frase no Twitter, na tarde desta quinta-feira. Algumas pessoas começaram a reproduzi-la, até que ela chegou a alguns formadores de opinião da rede social, desses que têm dezenas de milhares de seguidores, que também reproduziram. Muitas horas depois, continuo escutando o sinal no celular, dando conta de que alguém a está curtindo ou compartilhando. Não é ruim a sensação de perceber que não estou sozinha na minha indignação. Mas o sentimento de empatia não preenche a tristeza que continuo sentindo com tudo isso.

A um desses grandes formadores de opinião que reproduziram minha frase, o neurocientista e professor Miguel Nicolelis, respondi com uma pergunta direta: manifestar-se é pouco, indignar-se é pouco – o que fazer? Ele respondeu que a saída é investir em educação com cidadania. Claro, a resposta honesta a essa pergunta não pode supor uma ação cirúrgica pontual, que extirpe a cultura do estupro da nossa sociedade. A mudança virá com o tempo. Mas, e até lá?

Quando digo que não está fácil viver nessa sociedade, não estou usando de retórica. Sou mulher e sinto ecos dessa cultura no meu dia. Quando vou sozinha ao cinema e noto olhares de estranhamento pela minha ausência de companhia. Quando dirijo meu carro sozinha, à noite, e me forço a continuar olhando para a frente, impassível, porque o condutor do carro ao lado acha que o fato de estar desacompanhada funciona como senha para eu ser assediada.

Eu poderia continuar enumerando as situações desagradáveis que uma mulher como eu enfrenta cotidianamente, e elas vão desde irrelevantes dissabores, como o garçom que entrega a conta para meu filho de quinze anos, supondo sempre que o homem da mesa vai pagar a despesa, até grandes inquietações de ordem moral, como embotar minha própria sexualidade enquanto não tiver certeza de que poderei expor isso para um interlocutor civilizado, que não vai me classificar como vagabunda.

(Aliás, cabe aqui uma breve reflexão sobre o emprego das palavras vagabundo e vagabunda, na nossa sociedade. Vagabundo é o homem que não trabalha. Vagabunda, a mulher que transa com quem quiser, ou com qualquer um, ou com muitos. O defeito, no homem, é não prover, pecado venial em sua existência. O da mulher, fazer o que quiser do seu corpo, pecado mortal.)

Mas, na fila dos oprimidos, estou em penúltimo lugar. Sou mulher, branca, com nível superior de escolaridade, tenho casa própria, carro, dois aparelhos de TV em casa. Acho que são esses itens que definem um cidadão de classe A no Brasil. Atrás, na fila da opressão, apenas os homens iguais a mim. À nossa frente, os homens pobres, os homens pretos, os homens pretos e pobres, as mulheres pobres, as mulheres pretas, as mulheres pretas e pobres.

Olham estranho para mim no cinema? O filme não ficará pior nem melhor por isso. O macho alfa do carro ao lado está lançando olhares lascivos em minha direção? Daqui a pouco, o farol abre. O garçom acha que meu filho é o provedor? Ele está repetindo um gesto ancestral e, afinal, muitos homens ainda fazem questão de pagar a conta, e algumas mulheres aceitam isso. O cara se escandalizou com minha franqueza na abordagem? Valeria menos que um cinema, com filme ruim.

Eu estou muito, mas muito menos vulnerável à violência de um estupro que a moça da favela, isso é fato. Mas nem por isso vou me sentir menos agredida do que me senti hoje. O fato de estar mais resguardada, na prática, não me protege da agressão de saber que uma semelhante a mim foi violentada por mais de trinta homens. Nem de encontrar opiniões que culpam a vítima pelo crime que ela sofreu.

Regras para namorar minha filha: 1 - Eu não faço as regras, 2 - Você não faz as regras,
3 - Ela faz as regras, 4 - O corpo é dela, as regras são dela


Na prática, o que posso apresentar como contribuição à mudança dessa cultura do estupro? O fato de estar criando um jovem para que ele respeite as mulheres como donas de seus corpos, e tudo o que isso significa em termos de aproximação, abordagem e envolvimento? Sinceramente, isso é minha obrigação como mãe.


Mas sinto que há algo positivo nascendo dessa tragédia que hoje chegou a nós. Esta é uma causa política. Já há eventos programados para os próximos dias, de protesto e discussão sobre a condição da mulher. Vá a algum deles, engaje-se, manifeste-se. Acho que poucos brasileiros mentalmente sãos, hoje, seriam capazes de afirmar que a nossa sociedade não naufragou. E a nossa sociedade é essencialmente patriarcal, oligárquica, elitista. Despertar – e agir – contra a cultura do estupro pode ser um começo para romper o monolítico atraso moral do Brasil.

Monday, May 23, 2016

Certo agora, errado antes: amor à arte


Se “viver é desenhar sem borracha”, como disse Millôr Fernandes, a arte ignora esse fatalismo. Qualquer forma de narrativa, literária ou audiovisual, permite contar o mesmo fato de maneiras diferentes, inclusive movendo elementos que modifiquem essencialmente a própria história. O filme sul-coreano “Certo agora, errado antes” faz isso de uma maneira desconcertante.

À primeira vista, é uma história de amor, ou de mera atração, entre um consagrador diretor de filmes “de arte” e uma artista plástica iniciante. Tudo o que dá errado na primeira parte do filme (“errado antes”) transforma-se com o movimento de uma única peça – uma informação fundamental sobre a vida do diretor. E é a segunda parte do filme, quando a história é recontada acrescida dessa informação, que o filme se revela bem mais que uma história de amor.

A simplicidade que o diretor Sang-soo Hong imprime a cada cena logo parece deixar clara a intenção da obra: contar uma história. As cenas são gravadas sempre com uma única câmera, muitas vezes fixa. O recurso do zoom, que surge esporadicamente, pode soar anacrônico, quase pueril, lembrando o movimento de câmera dos antigos filmes de lutas marciais. Aqui, no entanto, ele parece empregado apenas para captar mais de perto a expressão facial dos protagonistas e, aos poucos, vai deixando o espectador mais próximo daquela história e mais íntimo daquelas pessoas.

Ao acrescentar a informação essencial à história, na segunda parte (“certo agora”), Sang-soo Hong não apenas dá outro rumo à trama de amor/atração entre o diretor e a artista plástica. Ele redimensiona ambos e, ao fazer isso, propõe uma discussão que faz eco na própria arte.

Nesse momento, o personagem do diretor humaniza-se, deixa de ser “o famoso diretor Ham Cheon-soo”, cultuado como gênio, para ser apenas um ser humano sujeito a beber demais, e a falar demais, e a dar vexame. 

A artista plástica e o cineasta, no ateliê: discussão essencial

















Sob esse prisma, duas sequências deixam claro que a intenção de Sang-soo Hong, ao contrário da primeira impressão, não era apenas contar uma história de amor/atração, mas generosamente colocar a própria arte em discussão. Os diálogos entre o diretor e a artista plástica, no ateliê dela, antes e depois, revelam essa revisão. No segundo momento, é lapidar uma resposta da moça à suposição de que sua pintura era uma forma de fugir da solidão. “Não, quando eu quiser fazer isso, eu vou procurar um cara legal.”

A segunda passagem é a relação do diretor com um crítico local, responsável pela mediação de uma palestra sobre a obra do cineasta. No momento “errado” da história, o diretor sente-se agredido pelas perguntas do crítico, nitidamente sentindo-se aviltado. Seu estado de espírito – preso ao pedestal – parece agir contra uma interlocução franca e construtiva com quem quer que seja. Na recontagem da história, despido da faceta de mito infalível, o diretor surge relaxado e aparentemente feliz, em ver sua obra discutida e valorizada em um ambiente de pessoas interessadas no que ele tem a dizer.


Depois de descer do pedestal, com a simples admissão de uma verdade essencial, ele parece tornar sua própria arte mais verdadeira e mais propícia a atrair, enlevar, agradar ou simplesmente provocar a reflexão em quem tiver contato com ela.A cena final, cercada de afeto e compreensão, faz a ponte definitiva entre aquele casal improvável. Não seriam, afinal, suas vidas distantes que os uniriam, mas a arte.

Monday, April 18, 2016

Choram Paulinhas e Vanessas

Talvez tenhamos que reaprender a ser pedra
Fechei a janela do banheiro, abri a torneira da ducha, liguei o rádio em alto volume, enfiei a cabeça debaixo da água. Depois de sair da última colocação, no primeiro turno, o Corinthians chegava à final e perdia para o São Paulo, no Campeonato Paulista de 1987. Não queria ouvir a comemoração lá fora, os fogos, os gritos.

Sentei ao lado da janela, só porque o Outono tinha se fantasiado novamente de clima do Saara, acompanhei os votos no Twitter, meti fones de ouvido e, ao sinal do desfecho, soltei Red Hot Chili Peppers no máximo. A Câmara dos Deputados tinha aprovado o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Não queria ouvir a comemoração lá fora, os fogos, os gritos.

“Você parece criança que, quando os pais dão bronca, tampa os ouvidos e fica gritando qualquer bobagem para não ouvir!”

Meu filho, depois de socar o sofá e o chão com suas luvas de muai thai, tinha certa razão em criticar um traço tão imaturo de escapismo quanto aquele. Não me demovi do gesto. A primeira música acabou, a farra na rua continuava. Soltei outra canção. Finda a segunda, o silêncio.

Chora mais. Depois, luta (foto Gustavo Andrade AFP)


Perdemos. Sim, perdemos feio, de lavada. É triste perder e, se o gesto foi o mesmo de quase trinta anos atrás, bancando a criança mimada que não, não quer ouvir, desculpem-me, companheiros. Tenho a pele fina, os ouvidos sensíveis e, talvez, o mais relevante: um ego inflado que não gosta de ser tripudiado. É por ele que não me exponho em brigas políticas ou futebolísticas. Talvez eu seja menos civilizada do que minha postura sugere. Eu não digo tudo o que penso – de pênaltis mal marcados a votos porcamente justificados – mas penso cada barbaridade que, deixa pra lá...

Vou continuar não brigando, mas meu coração foi se apertando e fazendo brotar palavras à medida que interagia com amigos – reais e virtuais – na noite deste domingo. Eram Paulas, Wesleys, Vanessas, Alans, Tatianas, Gustavos. E os que mais me comoviam eram os bem jovens, muitos deles entristecidos não apenas pela derrota, mas principalmente por ver aflorar sentimentos de intolerância que deságuam em algo que não pode ser chamado de outra coisa que não seja fascismo.

Por partes, companheiros. Primeiro, à tristeza pela derrota. Muitos de vocês não eram vivos, ou pelo menos crescidos, enquanto vivíamos uma ditadura militar no Brasil. Não viveram a campanha pelas Diretas Já, não votaram para presidente pela primeira vez junto com seus pais. Não vou dizer que a derrota de ontem foi pouca coisa, não foi. Mas não posso deixar de notar que os últimos treze anos, que representaram a continuidade de um governo de esquerda no Brasil, significaram mais da metade da vida de alguns de vocês. A guerra ainda não está perdida, e a mobilização de todos continua sendo vital para tentar reverter esse quadro.

Mas, acostumem-se à ideia de agir como oposição, caso percamos também a guerra. Esses treze anos, coincidentemente, marcaram também a popularização das redes sociais no mundo. É certo que a oposição à esquerda no Brasil articulou-se de forma competente por esse canal. Panelaços e manifestações nasceram nos últimos anos por meio desse veículo. E pessoas que pensam de forma contrária a nós sentiram-se encorajados para se mostrar. Mostraram muita convicção e vários exageraram na dose de agressividade.

Mas eu arrisco dizer que a neodireita brasileira não tem noção do que a esquerda pode fazer quando deixar de ser vidraça e se tornar pedra novamente, como fomos na maior parte da nossa existência. Fundamentalmente, porque nosso ativismo não se restringe ao ambiente virtual. Estamos lastreados por forças sociais (de trabalhadores, de estudantes etc.) que pode – e, ao me parece, vai – mobilizar a sociedade para além dos protestos festivos aos domingos.

Por isso, jovens companheiros, quando passar a vontade de chorar, de se esconder no riff barulhento de um rock estridente ou de socar o chão, mobilizem-se novamente. Já fizemos isso antes. Dói, mas caleja, e não mata ninguém, pelo menos enquanto não se chegar à conclusão de que a ditadura é melhor, como pensam alguns.


Quanto à tristeza de ver o discurso fascista florescendo entre nós, principalmente entre os mais jovens... Desculpem, talvez para essa eu precise da ajuda de vocês. Eu entendo e louvo a ideia de que jovens têm de ser do contra. É quase orgânico, e esperado. E acho que o atual governo tem erros terríveis a serem corrigidos, e acharia natural ver mais jovens empunhando a bandeira da inclusão social ampliada, da descriminalização das drogas, do respeito à mulher, do casamento homoafetivo etc. Mas não consigo encontrar explicação para, ao contrário, ver crescer as intolerâncias raciais, religiosas e étnicas, a homofobia, o machismo, a misoginia. Alguém me ajuda com isso? 

Wednesday, April 13, 2016

Rosa e azul

Apresentando a donzela à corte: bleargh!
Eram pelo menos dois por mês, quando não mais. Uma classe com vinte e poucas alunas, todas completando 15 anos naqueles meses. O meu, em fevereiro, não teve festa nem valsa. Estávamos de mudança para aquele que seria o lar dos nossos sonhos, um apartamento espaçoso e ensolarado, e todos os recursos iam para ele. Nem que estivéssemos nadando em dinheiro. Eu dizia, desde os bailes das minhas primas mais velhas, que, na minha vez, não teria nada daquilo. Por essa época, e até hoje, não gosto de comemorar aniversário, não gosto de ser o centro das atenções, para as boas coisas, como ultrapassar mais um ano de vida, ou para o mal, como ir ao pronto-socorro tomar soro.

Dois fatores somavam-se à minha ojeriza a bailes de debutantes: eu tinha uma autoestima rastejante na época, com um corpo habitualmente acima do peso e aparelho nos dentes, o que sempre me fazia sorrir de boca fechada nas fotos. Vestidos de baile - ainda mais nos anos 1980, cheios de mangas bufantes - não favoreciam a discrição que eu sempre pretendia.

Mas o mais severo senão era ideológico, bipartido em duas vertentes. Quando entendi que o baile de debutantes remontava ao conceito de "apresentar a jovem à sociedade", meu sangue feminista ferveu. Eu não estaria na vitrine desse mercado humano, à espera de pretendentes, mesmo que minhas amigas "normais" me dissessem que era só uma festa, para todo mundo dançar, divertir-se, paquerar.

A "diferentona": "Com reco eu não danço"


A segunda vertente, intransponível, era política. A moda, na época, era convidar cadetes das Forças Armadas para ir dançar a valsa com as 15 escolhidas pela aniversariante. Era 1985. Tínhamos acabado de encerrar a ditadura militar. Toscamente, é verdade, com um governo eleito indiretamente pelo Congresso Nacional (o hábito é antigo, como podemos perceber). Mas estava lá, um civil no poder. "Eu, dançar com um reco?!" Era assim que nos referíamos aos aspirantes a militar, fossem do Exército ou da Aeronáutica. Que eu me lembre, nunca apareceu nenhum grupo da Marinha nessas festas, e nem que aparecesse o próprio Richard Gere de quepe branco, saído do set de filmagem de "A força do destino", eu bailaria o Danúbio Azul com ele.

Atravessei o ano indo a festas, dançando ao som de Titãs, Paralamas do Sucesso, Barão Vermelho, Madonna, George Michael (que ainda era do Wham), A-Ha. Enlouquecidas com tantos bailes, as mães parecem ter costurado um acordão entre si, para que as 15 donzelas usassem sempre vestidos cor de rosa. Ninguém se importava em repetir o modelo. Minha mãe providenciou para mim um conjunto de saia e blusa, em chamalote azul. Era um tecido da moda, dava a ilusão de formar umas ondas na superfície. Elas iam de rosa, eu ia de azul, e seguia ignorando solenemente todo e qualquer cadete. Bem feito. Segui boca virgem até os 18 anos, e isso não é força de expressão. Minhas amigas achavam engraçada minha rebeldia. Aos 15 anos, a gente gosta de ser do contra. O que, por esses tempos, significava marcar posição contra os cadetes do baile de debutantes. Hoje, os do contra tiram fotos com a PM.

Sunday, March 27, 2016

Homens-objeto

O filme “A grande aposta” recebeu cinco indicações ao Oscar, incluindo melhor filme e diretor. Levou apenas o prêmio de melhor roteiro adaptado, o que não quer dizer que o filme seja ruim. Pelo contrário, achei “A grande aposta” superior a outros três concorrentes a melhor filme que vi neste ano – “O regresso”, “O quarto de Jack” e “Spotlight”, embora tenha gostado muito dos dois últimos.



Quando comentei que tinha adorado “A grande aposta”, nas redes sociais, algumas pessoas questionaram se eu não havia considerado o enredo “técnico demais”, por conta das exaustivas referências a termos do mercado financeiro. Bem, o filme propõe-se a contar de que maneira a bolha imobiliária dos Estados Unidos tornou-se uma enorme crise econômica mundial, não havia como escapar desses termos.

Mas acho que os roteiristas foram hábeis na tarefa de introduzi-los, primeiro com as repetições constantes de sua definição, cabíveis nos diálogos, e também com o recurso bem-humorado de utilizar celebridades como a cantora Selena Gomes para exemplificá-los. Ainda que não se entendam todos os meandros desse ambiente, é fácil deduzir a mensagem principal do filme: o mercado financeiro é uma selva.

Christian Bale, em "A grande aposta"


No entanto, não é impossível que eu tenha me abstraído da dificuldade de entender todo o discurso técnico por um detalhe prosaico: o filme tem um monte de atores bonitos e/ou charmosos, e em dado instante eu percebi que além de seguir a história, eu estava interessada em continuar vendo aquele desfile de espécimes masculinos. Não eram poucos: Christian Bale, Ryan Gosling, Brad Pitt (que é um fracasso retumbante em tentar parecer gordo e velho), além de nomes menos conhecidos, como Hamish Linklater (o problemático, porém engraçado, irmão de Julia Louis-Dreyfuss na série “New adventures of old Christine), e até alguns coadjuvantes como Max Greenfield e Billy Magnussen.

Não. Não eram poucos. Era praticamente um monopólio de homens na tela. E logo me lembrei de outros dois filmes, citados anteriormente, que praticamente só mostravam homens em ação: “O regresso” e “Spotlight”. Comentei isso com o amigo crítico e escritor Pablo Villaça, diretor do site Cinema em Cena, e ele apontou que a falta de representatividade das mulheres no cinema não é novidade, em vários aspectos. Um deles é a baixíssima quantidade de mulheres indicadas ao Oscar, ao longo da história, na comparação com homens, em todas as categorias, como mostra este texto (em inglês).

Brad, desista: você nunca fica feio


Também me chama a atenção o fato de que nem sempre as atrizes premiadas pela Academia estejam nas produções indicadas ou vencedoras dos principais prêmios (Melhor filme, especificamente). Este outro texto, também em inglês, quantificou isso, mostrando que, na história, apenas 40% das mulheres indicadas na categoria Melhor atriz estavam em produções indicadas a Melhor filme, contra 52% entre os homens.

Uma tentativa de justificar essa diferença poderia passar pela escolha dos temas. Ora, se vamos falar de mercado financeiro e o mercado financeiro é dominado por homens, é natural que tenhamos mais atores que atrizes. O mesmo se aplica para um filme que fale de uma tropa do exército deslocando-se em um ambiente inóspito. No entanto, praticamente qualquer história pode ser contada do ponto de vista das mulheres afetadas direta ou indiretamente por elas. E ainda: o mundo está cheio de histórias cujo protagonismo se concentra em mulheres ou em grupos de mulheres, e muitas dessas histórias esperam ser contadas.

Ryan Gosling: "ô, lá em casa..."


Mas, então, fiquei pensando que minha atitude contemplativa da beleza masculina, diante de um filme tão impregnado de testosterona, ainda que sério, talvez tenha sido uma pequena rebeldia. Querem nos impor machos brancos indômitos nas telas, relegando as mulheres a papéis menos que secundários? Não tem problema. Façamos deles homens-objeto, eventualmente desconsiderando o que estão falando, apenas para admirar seus dotes físicos. O gesto de desprezo intelectual não é muito diferente do que se tem feito regularmente com a figura feminina, na mídia, em geral. Mulheres seminuas têm ajudado a vender de cerveja a carro 0 km, sem precisarem abrir a boca. De preferência, não abrindo.

De fato, tenho visto crescer, nas redes sociais, uma postura frontalmente lasciva das mulheres em relação a atores, esportistas e celebridades, cultuando esses homens eventualmente mais pelo seu invólucro do que pelo que dizem e fazem. Eu mesma tenho seguidores dos dois gêneros que se atiçam com meus comentários ligeiramente maliciosos ou meramente contemplativos da beleza de pilotos de Fórmula 1, jogadores de futebol e artistas, como se eu emulasse um macho típico soltando um gracejo do gênero “ô, lá em casa...”.


Essa naturalidade em “coisificar” um homem talvez seja boa notícia, por refletir mais uma fronteira vencida pela mulher na sociedade. Mas não aplaca a sensação de baixa representatividade que esses mundos – do cinema, do esporte etc. – ainda nos impõem. Eu trocaria alguns suspiros motivados por músculos salientes, olhares sedutores e sorrisos marotos pela sensação de maior pertencimento a esses mundos. Basicamente porque a contemplação na tela do cinema ou na TV é mera idealização, mas a desvantagem feminina é real, palpável e cruel.

Wednesday, March 23, 2016

Eu não te odeio

Posicionei o celular na direção dele e perguntei se poderia fotografá-lo. “Por que, você vai me bater?” Eu tinha acabado de sair do trabalho, estava usando um vestido estampado, sandálias de salto e carregava a bolsa em um ombro, a mochila com o notebook no outro. Penteada, levemente maquiada, como sempre. Eu realmente devo parecer madame, ou executiva. Era até natural que ele não me identificasse com o restante das pessoas que estava na Avenida Paulista naquela hora, manifestando-se a favor da democracia, a maioria vestindo vermelho. Mas era improvável que eu pudesse bater naquele homem de talhe enorme. Eu, um metro e cinquenta e seis de altura.

Mas entendo. Sinal dos tempos, da animosidade como regra. “O que é isso, companheiro?” Ele se desarmou, exibiu o cartaz que carregava e eu fiz a foto. Ri com ele. Mas não tinha nada de graça naquele rir. Não, não é sinal dos tempos coisa nenhuma, não é de agora, não é de hoje. Um homem negro ter medo de alguém como eu, apenas pelos símbolos de bem-nascida que carrego, é uma das histórias mais antigas deste país. Mais velha que esta, só se ele fosse índio.

"Vai me bater?"


Na hora, não relacionei o episódio a outro fato daqueles mesmos dias. Eu estava treinando, na academia, e um professor me perguntou, em voz baixa: “Você, que é petista, como está vendo tudo isso que está aí?” O tom de voz dele, que é contrário ao atual governo federal, carregava uma intenção evidente: não me expor naquele ambiente em que se contam nos dedos os eleitores de esquerda. Habitualmente acuada, por ter vivido a maior parte da minha vida em locais hostis à minha ideologia, respondi brevemente o que ele me perguntou e subi para fazer uma aula. Enquanto pedalava ao som de um bate-estaca, uma ideia martelava meu cérebro. Queria retomar a conversa e corrigi-lo quanto à minha definição. Não sou petista.

Se você chegou até aqui, já estou feliz. Em uma sociedade na qual muita gente mal lê placa de trânsito, atrair o leitor por três parágrafos é vitória do escritor. Caso alinhe-se à direita, não se anime com a afirmação acima. Caso seja “petralha”, “vermelho”, “bolivariano”, não abandone a leitura.

Eu sou de esquerda, desde a adolescência e nunca abandonei meus ideais socialistas. Já escutei muita crítica e deboche, dizendo que o socialismo não deu certo em lugar nenhum. Para todos, sempre dei a mesma resposta. Acredito que o socialismo ainda não deu certo porque o ser humano ainda não deu certo.

E acredito que está chegando um tempo em que a sociedade vá perceber que a lei da selva já não nos serve, que o “cada um por si” cavou um abismo profundo no qual estamos todos caindo, puxados pelo peso das florestas desmatadas, da força das águas armazenadas em barragens débeis, das montanhas de corpos de crianças famélicas, de refugiados cuspidos de suas terras, de mulheres assassinadas por maridos violentos, de gays agredidos apenas porque são. À beira do fim, após séculos de depuração, aprendendo muito mais pela dor que pelo amor, tenho fé: o homem vai entender que só a solidariedade salva.

Pode ser que o regime de governo que vá emergir desse pré-caos não se chame socialismo. É claro que a mácula sobre o nome pode ser incontornável, pelos maus tratos que governos ditatoriais ou simplesmente incompetentes lhe impuseram. Mas não me parece haver outra saída que não seja perceber o outro como reflexo de si mesmo, de enxergar-se naquela criança com fome, naquele imigrante, naquele homossexual, sob o risco de cairmos todos nesse mesmo buraco.

Qual não foi minha surpresa, recentemente, quando descobri que um pré-candidato à disputa presidencial dos Estados Unidos – Bernie Sanders, no caso – tem amealhado simpatizantes entre parte do eleitorado, especialmente jovens, ao tornar públicas suas posições que confrontam fortemente os ideais do livre mercado, deslocando o foco de um eventual governo seu para as pessoas, em vez de servir prioritariamente às instituições.

Teorizei um pouco sobre o “meu” ideal de sociedade por dois motivos: para expor claramente meu lado (se tivesse tido tempo de conversar com o personagem que abre este texto, ele entenderia que eu definitivamente não queria bater nele) e para explicar ao meu professor da academia que não concordo com tudo o que o atual governo petista fez. Isso inclui os erros administrativos e a corrupção (isso é tão óbvio que escrevi e apaguei essa menção algumas vezes, mas que fique, para registro). Mas também critico os avanços ainda tímidos desse governo em numerosas questões sociais. Eu idealizo um governo ainda mais destemido no enfrentamento a carteis, oligarquias, violências cotidianas e preconceitos. Este, que está aí, com muitos erros, foi o que mais se aproximou desse meu ideal.

Um motivo que não me impulsionou a esta “saída do armário”: convencer quem quer que seja da minha opinião. Em toda minha vida, só tive a pretensão de ajudar a formar o meu filho, porque sou responsável por isso e o que parece certo para mim teria de direcionar essa influência. Neste ano, ele se torna eleitor e vejo, com indisfarçável orgulho, que não reproduz minhas ideias. Confronta muitas delas, pensa por si.

Nasci e me criei em uma família de pensamento conservador. Amigos, vizinhos e a comunidade em torno, formada pela chamada “classe média”, seguiam a mesma linha. Os parentes votavam em massa na Arena, quando eu era criança. Professam essa ideologia até hoje, e por mais que me entristeça ver algumas dessas pessoas engrossando coros raivosos, sectários e preconceituosos, não vou ao embate contra eles. Primeiro, e mais importante, pelo afeto que me une a vários deles. Mas também pelo respeito que tenho à opinião de cada um. Como eu, são adultos e também tiveram as mesmas oportunidades de se informar e de formar seus pensamentos.

Acho até certa ingenuidade quando vejo amigos de esquerda alertando a massa que prega um regime de exceção, como intervenção militar, por exemplo, sobre os perigos que isso possa representar para o cidadão comum. Acho ingênuo porque, de fato, dificilmente essas pessoas (gente como eu, diga-se) serão diretamente afetadas pelo governo. Qualquer governo. Quem tem casa, carro, diploma, sítio, plano de saúde, passaporte etc. vive altos e baixos, aperta o cinto hoje, gasta em outlet amanhã e, no mais, toca a vida.

É claro que alguns se ressentem mais de momentos econômicos críticos como o atual e demonizam o governo, ainda que estejam patinando em dívidas ou em falta de oportunidades de trabalho porque fizeram escolhas erradas, ou gastaram demais e pouparam de menos. Mas raramente uma pessoa dessa classe vai militar politicamente ou incentivar seus filhos a fazê-lo. Geralmente, vai fugir de “confusão”, levando sua vida de “Ouro de tolo”, na certeza de que político é tudo igual. Não é pela ameaça da supressão de direitos que alguém vai alertá-los para o risco de um recrudescimento político e social. Nem por isso, vou ironizar suas escolhas, chamá-los de ignorantes, vociferar contra o que acreditam.

Manifestante não identificada na Avenida Paulista: não sei quem você é, mas você me representa

Se é fácil fazer isso porque os laços que me unem a muitos deles são os de afeto, não acho que seja impossível transportar a mesma tática para os que eu pouco conheço. Porque, para além do discurso raivoso, das ideias opostas ou simplesmente da aparência, pode ser que haja uma fagulha de diálogo. Da mesma forma que o companheiro na Paulista percebeu que, atrás do meu jeito de madame, havia ali alguém que, em grande medida, afinava o pensamento com o dele.


Não vou terminar sem expressar mais claramente o que penso “de tudo isso que está aí”. Mas vou fazê-lo com a ajuda do amigo Pablo Villaça, que publicou ontem este texto. Depois de lê-lo, eu ansiei muito pelo abraço que encerra a narrativa. Sintam-se, todos, abraçados.