Sunday, January 31, 2010

Arquitetos de obra pronta


Meu parceiro Sergio Brito, um dos mais talentosos editores de arte com quem já trabalhei, costuma definir desta maneira aqueles que, depois de pronto um projeto editorial, começam a tecer comentários óbvios: são os arquitetos de obra pronta. Depois que a coisa já aconteceu, é bem mais fácil teorizar sobre ela. Não querendo ser arquiteta de obra pronta, prefiro apresentar meus palpites sobre as principais equipes de Fórmula 1 deste ano antes que o primeiro motor do primeiro carro ronque em Valência, neste primeiro de fevereiro.

Algumas equipes já apresentaram carros, duplas e novas pinturas. Como era de se esperar, as diferenças entre os modelos de 2010 e 2009 são bem menores do que aconteceu no ano passado, quando uma substancial mudança no regulamento aconteceu e reduziu drasticamente os apêndices aerodinâmicos dos carros. Foi uma revolução. Em 2010, não haverá mais reabastecimento, o que obrigou os projetistas a preverem tanques maiores, impactando na distância entre-eixos dos carros. É uma mudança, não uma revolução.

Discorro sobre a não-revolução como preâmbulo para meu primeiro palpite: apesar de ter amargado alguns desempenhos decepcionantes em 2009, principalmente em pistas nas quais a temperatura era mais baixa, a ex-Brawn, agora Mercedes, me parece favorita justamente pela similaridade entre os pacotes técnicos de 2009 e 2010. As cartas não foram tão embaralhadas desta vez. Quem já vinha bem não tem motivos para ir drasticamente mal.



Seguindo esse mesmo raciocínio, alinho meu segundo palpite: a "bebe quieto" Red Bull briga pelo título em 2010. Os flashes reluziram para Ferrari e McLaren, que apresentaram carros e pilotos paramentados, enquanto a equipe de Vettel, Webber, Christian Horner e, principalmente, Adrian Newey mantém-se na moita. O projeto de Newey para 2009, com seu bico afilado, mostrou-se verdadeiro benchmark da categoria. Tanto que a Ferrari não teve vergonha em copiá-lo neste ano. A incógnita do time dos energéticos segue sendo o motor Renault, grande calcanhar de Aquiles da temporada passada no quesito confiabilidade. A falta de interesse da montadora francesa na categoria pode atrapalhar e fazer da Red Bull mais um exemplar de "por fora bela viola, por dentro pão bolorento". Mas, em 2009, quando motor e carro ajustaram-se bem, foram verdadeiros olés na concorrência - China, Inglaterra, Alemanha, Japão, Brasil e Abu Dhabi.

Isso tudo não quer dizer que considero McLaren e Ferrari coadjuvantes. As duas grandes equipes praticamente desistiram do campeonato passado na metade e passaram a trabalhar com os olhos em 2010. Foi graças a uma decisão desse tipo que a Honda saiu do fundo do grid, em 2008, para se tornar a Brawn GP vencedora dos títulos de Pilotos e Construtores em 2009. É certo que, naquela ocasião, Ross Brawn era mais ou menos como a raposa tomando conta do galinheiro, presidindo a comissão que definiu as mudanças técnicas da categoria para o ano seguinte. Ainda em 2009, a McLaren esboçou uma reação consistente, dando a Hamilton duas vitórias, dois terceiros e um segundo lugar na segunda metade da temporada. O fato de abrigar os dois últimos campeoões da F1 pode detonar outra luta fratricida como se viu recentemente, com o mesmo Hamilton e Fernando Alonso. Ou como Senna e Prost. Quem corre de gosto não se cansa, já dizia minha avó. Se a McLaren encaixar um carro bom e perder novamente para si mesma, por conta de disputa interna, não pode dizer que ninguém avisou.



A Ferrari me parece uma incógnita ainda maior. A vitória de Kimi Raikkonen na Bélgica não serviu para atenuar o ano desastroso, agravado pelo acidente de Felipe Massa na Hungria e pela comédia de erros protagonizada depois pelo simpático, porém bufo, Luca Badoer. A ida de Alonso para Maranello revela um projeto de longo prazo. Cinco anos de contrato, dinheiro de xeque árabe, juras latinas de amor. Massa segue bem na fita com la famiglia. Mas persiste em mim a impressão de que, para a Ferrari, Felipe é o bom. Fernando, o marvado. O bom ganha elogios. O marvado, campeonatos. Segundo a dupla Fê-Fê (Felipe e Fernando) tem falado, os dados do túnel de vento, do simulador, do dinamômetro, enfim, de toda a traquitana tecnológica que serve para supor como o carro será na pista, parece que o bólido tem potencial. No entanto, ambos têm colocado várias condicionais e o jogador Alonso, que adora um pôquer, disse que não apostaria nem um dólar na certeza de que a Ferrari disputa o campeonato. Pode ser aviso para os tiffosi colocarem as barbas de molhos. Alonso, pôquer... Pode ser blefe, também.

No próximo post sobre F1, faço meus palpites sobre o campeonato de pilotos.

Invictus


Fazia muito tempo que a estreia de um filme não me deixava tão ansiosa. Quando ouvi falar de "Invictus", de Clint Eastwood, na mesma hora me programei para assisti-lo assim que estreasse. E o fiz ontem, dia seguinte da estreia em São Paulo. Adorei.

Motivos para a ansiedade: era um filme sobre esporte, sobre Nelson Mandela (uma personalidade que muito me interessa, talvez o líder mais marcante do meu tempo), um filme dirigido por Clint Eastwood (nunca deixei de gostar de um filme dele). Aliás, na primeira vez que fui a um cinema com um namorado foi para assistir a um filme de Eastwood. Era o improvável "Bird", sobre Charlie Parker. Na época, o jovem casalzinho, ambos metidinhos a intelectuais, olhava incrédulo para o cartaz do filme e dizia: "Nunca imaginamos que o primeiro filme que veríamos seria de Clint Eastwood...". Vinte e poucos anos atrás, Eastwood era mais um ator de filmes de ação do que um diretor respeitado.

Cheguei ao cinema em cima da hora. Sobrou-me apenas um assento na segunda fila. Péssima experiência. As cenas de ação, no campo de jogo, demandam certa distância para uma visualização ideal. De qualquer forma, não eliminou outros atributos do filme. O mais evidente e óbvio: o desempenho de Morgan Freeman como Nelson Mandela. Expressões faciais, gestual, sotaque, tudo remete ao líder sul-africano com veracidade inquestionável. Para ajudar, a reconstituição dos fatos reais é extraordinária. Como um atestado de realismo, no fim do filme, Eastwood coloca fotos dos próprios Mandela e François Pineear, o capitão do time de rugby, ao lado dos nomes de Morgan Freeman e Matt Damon. Semelhanças incríveis.

Mas não é só de atuações irresistíveis e reconstituições realistas que se faz "Invictus". Na minha ótica de apaixonada por esportes, vibrei intensamente com as cenas de ação em campo. Eu, que entendo pouco ou quase nada de rugby, me vi torcendo apaixonadamente pelo time da África do Sul contra o da Nova Zelândia. O que é algo praticamente inédito, pois foi a primeira vez que esta corintiana sofreu tão genuinamente por um time de verde jogando contra um time de preto...

Além disso, "Invictus" emociona ao reconstituir parte da vida de Mandela, sem deixar de mostrar seus paradoxos, sua grandeza como líder contrastando com sua solidão e afastamento da própria família. Emociona ao remeter ao poema que dá nome ao filme, embora deixe-o de certa forma no ar, ao não mencionar seu autor. Fui procurar por conta própria e achei este post, com o original e uma tradução para o português. Há cenas que quase resvalam a pieguice, como a do capitão Pineear visitando a cela que abrigou Mandela durante 27 anos. Mas é cinemão americano, afinal, e isso não é necessariamente um defeito.

Pequenos toques de diretor genial que valem o ingresso: as cenas em câmera lenta e o reforço dos sons guturais dos jogadores, que de certa forma reduzem aqueles homens uniformizados a animais, capazes de bater, de ferir, de atacar e de defender como feras ou presas. Capazes de alijar o semelhante de seus direitos, de segregar, de fixar-se a dogmas medievais com justificativas pueris. Ali, o rugby (poderia ser o futebol, a Fórmula 1, o boxe) não é mais um esporte. É metáfora da vida e da imaturidade reinante do ser humano.

Pelo twitter, o leitor Joubert Amaral me informa que o livro, como sempre, é rico em passagens e detalhes que escaparam ao diretor. Conta, por exemplo, que a insistência do capitão, para que o time aprendesse o novo hino sul-africano, é muito mais dramática e transformadora do que o filme apresenta. Boa ideia: vou aproveitar que meu aniversário está chegando e pedir o livro de presente...

Tuesday, January 19, 2010

28 anos


Há 28 anos, Elis Regina assumia de vez a condição de estrela.

Maior cantora do país. E ainda tinha bom gosto para futebol...

Sunday, January 10, 2010

Velha guarda


Em agosto do ano passado, escrevi este post sobre o caso Nelsinho Piquet x Flavio Briatore. O texto usava trechos de músicas da velha guarda da MPB para pontuar os lances da briga pública entre a família Piquet e o ex-chefe da Renault. Na ocasião, usei um trecho de uma música composta por Herivelto Martins e outra, cantada por Dalva de Oliveira, citando brevemente a briga pública entre o ex-casal.

Quem acompanha este blog sabe que gosto de Fórmula 1 e de música, misturando os dois assuntos eventualmente. Gosto pouco de TV, mas acabei me interessando pela minissérie que a Globo levou ao ar na semana passada, sobre a vida de Dalva e Herivelto. Assisti a alguns pedaços de alguns capítulos, o que naturalmente não me credencia nem para fazer a sinopse da história nem para avaliar a produção (acho que nunca vou me sentir gabaritada para avaliar nada em nenhuma produção de TV, especialmente em teledramaturgia).

Quando elogiei a caracterização dos atores, ouvi uma ótima frase da minha mãe sobre o Herivelto de Fábio Assunção. "Ele é bonito demais para fazer o Herivelto." Sim, de acordo. Mas, além de bonito, Fábio pareceu-me verdadeiro no papel. Uma boa maquiagem, com direito a uma prótese que o deixou com protuberante papada, somou-se às expressões corretas do ator. Vendo-o, eu enxergava aquele macho típico do século passado, que se achava no direito de pintar e bordar mas que negava o mesmo direito à mulher.

Mas, na minha opinião, as melhores coisas da minissérie foram a já decantada reconstituição de época que a Globo empreende em produções históricas e a atuação/caracterização da atriz Adriana Esteves. Os demais personagens reais retratados no programa (Marlene, Emilinha Borba, Dercy Gonçalves, Ataulfo Alves, Linda e Dircinha Batista) foram fielmente reconstituídos com atores contemporâneos. Roupas, mobiliário, microfones, auditórios de rádio, tudo parecia em sintonia perfeita com aquela atmosfera anos 30/40.

Adriana Esteves despiu-se da vaidade para abraçar o papel da cantora que apanhou mais da vida que carne de segunda. O cabelo crespo de Dalva, ruim de doer, afastou dela a imagem de loirinha brejeira que tanto grudou à sua figura em papéis anteriores. O gestual de sua Dalva, no palco, era preciso e fiel. A Dalva moribunda deu-lhe chance de exercer o drama e ainda de mostrar umas mãos macilentas de velha doente. Outro ponto para a maquiagem.

O melhor da série, na minha opinião, é levar a história e, principalmente, as músicas daquele período a várias gerações que não conheciam o tema. Mas é duro de aguentar os roteiros espremidos e forçados da teledramaturgia nacional. Contar uma história de décadas em cinco capítulos, com vários números musicais entremeando a sequência, acaba criando diálogos telegráficos e praticamente sem nenhuma profundidade.

Vendo a série, fiquei pensando em outros personagens da velha guarda da música brasileira que renderiam ótimas histórias: Carmen Miranda, Noel Rosa, Assis Valente, Vinícius de Moraes, só para ficar no pessoal da primeira metade do século passado.

E assim, em quase quatro anos de blog, perpetrei um texto elogiando a Globo! Talvez eu só volte a ver algo da teledramaturgia da emissora daqui uns quatro anos. Portanto, não acostumem...

Saturday, January 02, 2010

São Silvestre - ano 4



Faltam trezentos metros para o fim da prova. Olho no cronômetro e vejo 1h30. De longe, meu recorde negativo na São Silvestre. Mas faltam só trezentos metros. Já estou na Paulista, já subi tudo o que precisava, já corri quase 15 km. Mas não me canso de disputar corridas contra mim mesma e lanço-me um último desafio: cruzar a chegada antes que o cronômetro marque 1h31. Eu tinha acabado de entrar na avenida, vencendo a subida da Brigadeiro.

Volte umas nove horas no tempo. Manhã do dia 31/12, nove e pouco da manhã. Recebo uma notícia de morte. "Seu" Miguel havia partido na noite anterior, depois de uma relativamente curta, mas sofrida agonia. "Seu" Miguel foi uma espécie de avô postiço para mim. Sogro do meu tio mais novo, era uma figura engraçada. O mais divertido era assistir aos jogos do Corinthians, seu time, na sua companhia. Sempre escolhia um dos jogadores da partida para Cristo e o xingava do começo ao fim. Um jogador do próprio Corinthians, que fique claro. Se o Corinthians perdia, não demorava a decretar: "Também, com aquele perna de pau, só podia perder mesmo." Se ganhasse, pequena variação no discurso: "Não sei como ganhamos, com aquele perna de pau em campo".

Fui para o velório. Chegando lá, uma das primeiras reações à minha presença. "Ué, o que você está fazendo aqui? Não vai correr a São Silvestre?", disse meu primo Brunno, neto do "Seu" Miguel. Era cedo, ainda, umas 11h. Fiquei até a saída para o crematório e corri para casa. Preparei um spaghetti com legumes em tempo recorde e saí umas 15h15. Desde 2006 vivendo uma espécie de ritual na preparação para a prova, desta vez estava atordoada. No caminho para a Paulista, lembro de ter pensado: "Com que pernas vou correr? E com que cabeça?" Ao contrário do que dizia a música da Vila Sésamo, nem todo dia é dia, nem toda hora é hora.

Pensava e ia. Achava que não correria e seguia. Desanimava e continuava em direção à Paulista. Achei um estacionamento na alameda Jaú. Deixei vintão como pagamento adiantado e segui para o tradicional ponto de encontro da equipe Conexão, na frente do Hotel Maksoud Plaza. Lá, já estavam o Nilton, o Brando e a Alê Carioca. Depois, chegaram o William, o Henry, o Zoca e, surpresa!, nosso técnico Zé Eduardo Pompeu. Tínhamos feito o treino para a corrida no domingo anterior e eu não sabia que Zé correria desta vez. Foi a primeira vez que fiz a São Silvestre com ele e, quando fomos para a Paulista, propus: "Vamos fazer a prova todos juntos?" A ideia era meio absurda, porque é muito difícil correr em grupo em corridas de rua. Cada um tem seu ritmo e, afinal, são 21 mil pessoas na São Silvestre. Abafa o caso, encerro o assunto.

A largada, como se sabe, acontece na frente do Masp. Nós, da equipe, ficamos esperando o início da corrida na esquina da rua Pamplona, a uns trezentos metros. À nossa frente, aquele tradicional mar de cabeças, algumas adornadas por adereços esdrúxulos como vaso de cerâmica, chapéu de viking, coroa de louro, cocar. As fantasias se multiplicam, como sempre. Entre a largada da elite masculina e a nossa passagem pelo marco zero da corrida, mais de quinze minutos. Ao cruzar o portal de largada, olhei de relance para um telão e vi um dos líderes já no Minhocão. É gente demais para passar pelo mesmo pedaço. Há que esperar, não tem jeito.

À medida em que avançávamos, a mesma sensação de edições anteriores. São Silvestre só é corrida para os líderes, para os atletas de elite. Nós, amadores, devemos antes de tudo curtir essa prova como um grande evento, uma celebração. Buscar recorde na São Silvestre só é possível se você conseguir largar muito na frente. E aguentar o tropel de gente e a overdose de cotoveladas. No final da Consolação, continuávamos juntos eu, Brando, Henry e Zé. Depois do primeiro posto de água, na avenida São João, Henry desgarrou-se. Seguimos, os três, por um longo trecho, até o quilômetro nove, quando subimos o viaduto que liga as avenidas Rudge e Rio Branco. Daí para a frente, éramos eu e o Zé.

Então, chegamos de volta do Centro e suas cenas inusitadas. Mendigos encachaçados são outra tradição da São Silvestre. No Largo do Paissandu, um representante da classe juntou-se aos corredores. Uma das mãos levava no alto um ramo de folhagens, qual tocha olímpica. A outra ocupava-se de segurar o calção, que insistia em cair. "Vai, arruda!", "Boa, carqueja!", a multidão encorajava o lunático, que disparou entre os atletas com suas passadas trôpegas, porém rápidas, de chinelo de dedo.

Cheguei à Brigadeiro e, apesar da temida subida, só então consegui desenvolver um ritmo razoável, escalando o morro com relativa facilidade, pois a multidão, naquele ponto, já havia se dispersado bastante. Quase cruzando a Treze de Maio, encontrei o Nilton e, como sempre, fiz uma referência futebolística, já que ele é palmeirense e nunca escapa aos meus comentários alvi-negros. Este ponto, a Treze de Maio, é tido por todo corredor que já fez a São Silvestre como o fim da prova. Explico. Ali está o marco de 14 km. O quilômetro final terá cerca de 300 metros de terreno plano, na Paulista, e outro tanto no final da Brigadeiro. Ou seja, falta pouco, muito pouco para subir. A placa de 14 km, para um atleta amador, é mais ou menos como receber a sinalização de que falta só uma volta para o fim da corrida de Fórmula 1, quando se tem o melhor carro, gasolina no tanque e trinta segundos de vantagem para o segundo colocado.

Escalo a montanha, viro à direita, entro na Paulista. Checo o cronômetro. Já era uma quase tradição, para mim, fazer tempos piores a cada edição. Em 2006, 1h22. Em 2007, 1h23. Em 2008, adivinha? 1h24, claro. Eu já tinha passado muito todas essas marcas, já tinha entregado para Deus. 1h30. Olho o portal de chegada ao longe, pernas pra que te quero, um desesperado sprint final. Ainda ouço de um colega - "Boa, é isso aí, menina" - e aproveito aquele que é meu mais prezado Réveillon. Em 2010, se Deus quiser, estarei aqui novamente. E em todos os próximos anos, os bons, os não tão bons, os excelentes. Cruzo a linha de chegada, zero o cronômetro.

1h31.

Foto: Fernando Pilatos/Gazeta Press