Tuesday, January 31, 2006

Vende-se um samba enredo


Vamos partir do seguinte juízo: compor um samba-enredo é tarefa difícil, e não estou sendo irônica. O samba-enredo pode ser definido como uma obra de arte nascida de um briefing. Para quem não está familiarizado com o termo, briefing é daquelas palavrinhas que publicitários adoram: o anunciante quer vender tal produto – margarina, por exemplo – e diz à agência o que a propaganda deve reforçar – tem menos gordura e espalha mais fácil no pão. Pronto, esse é o briefing. O samba-enredo segue a mesma dinâmica. Não que esse tipo de samba seja meramente um jingle crescido, mas reza na mesma cartilha. A música deve contemplar todos os itens do enredo, seja ele dedicado a algum vulto da história ou à preservação do meio-ambiente. E deve fazer isso: 1) rimando; 2) criando um refrão empolgante; 3) possibilitando formas intercambiáveis de se cantar (pode trocar a primeira estrofe com a última e tudo ainda fará sentido).
Apesar da variação praticamente inesgotável de temas e motes, ano após ano, as alas de compositores das escolas enredam-se em fórmulas multi-uso que servem com a mesma eficiência, não importa o homenageado em questão. Pode ser o desmatamento de Tiradentes ou o esquartejamento dos botos da Amazônia. Foi diante dessa constatação que um belo dia, nove ou dez anos atrás, uma reunião familiar terminou com um samba-enredo inteirinho composto.
Lembro que a ala de compositores reunia meu irmão, meu falecido pai, meu marido e pelo menos dois primos, além de mim mesma. Só pelo número de artistas envolvidos, logo saquei que a coisa seria boa. Samba-enredo que empolga a arquibancada tem que ter pelo menos quatro ou cinco autores, fora os dezessete puxadores, isso desde o antológico Bumbum-praticumbum-prucurundum, que tinha uma relação de compositores mais longa que o nome de D. Pedro I e terminava com um emblemático Beto Sem Braço (lembra?).
Acordamos, desde o prólogo, que deveríamos trabalhar em cima de algumas palavras-chave. Na língua portuguesa, algumas palavras parecem cumprir uma existência cármica. Não vieram a esse mundo à toa. Por exemplo, “murmurar”. Ninguém murmura fora de bolero, murmurar é uma palavra que só faz sentido em bolero, por isso Aldir Blanc merece um 10, com distinção e louvor, por tê-la usado em “Dois pra lá, dois pra cá”. Da mesma forma, há termos que só cumprem sua missão na Terra se estiverem dentro de um samba-enredo, como a palavra “açoite”, para citar apenas uma. Mas são várias. Só de listá-las, fizemos o refrão.
Surgiu, então, a idéia de compor um samba só de refrães. Que abandonamos porque nos pareceu aquém de nossa capacidade de efetivamente contar uma história. Fomos evoluindo, acrescentando personagens que povoam o imaginário do samba-enredo desde sempre, não importa se ele verse sobre folclore ou a evolução dos transportes (ou das comunicações, ou das telenovelas da Globo). E chegamos a um samba-enredo consistente, com um refrão poderoso e todos os ingredientes para fazer sacudir a Sapucaí (ou o Anhembi, e aqui está outro valor agregado de qualquer bom samba-enredo da atualidade, que deve servir indistintamente para o Rio ou para São Paulo, já que a rima é a mesma).
A questão é que nenhum dos compositores de nossa ala jamais participou da ala de compositores de escola nenhuma. E ficamos com essa jóia rara nas mãos. Na qualidade de empresária, ou curadora da obra, sei que está meio em cima da hora, mas coloco nosso samba-enredo à disposição ainda para o Carnaval 2006. Reforço que a letra é passível de “customização”, encaixando-se sem maiores percalços em praticamente qualquer enredo. A melodia é fácil, pena não poder mostrá-la porque, infelizmente, nunca chegamos a gravá-la, mas mantém-se viva a chama da esperança. A quem interessar possa, a letra do samba é a seguinte:

Os escravos de Iemanjá
De noite entravam no açoite
E cantavam o seu refrão
Pedindo pela sua salvação

(refrão)
Ô-a-la-la-ô, a-la-la-ô
A Mãe D´Água da Nega Fulô
E o saci-pererê
cantava tenha fé
Que um dia cê vai ver

(Quero beijar você!)

Quero beijar você
Ô, balancê, balancê
Balança, balança minha gente
Que a galera vai tremer

Para mais informações e eventuais negociações, comentários neste blog.

Sunday, January 29, 2006

A parábola do tremoço


Dizer que ele havia nascido no Mercado Municipal não é bem verdade. Nada nasce no mercadão, mas foi ali que ele se conheceu como gente, ou como tremoço. Sempre ali, submerso na água de conserva, vizinho das azeitonas, família grande e diversificada, com variedades verdes, roxas, pretas, nacionais, chilenas, portuguesas. A dele era única: todos ali eram tremoços, sem outras variações de cores ou procedências. Mais adiante, conviviam os multicoloridos picles, gente meio ardida, mas boa gente. E cebolinhas, berinjelas, pimentões se enfileiravam na encosta da barraca, como formando escolta para os nobres tomates secos e fundos de alcachofra, novos ricos recém-adquiridos pelo gosto gastronômico nacional. Era só um tremoço nessa multiplicidade de existências e enquanto muitos aspiravam a terminar os dias na dispensa chique de alguma mansão dos Jardins, ele acalentava um sonho prosaico – queria conhecer o estádio do Canindé.
A aspiração do jovem tremocinho soava como piada, como se esse paraíso perdido de fato nem existisse. Ele vivia no embate permanente de dois mitos. Ao mesmo tempo em que se recusava a acreditar, com todas as suas forças, na máxima de que todos da família eram insossos (“Somos uma drágea sem gosto que, quando adicionada de sal, fica com gosto de sal”), pegava-se com fé monumental à certeza de que, sim, existia tal estádio de futebol e que ele, sim, era o único no mundo onde se vendiam tremoços.
Lá do fundo do balde, com o peso de décadas de crença e de centenas de tremoços sobre si, ele vibrava em silêncio pelo dia que seria colhido pela concha bojuda, que o transportaria para um saquinho transparente e de lá ele percorreria pouquíssimos quilômetros até chegar ao Canindé. Não se importava de ganhar o mundo com o status de um simples “pode deixar”. Isso parecia uma desonra para muitos. A cena era clássica. “Por favor, 150 gramas de tremoço”, frase seguida de movimentos ágeis do balconista, manipulando concha, saquinho e balança como armas sagradas do varejo. Os digitais da balança apontando o peso extrapolado. “Deu 165 gramas, pode deixar?”, frase invariavelmente acompanhada de um complacente “Pode deixar”. Desonra para uns, alforria para ele. Ganharia a avenida, veria o São Vito de frente, seguiria em direção ao norte, percorreria um trecho da Cruzeiro do Sul, chegaria à Marginal e pronto! O Canindé.
Seus companheiros de balde e salmoura riam de suas pretensões. “Tu vai é acabar em um boteco da Luz, mastigado por uma puta entediada”, praguejava um. “Pára com isso, moleque, que Canindé, que nada. Torce para ir para a Vila Madalena, aquilo é que é vida.” Ele sofria em silêncio salgado. Engolia. Até que um dia...
O casal fazia suas compras em harmonioso conchavo quando um quarto de provolone parecia apontar para o fechamento da conta, ao que o homem acrescentou – “Ora, pois, vou levar um bocado de tremoços, já que verei a Lusa amanhã no Canindé.” Por uma daquelas improváveis conjunções geográfico-astrais, o tremocinho estava quase na superfície. Quase desfaleceu de ansiedade ao ecoarem tais palavras em seus minúsculos orifícios-ouvidos. Pela primeira vez, o tremoço tremeu. Sentiu a concha resvalar-lhe o dorso, escorregou para cima de outro tremoço, ficou fora da conchada. Rezou. Haveria padroeiro de tremoços desesperados? A água toda se revolveu. A concha saiu e voltou à água, colhendo-o pela borda. Enquanto a água era escorrida, ele assistiu, horrorizado, a alguns iguais serem devolvidos à tina. “Coitados, que infortúnio!”, gritava, e mais se apegava ao santo desconhecido, para não sofrer também ele tal sorte. Mas a conchada foi grande e o experiente balconista, num golpe de vista, jogou no saquinho só uma parte dos eleitos, enquanto pesava. O digital avançava, 130, 140, 150 gramas. Com um sinal de cabeça, inquiriu o freguês se deveria continua, ao que o português respondeu. “Ponha, pode colocar tudo!”, e só então a concha inteira vazou para o saquinho e só então o tremocinho se aquietou. Passaporte carimbado, ele iria ao Canindé.
As horas que se passaram entre o drama da balança e a chegada ao estádio foram mais longas que toda a sua existência, devidamente registrada no prazo de validade da etiqueta.
Mas enfim chegou o domingo, e o bigodudo simpático que o livrara dos grilhões do mercado logo depois do almoço acomodou-o, e a seus colegas, em uma diminuta caixa de isopor, na companhia de latas com um líquido amarelo alcoólico. Essas entidades ele não conhecia, mas supôs que se dariam bem, ao ouvir do homem uma frase com teor de provérbio: “Nada combina tão bem quanto cerveja e tremoços.” Rumo ao estádio!
Foi uma seqüência de choques. Do frio da geladeira ao calor da arquibancada. Do silêncio do tonel à turba animada. Sua cabecinha redonda girava. Nem o balde dos picles era tão colorido quanto a torcida organizada, com suas camisas verde-rubras, suas bandeiras, seus bonés. Nenhum balconista era mais barulhento que os bumbos, apitos e cornetas. E os fogos! Nossa Senhora dos Tremoços, que susto! Mas era lindo, era quente, era muito mais do que ele poderia sonhar. Esperava o momento em que o portuga iria sacá-lo do saco e tragá-lo com um generoso gole da cerveja já não tão gelada. Morreria feliz. O jogo já havia começado. Ele pouco entendia dos gritos destemperados do bigodudo agora nervoso, menos ainda dos gestos em direção àquele homem de preto, que se movia tão apagado naquele espetáculo technicolor.
Não podia imaginar seu destino. Em vez de terminar no estômago no torcedor, semi-digerido e afogado em cerveja, de repente viu-se arremessado em direção ao campo, de aperitivo transformado em munição de uma agressão inofensiva. “Foi pênalti, seu filho da puta!”, foi o grito de guerra que o catapultou em direção ao gramado. Tinha mesmo sido pênalti, mas o homem de preto marcara falta. E ele foi aterrissar bem ao lado do homem agredido e da bola, quase na risca branca que delimita a grande área. A tensão era imensa e vários jogadores circulavam, e gesticulavam, e falavam, e todos quase o pisavam a cada passo. Novamente, o tremoço tremeu. Um deles chegou mesmo a pousar a chuteira sobre sua cabeça. A enorme sombra que fez do dia ensolarado um breu tristonho foi sua salvação. Chuteiras de travas altas! E foi no improvável espaço entre uma trava e outra que ele ganhou sobrevida. Quando olhou para o lado, um planeta gigante tinha vindo habitar seu universo. Gigante, redondo e branco. Estava ao lado da bola. Mas tão ao lado que sentia o cheiro de couro. O alvoroço de minutos antes cessou. Um silêncio de tonel preencheu o espaço, ao longe escutava apenas a voz anônima da torcida. De repente, pensou ficar surdo. Um apito estridente, bem ao lado, saído da boca do homem de preto. A senha. Ao apito, um jogador correu em direção à bola e aplicou-lhe um chute com a força de mil carregadores de caixas de frutas. O deslocamento de ar foi tamanho que voaram todos: bola, pedaços de grama, e ele. A turma - bola, grama, tremoço, unida - descreveu uma longa curva no ar, chegou ao ápice da parábola e caiu, junta, de repente, sem chance para o goleiro, no canto esquerdo do gol. O estádio explodiu em gritos, bumbos, apitos, cornetas, fogos. Um tropel de jogadores correu para se abraçar. Outros ficaram cabisbaixos. O jogador que tinha desferido o tal chute correu para dentro do gol, pegou a bola, beijou-a. O tremoço, não. Ficou ali, no canto esquerdo do gol, glorioso como um gol. Terminou seus dias entre tufos de grama, grãos de terra. Nunca soube se era de fato insosso, porque nunca se aventurou goela abaixo. A um mito, pelo menos, sobreviveu. O Canindé de fato existia, e tremoços são servem apenas para mastigar, mas também, ou antes, para serem atirados no juiz.

(Inauguro meu blog com o texto que faz parte da corrente de contos sobre tremoços, criada pela Vange Leonel e pela Marcia Bechara, abraçada pelo Pedro Alexandre Sanches, inspiradores e instigadores deste blog.)