
O primeiro parágrafo deste post é uma confissão púbica. Quando consegui meu primeiro emprego, fui trabalhar em um local que mantinha o péssimo hábito de cancelar minhas folgas de maneira muito arbitrária. Sempre fui dedicada, CDF de dar nos nervos, mas uma hora me enchi e resolvi parar com a brincadeira. Ligavam do jornal, eu atendia e dizia, simplesmente: “Sinto muito, ela não está, não sei a que horas volta.” Se me perguntassem quem estava falando, respondia impávida: “É a mãe dela, pode deixar, eu dou o recado.” O segredo manteve-se enterrado por tantos anos por uma razão desconcertante de tão simples – minha voz é idêntica à da minha mãe. Nunca pretendi ou precisei imitar a voz da minha mãe. São iguais, apenas isso.
Isto posto, marco desde já minha posição em relação àqueles que se referem a Maria Rita como uma “imitadora de Elis Regina”. Genética, minha gente. A voz da filha é igual à da mãe, como igual é seu sorriso que deixa ver tanto dentes quanto gengiva, e espreme os olhinhos a ponto de virarem dois risquinhos chineses acima das bochechas protuberantes. Já escrevi sobre Maria Rita
neste post, quando ela lançou o terceiro CD, Samba meu. Na época, não fiquei tão encantada com o disco, como havia ficado com os dois primeiros, mas depois fui vencendo o preconceito e curti muito várias faixas daquele disco. Nesta segunda-feira, fui ver Maria Rita pela primeira vez em carne e osso, em um espetáculo “íntimo e intimista”, como ela mesma definiu, no Tom Jazz.
Flashback rápido. Em 1980, eu era leitora por tabela da revista Claudia, comprada mensalmente pela minha mãe. A revista (quem se lembra?) tinha um encarte fixo, em papel jornal, com notas curtas, tipo notícia mesmo, sem a profundidade das matérias sobre comportamento, moda e beleza, que formavam a piéce de resistance da publicação. Notas, por exemplo, sobre espetáculos. Lembro de ler sobre “Saudade do Brasil”, espetáculo da Elis em cartaz, na época, no Canecão, Rio de Janeiro. O texto era mais ou menos assim: “Além de ver o show, você pode beber uma cerveja e beliscar batatinhas fritas enquanto isso.” Achei um descalabro: como alguém pode mastigar uma porção de fritas engorduradas enquanto Elis Regina canta “Conversando no bar”?! Respirar no mesmo recinto já é quase uma afronta, quanto mais comer e beber enquanto o milagre se processa ali, na sua frente. Enfim, nunca gostei de lugares onde se canta, se toca e se come ao mesmo tempo. Música, para mim, não é pano de fundo, é centro das atenções. O Tom Jazz é uma casa onde se canta, se bebe, se come e se toca, tudo ao mesmo tempo. Sempre vou preferir teatros, mas não nego a vantagem de estar em um local com essa configuração “intimista”: a mulher fica logo ali, a poucos passos de distância. Quem quiser comer e beber, paciência. Eu fui para ouvir. Oh, boy... E como ouvi.
Acústica excelente e músicos idem. Tiago Costa no teclado, Sylvinho Mazzuca no contrabaixo e Cuca Teixeira na bateria, aquele formato jeans-e-camiseta que Maria Rita vestiu nos primeiros shows e discos. E que este figurino fique apenas no sentido figurado, porque a moça está glamourosa que só ela, sequinha dentro de um vestido reto, curto e justo de paetê grená, cabelão poderoso. A sensação de pocket show termina ao primeiro acorde. O som dos três instrumentos preenche a casa de shows como uma massa musculosa de timbres bem definidos. E quando Maria Rita surge, sem alarde, o quarto instrumento se instala e a jam session começa. Músicos, meio brincando, meio dizendo a verdade, às vezes caçoam de cantores, chamando-os de canários, como se fosse mais fácil “apenas” moldar a voz à melodia do que dedilhar cordas, ou espalmar as mãos em acordes virtuosos sobre o teclado. Que isso valha para certa classe de cantores, mas não para músicos-cantores como é Maria Rita.
Eu imaginava que ela tinha essa característica, tive a certeza vendo-a ao vivo. “Há canções e há momentos, eu não sei como explicar, em que a voz é um instrumento que eu não posso controlar”, canta Milton Nascimento em “Canções e momentos”. Maria Rita, cantora, é a quarta instrumentista do grupo. Canários reproduzem a melodia, instrumentistas não se contentam. Reinventam. Por isso é tão recompensador ouvir Maria Rita cantar músicas que outros já gravaram. Ela subverte um rock em balada, transforma foxtrot em jazz. Foi o que fez, neste show, com “Só de você”, de Rita Lee, gravada com participação especial de César Camargo Mariano, pai de Maria Rita, no já longínquo ano de 1982. Maria Rita pegou a canção, confabulou com os colegas músicos e fez da deliciosa baladinha pop um jazz poderoso.
Foi na mesma linha com “A história de Lily Braun”, do espetacular LP “O grande circo místico”, gravada originalmente por Gal Costa, naquele mesmo período, início dos anos 1980. Neste caso, a releitura transcende a própria música. Maria Rita parece subir uma montanha enquanto canta a saga da cantora de cabaré que arrebata um fã. O fascínio, o flerte, a conquista, a paixão, a Lily Braun de Maria Rita vai subindo ao céu enquanto se consuma o encantamento com o homem dos seus sonhos. Mas eis que a cantora da história sucumbe ao pedido de casamento, abdicando do palco, da trupe, da turnê. Neste momento, Maria Rita vai além da interpretação afinada e irrepreensível de Gal. Ela – e seus músicos, claro – depois de atingirem o céu com a paixão de Lyly Braun, parecem começar a descer uma ladeira imaginária. “Nunca mais romance, nunca mais cinema, nunca mais drink no dancing, nunca mais cheese, nunca uma espelunca, uma rosa nunca, nunca mais feliz”. Cantora, instrumentista, atriz. Maria Rita contou e viveu a história de Lily Braun, transpirando na voz e na expressão corporal o contraste de sentimentos da personagem.
Maria Rita conta que escolheu o repertório deste espetáculo com base em “músicas que gosta de cantar”. Termina com sua interpretação arrebatadora de “Minha alma”, d´O Rappa, que já defini outras vezes como “o ouro de não-tolo do século 21”. Raul Seixas nos deu “O ouro de tolo” na época do milagre, um retrato da classe média acomodada com seus valores de pequeno burguês. O Rappa desnudou o inconformismo diante dos valores segregacionistas da elite que se esconde atrás das grades do condomínio. Maria Rita termina o show com esta canção-manifesto, entregue ao esforço vocal que impôs à música com sua interpretação intensa. Termina extenuada, para depois voltar e arrematar com “Encontros e despedidas”, de Milton e Fernando Brandt, e mais uma vez, “Cara valente”, do hermano Marcelo Camelo.

Quando Milton Nascimento deu “Encontros e despedidas” para Simone gravar, em 1982, senti o gesto como uma invasão. Ora, Simone parece ser uma pessoa doce, uma cidadã engajada, uma mulher de enorme valor. Mas, perdão, “Encontros e despedidas” evidentemente era uma canção feita para Elis. Milton sempre disse isso. Compôs a vida inteira para Elis, antes que ela gravasse sua primeira música, “Canção do sal”, continuou compondo por muitos anos, e seguiu pensando na voz dela, para suas canções, mesmo depois que ela morreu. Ao ouvir “Encontros e despedidas” na voz de Simone, pela primeira vez, levei um choque. Nunca deixei de ouvir esta e várias outras músicas pensando como ficariam na voz de Elis. Durante algum tempo, tive um sentimento ambíguo por Elis Regina. Amava devotadamente sua obra, mas não conseguia absorver sua morte, precoce, sofrida, estúpida, evitável, chocante. Elis, como observou a própria Gal Costa, certa vez, era capaz de vivenciar a emoção de suas músicas de uma forma quase incompreensível até mesmo para cantoras. Quem a viu cantar “Atrás da porta”, aos prantos, sabe do que estou falando. Cantava, chorava, sofria verdadeiramente com a letra, e não saía do tom! Elis não cantava apenas, Elis sentia as canções.
Por isso, nesta segunda-feira, vendo Maria Rita segura, altiva, absoluta em uma carreira que é dela, não de sua mãe, tive a sensação de que Elis estaria satisfeita. Porque é impossível pensar que ela cantava que queria “a esperança de óculos, e meu filho de cuca legal”, sem ter certeza de que ela não só cantava, mas vibrava intimamente por isso. Aquela cantora-instrumentista-atriz que eu vi no palco do Tom Jazz é a filha de cuca legal com que uma mãe pode sonhar.