
Tenho reparado que você raramente sorri nas fotos. Como a da capa da Rolling Stone deste mês, que veio louvar seus sessenta anos. Está com cara de saco cheio, como, aliás, convém a qualquer rock star. Nas páginas internas, mais carrancas. Há algum tempo, estive na Fnac, da avenida Paulista, e vi a exposição de suas roupas de shows de outrora, ao lado de fotos atuais, magra como sempre, envergando criações da Rosa Chá. Em todas, prevalece a cara azeda. Sorrisos, só de deboche. Evidente deboche, como dissesse: "Clica logo, moleque, a vovó aqui tem mais o que fazer."
Não vou dizer que você ficou triste com o tempo, que sua vida é amarga, que as fotos revelam a tormenta que agita seu coração. Não vou dizer isso porque não sei se é verdade, não te conheço, e não me parece verdade. Hoje, você faz 60 anos de vida, tem 40 de carreira, teve três filhos, ganhou dinheiro e conquistou fama, já é avó e vive há mais de trinta anos com um marido-parceiro que, ao que dizem, é ótima pessoa. Tudo isso é motivo o bastante para ser feliz, mas quem sabe o que vai no coração de cada um, não é mesmo? Conheço um monte de gente que fez coisas parecidas e vive chorando pelos cantos, ganhando felicidade só em pílulas. Cada um sabe de si e eu, na boa, sei tão pouco de você.
Devo ter lido 95% do que saiu na mídia, a seu respeito, nos últimos 27 anos. Só que uma coisa é ler o que sai na imprensa, outra é conhecer o objeto da mídia. Pelas revistas e pelos jornais, li que você tentou o suicídio, que estava com leucemia, que Roberto tinha lhe dado umas porradas. Mentiras, li tantas mentiras... Talvez por isso fui me habituando a não acreditar em tudo, até que cheguei ao ponto de não acreditar em quase nada. Por isso, entendo sua prevenção e sua defesa, na forma de caretas e carrancas. Se fosse comigo, acho que eu também fugiria de repórter o quanto desse, e faria como você, só dando entrevistas por e-mail, para ter a prova do que falei de fato.
No fundo, é tudo um grande toma-lá-dá-cá. Eles caluniam, você revida. Faça isso por quarenta anos e você criará calos, lógico. Quem te vê, ao vivo, reporta uma figura habitualmente tímida, com pressa de sair da linha de tiro dos holofotes. Parece que até os fãs incomodam um pouco e nessa eu também entendo, porque tem cada figura alterada que não é brincadeira. Nos últimos tempos, comecei a pensar que você prefere mesmo o amor bandido de quem mais ataca que elogia. Afinal, você deu sinal verde para o Henrique escrever esta biografia alucinada, narrada por uma personagem fictícia que odeia você. E também parece que gostou muito da peça estrelada pela Preta Gil, na qual ela faz um travesti que te seqüestra.
Eu poderia fazer um post homenagem dizendo que você pontuou minha adolescência inteira, que me ensinou fundamentos de feminismo, não com a teoria de Simone de Beauvoir, mas com a prática de empunhar uma guitarra, compor as próprias músicas, sem se importar se aquele era um ambiente predominantemente masculino. Eu, que por acaso acabei transitando em um ambiente também tão predominantemente masculino... Poderia dizer que, por sua causa, comecei a entender que um pouco de hedonismo não tinha mal nenhum nesta vida, o que em muitos aspectos contrastava com a moral católica do colégio em que estudei a vida inteira. Além de me fazer perceber, bem antes de praticar, que mulher também gosta de sexo, que não nascemos para ser objeto, mas sujeito, que a vidinha do disse-me-disse da dondoca dependente era um atraso total. E que o ser humano ainda tinha muito o que aprender neste planeta de caos, que a prova de sua involução eram os maus tratos que ele impunha à natureza, e que tudo isso era de uma burrice atroz, porque uma hora tanta crueldade irá se voltar contra nós mesmos.
Mas fico achando que, se eu disser isso, vou parecer tão piegas, tão sem graça que você, no fundo, vai odiar. Acho que hoje você só gosta de apanhar. Parece que, ao ser confrontada pelo ódio de personagens como a Bárbara Farniente, do livro do Henrique, ou o travesti, da Preta Gil, fica mais evidente tudo o que você fez naquilo que chama de "vidinha vulgar". Sua farsante, você sabe que de vulgar sua vida não teve nada. Pode parecer agora, cercada de bichos, de mato, de neta. Mas, na real, você sabe que mudou muitas cabeças neste país tropical, que entrou para a história, que deixou sua marca para sempre.
Eles atacam, você revida, difícil saber quem começou. No fundo, é tudo um grande toma-lá-dá-cá. Eu poderia me sentir agredida com sua cara feia na capa da Rolling Stone, achar que você só debocha da minha sincera admiração. E hoje, honestamente, já não me importa se seu próximo disco vai ser bom ou meia-boca. Você ja fez muito, como artista, já me sinto agraciada por ter fruído sua arte nesses anos todos. Já não me faz diferença se o próximo disco será inspirado como "Fruto Proibido" ou sofrível como "Bombom". Eu gosto de você, admiro você e não vou entrar no toma-lá-dá-cá que permeia todo o resto. Alguém, afinal, tem que quebrar a corrente. Pode fazer cara feia ou de deboche, nem ligo.
Parabéns, Rita Lee Jones de Carvalho!
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Logo mais, saio para a Paulista, para minha segunda São Silvestre. Prometo contar tudinho depois. Bom ano novo a todos e obrigada pela companhia neste 2007!