Quando nasce o primeiro filho, você acorda várias vezes à noite para ver se ele está respirando.
Quando nasce o segundo, você acorda se ele chora.
Quando nasce o terceiro, você nem acorda mais.
Tive apenas um filho, mas já corri três São Silvestres, e acho que esse sentido de normalidade, de rotina, acaba se acomodando nesse tipo de situação também.
Não fica mais fácil, nem menos divertido, nem menos marcante ou emocionante. Mas não há o frisson do novo, a sensação de se fazer algo inédito. Mas, que diabos, é a São Silvestre, éramos mais de vinte mil ali, tudo bem, mas não é todo mundo que corre quinze quilômetros em um percurso difícil como aquele. Vale o registro detalhado?
Digam vocês.

Como na primeira vez, em 2006, fui para a região da Paulista escutando o CD "Technicolor", dos Mutantes. Naquela ocasião, ele era novinho, um dos presentes de Natal daquele ano, e eu estava ouvindo muito Mutantes na época. Adotei-o como tradição da prova e mandei ver este ano também. Escutei a faixa título, depois "Virginia", depois "She´s my shoo-shoo", versão para o inglês de "A minha menina", do então Jorge Ben. Tirei o CD para colocar uma coletânea do U2, com a intenção de ouvir "Beautiful Day", um hit atual dos meus caminhos por São Paulo, mas reconheci a voz do Ricardo Capriotti no rádio. Acabei desistindo do CD.
Capriotti, apresentador da Bandeirantes, é um entusiasta das corridas e lançou, neste ano, um programa chamado "Fôlego", dedicado à modalidade. Fez mais: facilitou um programa de treinamento para um grupo de ouvintes, que partiram do zero e, em cem dias, alcançaram condicionamento para correr a São Silvestre. Tenho acompanhado as notícias do grupo nesses últimos meses e acabei estacionando o dial na Band, até chegar ao estacionamento.
Lá, outro ritual. Deixei o carro na garagem do meu escritório e subi a pé para a Paulista. Seguindo pelas ruas, "fantasiada" de corredora, ouvi os habituais cumprimentos e desejos de boa sorte de alguns transeuntes. Corro o ano inteiro e eventualmente ando pelas ruas antes de chegar à largada, mas só escuto esse tipo de manifestação na São Silvestre, o que explica o apreço de quem corre essa prova por esses pequenos detalhes.
Chegando à Brigadeiro Luís Antônio, surpresa! Não era possível cruzar a avenida em direção à rua São Carlos do Pinhal, onde os integrantes da Equipe Conexão haviam marcado seu ponto de encontro. Perguntei ao guarda como eu deveria fazer para cruzar e ele reagiu como se eu tivesse feito a pergunta em linguagem de sinais no idioma sânscrito. "Ah, isso eu não sei!". Continuei andando pela Brigadeiro, ao lado de corredores tão desnorteados quanto eu e pedestres revoltados pela interdição. Na esquina com a Paulista, encontrei meu amigo Henry, um dos membros da turma, e seguimos pela grande avenida em busca de uma passagem.
Perto da Alameda Campinas, vimos uma ambulância se preparando para passar para o outro lado. Henry, que entre nós é chamado de "o bonzinho", para diferenciá-lo do outro Henry da turma (pensem o que quiser...), sugeriu que aproveitássemos o vácuo da viatura para burlar a interdição. Eu estava embarcando na contravenção do colega quando notei que ali, bem ao lado, havia uma passagem para pedestres, livre e desimpedida. Ponderei que não gostava da idéia de frustrar nossa malandragem, mas que poderíamos guardar nossa cota de rebeldia para outra ocasião.
Alcançamos o ponto de encontro, em frente ao outrora sofisticado Hotel Maksoud Plaza, e já avistamos o Ammar. Pouco depois, chegaram o Fábio, a Pati e seu namorado Rafael. Ficamos alguns minutos conversando e alongando, quando ganhamos a companhia de um rapaz que chegou meio trôpego, meio lânguido, muito bêbado. Pediu-nos dinheiro, e argumentamos que, ali, ninguém tinha dinheiro, nem nada nos bolsos. O distinto se pôs a nos censurar. "Como assim? Não tem nem um documento no bolso? Quer dizer que se vocês forem para um hospital, serão internados como indigentes?" E desandou a falar um discurso naturalmente desconexo. Do outro lado da rua, avistei o amigo Nilton chegando e fiz sinal para que ele não atravessasse, que nos esperasse lá. Em princípio, Nilton não entendeu a súbita saudade que se abateu sobre todos, indo o grupo inteiro em sua direção. Informado sobre a desagradável companhia, o bom palmeirense compreendeu nossos motivos. "Se os bêbados soubessem como são chatos, não beberiam", sentenciou Ammar.
Depois, ainda chegaram a Alexandra e o Zoca, e fomos para a Paulista, pouco depois das 16h30. A largada seria às 16h50, mas a avenida já estava tomada pelos atletas. Nem cogitamos ir mais para a frente, ficando no quarteirão entre a Rua Pamplona e a Alameda Campinas. Nos vinte minutos que esperamos, a aglomeração aumentou ainda mais. "O que mata nessa hora é esse cheiro de humanidade", lembrou Zoca. Já escrevi neste blog: uma das piores coisas nas corridas é a profusão de cheiros. Além do dito cheiro de corpo, misturam-se odores como desodorante e pomadas canforadas, um teste para o olfato.
17 minutos depois...O pelotão de elite largou pontualmente às 16h50. Nós, a turma do fundão, só conseguimos passar pelo tapete que registra os tempos dezessete minutos depois. Era muita gente, e de cara percebi que seria difícil imprimir um ritmo sequer razoável, porque além da enorme quantidade de atletas, havia muitos participantes que já estavam andando no final da Paulista, ali perto do meu estimado Conjunto Nacional! Sem estresse: desde o ano passado, eu não encaro a São Silvestre como um desafio ao tempo, como faço com as outras provas. Aquilo não é competição, não para nós, amadores, é celebração. E com esse espírito fui em busca do quilômetro 15.
A São Silvestre tem algumas características que a tornam mais difícil que muitas outras provas. Em primeiro lugar, seu percurso: o corredor desce praticamente tudo o que tem de descer na primeira metade, e sobe tudo na segunda, ou seja, quando já está mais cansado. Outro complicador: o horário. Em geral, corre-se pela manhã, enquanto a São Silvestre escolhe o horário vespertino, em pleno verão. Mais um fator a dificultar: a quantidade de gente correndo. Em alguns trechos, como na avenida da Consolação ou no Minhocão, e onda de corredores se espalha por todas as faixas das vias - ida e volta. Em outros, como no Centro, o funil se instala e não há como manter o ritmo.
Os tipos esquisitos e/ou engraçados são uma tradição. Corri com várias noivas de barba, uma mulher-fruta com uma cesta tipo Carmen Miranda na cabeça, alguns super-heróis, um samurai, um homem e uma mulher das cavernas. O mais popular, pelo jeito, era um sósia do presidente eleito dos EUA, Barack Obama, que correu de shorts, paletó e gravata. Passei por ele no Minhocão, ele acenava para a o público e só repetia - "Thank you, thank you!". Ainda em cima do elevado, um corredor ao meu lado perguntava aos moradores dos prédios, aflitíssimo, quem tinha ganho a prova. Algo que permanceu um mistério para mim até que cheguei ao carro e liguei para casa.
No elevado ao lado do Memorial da América Latina, uma daquelas cenas improváveis. Uma corredora chamou pelo nome de algum colega (marido, namorado, irmão, técnico, sei lá). "Vitor?". Alguém retrucou: "Flávio?". Ao que se seguiu uma ladainha de nomes, de gente chamando, gritando, caçoando da moça. O clímax se deu quando alguém gritou "Ronaldo!", senha para alguns exaltarem o Timão, ao que outros, naturalmente, vaiaram.
Cheguei ao quilômetro 10, dois terços da prova, na avenida Rio Branco, com 55 minutos no cronômetro. Meu melhor tempo para a distância, 48min16, tinha ficado lá na Barra Funda, mas continuei relax. Eu até me sentia bem, o joelho não doía nada, conseguiria aumentar o ritmo, mas com aquela parede de gente à frente, impossível. Eu já estava meio entediada de ficar desviando dos colegas e resolvi manter o ritmo tranquilo e me resguardar de novas cotoveladas.
Alcancei o Centro com o céu negro, o que me fez lembrar minha primeira São Silvestre. Parecia impossível terminar a prova sem que a tempestade desaguasse. No entando, foi só ameaça. O clima, por sinal, estava ótimo, o melhor que enfrentei até hoje nessa corrida. Na primeira, muita chuva. Na segunda, muito calor. Na terceira, nem uma coisa nem outra. Tinha até um ventinho agradável em algumas ruas.
Cãezinhos a caminhoAlcançar a Brigadeiro é como ligar um turbo para mim. Ali, faltam pouco mais de dois quilômetros para a chegada e sempre persiste a idéia de que quem chegou bem até ali vai bem até o final. Fui subindo a mítica ladeira como sempre faço, sem olhar para a frente. Quando cruzei a rua Treze de Maio, uma cena impagável. No meio do público, bem embaixo do viaduto, dois cachorrinhos se divertiam descaradamente, talvez excitados pelo excesso de movimentação à volta, doidos para entregar nova ninhada ao mundo, no ano novo.
Alcancei o topo com uma preocupação - queria tentar avistar minha prima e madrinha Dora, que prometeu ir me ver na Brigadeiro. Percebi como é difícil tentar divisar alguém na multidão. Ela deve ter ido, mas eu não a vi. Limpei a frustração dos olhos e me preparei para a apoteose, que é dobrar a esquina e retornar à Paulista.
Minha Paulista, minha avenida, minha casa. Naquela hora, tive um pensamento meio funesto. Lembrei do que sempre digo, sobre meus restos mortais - quero ser cremada e ter minhas cinzas jogadas na Paulista. Acrescentei um detalhe - quero que o façam durante uma São Silvestre. Pensei em outra coisa, ainda menos adequada para aquele momento de celebração: lembrei de uma música da Rita Lee, "Saúde", na qual ela diz que "se por acaso morrer do coração, é sinal que amei demais". Pensei que, se por acaso eu morrer do coração, em uma corrida, que ninguém pense em culpar os organizadores. Seria minha apoteose final.
Mas logo limpei a mente desses pensamentos também e aproveitei a visão dos prédios, o colorido das decorações natalinas, as luzes já se acendendo. Estou de volta, e espero fazer este regresso à casa muitas vezes, por muitos anos, com a orientação do meu técnico José Eduardo Pompeu, com a convivência com meus colegas de equipe, com a inspiração da minha família. Afinal, como diz a mesma música, "enquanto estou viva, cheia de graça, talvez ainda faça um monte de gente feliz".
Em tempo: registro minhas marcas na prova - 1h24min52; fiquei em 402º lugar na prova feminina (2.706 atletas no total), 55º na minha faixa etária (437 atletas no total).

Por fim, minha homenagem e orgulho por ter corrido a prova que marcou a aposentadoria do grande fundista brasileiro Vanderlei Cordeiro de Lima, cuja comemoração pelo terceiro lugar na Maratona da Olimpíada de Atenas, em 2004, foi uma das maiores lições que recebi do esporte. Eu, que estava revoltada por Vanderlei ter sido atrapalhado por um lunático durante o percurso, achei que ele deveria entrar no estádio fazendo algum tipo de protesto, cruzando a linha de costas, qualquer coisa assim. Vanderlei mostrou-se muito mais equilibrado e maduro do que eu. Em vez de lamentar o ouro perdido, comemorou o bronze, com seu habitual aviãozinho no final da prova.