Friday, September 14, 2007

F1, Compliance e Benchmarking

Como água e óleo, petistas e tucanos, corintianos e palmeirenses, Montecchios e Capulettos, desde a decisão do Conselho Mundial da FIA, que mais ou menos puniu a McLaren, assim nos dividimos, os amantes de automobilismo. Os que consideraram o veredicto uma injustiça e os que o acharam normal.

Estou entre os primeiros, lembrando a frase que já escrevi aqui e no GPTotal: Alonso e Hamilton não disputam o campeonato a pé, mas a bordo de carros da McLaren, a equipe considerada culpada no caso de espionagem. No calor da discussão – saudável e bendita discussão, um dos sustentáculos da democracia – algumas idéias muito complexas e interessantes brotaram.

Duas delas, particularmente, me levaram à reflexão. A primeira, saída da boca do tricampeão Jackie Stewart, sir Jackie, que já mereceria minha admiração mesmo que não fosse o monumental piloto que foi, mas apenas por ser criador de frases geniais. Sir Jackie disse que o caso todo era problema interno da Fórmula 1, que deveria ser discutido entre quatro paredes, sob pena de levar toda a categoria de roldão.

Sir Jackie, com todo o respeito, shame on you! Que vergonha, Mr. Stewart...

Mas não vou julgá-lo, compreendo o ex-piloto como um homem de outros tempos, de uma Fórmula 1 de outros tempos. Longínquas eras nas quais quatro ou cinco chefes de equipe se reuniam e davam as cartas. O que acertassem entre eles, correto ou amoral, ficava entre eles, os demais acatavam porque sabiam que aquele centro de poder falava pelo bem dos negócios da categoria, e a nós, devotados amantes das corridas, sobravam as manobras, os pegas, as ultrapassagens.

Só o que Sir Jackie não parece levar em conta é que esse tempo acabou. A Fórmula 1 achou por bem crescer à estatura de um gigante corporativo. Como tal, ofereceu-se para seus pares da mesma envergadura – as grandes empresas globalizadas – como um parceiro de admirável potencial. E passou a receber recursos financeiros em volumes nunca antes vistos no esporte a motor, como se um dique de incontáveis hectolitros de água despejasse seu conteúdo por ali. Montadoras, sim, mas não só. Bancos, empresas de telefonia, seguradoras, empresas de bebidas. Todas com olhos enormes – ainda que algumas orientais – para o desmedido poder de divulgação da Fórmula 1.

A categoria não cansa de apregoar que se tornou “profissional” e quanto a isso não pairam dúvidas. Não dá, Sir Jackie, para ser profissional, globalizada, social e ambientalmente responsável e continuar decidindo ações e resolvendo problemas entre quatro paredes. Isso é um choque conceitual inconciliável com algo muito caro a esses gigantes corporativos que a Fórmula 1 atraiu, o conceito de Compliance.

Quem trabalha em certas empresas sabe do que se trata. Compliance é a obediência a leis e regras. Uma empresa que adota essa postura preza por vários conceitos: a transparência, o combate à corrupção em todas as suas formas, o repúdio a toda espécie de preconceito etc.

Empresa, hoje em dia, para estar na Bolsa de Nova York, por exemplo, é obrigada a manter um canal de denúncia anônima para acolher relatos de conduta inadequada. E não é entre quatro paredes que se resolve isso.

Nos últimos anos, não foram incomuns os casos de empresas enredadas em condutas impróprias que se viram obrigadas a corrigir publicamente tais erros, muitas vezes até cortando na carne da própria diretoria, demitindo presidentes, CEOs e todo o alto escalão.

É com essa realidade corporativa que a Fórmula foi se meter, Sir Jackie. Ganharam, vocês aí, muito dinheiro. Tudo tem preço. E o senhor pode ter certeza de que a alta direção da Mercedes Benz está fula da vida com esse arranhão monstruoso no nome da empresa.

A segunda idéia que me chamou a atenção foi a do hábito consolidado de se trocarem informações na Fórmula 1. Essa muita gente comentou. Concordo que é natural trocar idéias, eventualmente soprar um segredinho ao colega ou mesmo inocentemente comentar uma solução que se torna o pulo do gato para algum problema. Mas não acho nada normal que um sujeito, descontente na empresa, mordido pelo despeito de ter sido preterido a outro, despache mais de 700 páginas de informação para um amigo de uma empresa rival.

Foi o que Nigel Stepney fez. Isso não é uma troca de informações. No mundo corporativo, institucionalizou-se a prática do chamado “benchmarking”. Uma empresa visita a outra, oficialmente, e busca informações sobre alguma prática bem sucedida. Claro que isso não impede a troca informal de dados, nem de eventuais práticas ilícitas de fornecimento de segredos. Mas, baseadas no conceito de cumprimento a leis e regras, o tal Compliance, essas empresas: primeiro, exigem de seus funcionários o conhecimento e a assinatura em um documento em que se comprometem a andar na linha e, segundo, combatem atitudes inadequadas exemplarmente.

O que Stepney fez na Ferrari, e por isso foi demitido, nessas empresas globais é combatido no nascedouro, em um esforço de “atrair, contratar e reter os melhores profissionais”. No mundo empresarial de hoje, ser bom profissional já não é só ter as melhores credenciais técnicas. A conduta é igualmente valorizada. Por isso, para empresas atreladas a esse tipo de preceito, o episódio todo foi um descalabro: a McLaren deu o péssimo exemplo de ter um funcionário que recebeu informações sigilosas, mas a Ferrari não sai totalmente como vítima nessa história, ao manter em um cargo de alta responsabilidade um homem capaz literalmente de vendê-la.

Depois, volto para falar sobre outra questão polêmica, sobre a punição aos pilotos da McLaren.

11 comments:

Unknown said...

Como diria Freddie Mercury, "The Show Must Go On". Um olhou pra cara do outro em Paris e disseram: "The Show Must Go On". Arranjaram uma maneira de punir a McLaren sem acabar com a disputa do Mundial de Pilotos, que é a principal disputa no campeonato.

Anonymous said...

A F1 perdeu o resto de sua credibilidade, inclusive como empresa. Competição esportiva, então, nem pensar.
Você compraria qualquer bem de uma empresa que age assim? Por isso não compro mais Ferrari e, muito menos, Mercedes-Benz. Só por causa disso... rsrsrs...

Anonymous said...

Concordo totalmente Alessandra.
Parece que a maioria esta pensando assim ,o estrago foi grande.
Mas uma coisa me incomoda,a reação da Ferrari,daqui uns anos o Massa e o Kimi serão lembrados como coitadinhos ,vitimas dessa hitoria toda,para mim os carros vermelhos deviam se retirar do resto da temporada ,que falta faz Enzo Ferrari.

Jonny'O

Anonymous said...

Está aí uma coisa que Jonny'O lembrou e me deixou curioso: como Enzo Ferrari reagiria a essa situação atual da F1? Seria ele devorado por este monstro que a F1 se tornou? Ou seria uma espécie de Caetano Veloso, que um dia foi um sujeito que agia contra o "status quo" e hoje não passa de um direitista reacionário... Será?
Só espero que os fãs do Caetano fiquem muito bravos. Rsrsrs...

Eloisa said...

estou à espera do post sobre os pilotos para ver o que tu achas, claro que jogar tudo para o ar não seria algo que me agradaria mas até que ponto eles usaram os dados... o massa está indignado porque ele teria chance outra vez mas até que ponto o piloto não foi fundamental? concordo contigo que eles a pé não foram mas como determinar quem e como uso as 780 paginas?

Alessandra Alves said...

diego: sim, a lógica parece ter sido essa mesma. mas, sinceramente, cai-me indigesta. sensação de impunidade, essas coisas todas, sabe? ok, é só esporte. mas o esporte não é também uma manifestação do ser humano? podemos condenar iniqüidades na vida pública/política e achar "normal" que se premie a desonestidade? eu acho que não.

herik: pois é, amigo, a preocupação das empresas é essa - imagens arranhadas aniquilam marcas. as marcas estão na fórmula 1 para (lá vem uma daquelas expressões corporativas...) "agregar valor" a seu nome. eu não estou pensando ainda em comprar uma ferrari ou uma mercedes classe E mas juro que cada vez mais me inclino por um porsche. hehehe

jonny´o: por isso que eu digo que esse campeonato melou. a ferrari parece realmente satisfeita mas, sabe como é... sou sempre muito otimista, e desde hoje cedo passei a me apegar à esperança da única vitória digna para este mundial, que seria a vitória de raikkonen (imagino que, a esta altura, a ferrari vá trabalhar por ele). se kimi vencer os espião chantagista ou o menino prodígio na pista, justiça será feita. mas está difícil, porque as mclaren simplesmente não quebram.

sobre o comendatore, realmente não consigo vislumbrar sua posição neste momento. ele era muito pragmático, apesar da relação afetuosa que desenvolveu com alguns de seus pilotos. a lógica de trabalhar por um piloto, fazendo a equipe girar em torno deste, era um de seus preceitos. ele jogava o jogo com o regulamento debaixo do braço. será que faria diferente hoje, com a torneira de dólares em plena vazão? sei não...

herik: respondido acima.

elô: assim que der, vou postar sobre os pilotos. desculpe pela correria.

Anonymous said...

Alessandra, o que vale nisso tudo é a ressalva que existe no documento integral expedido pela FIA. Os pilotos não foram punidos única e tão somente por terem atendido ao pedido da FIA de colaborarem integralmente com o caso... Caso a FIA tivesse tido acesso aos e-mails SEM o auxílio deles a história seria outra...

É o mesmo que pensar que o cara que cometeu o crime menor (tipo dirigir o carro da fuga), se denunciar a quadrilha, terá a pena reduzida e poderá cumprir a pena em liberdade...

Trata-se da tão falada "delação premiada"...

Anonymous said...

Cara Alessandra, concordo que não esta em jogo somente um titulo ou campeonato, mas todo o esforço que o mundo vem fazendo para acabar com ditaduras, tiranias, corrupções, mamatas, etc, etc,...
Isso ainda vai dar muito o que falar, pois se a F1 é tão grande devido a sua visibilidade, maior ainda é sua responsabilidade para com tudo isso, alem do esporte, que parece estar ficando cada dia mais afastado.
Mas mesmo assim, continuo achando que "sentar a bota" é o que existe de melhor em competições.
Anselmo / SBC

Celinho Boy said...

Alessandra, este episódio da McLaren me lembrou 2 fatos: a anulação dos 11 jogos de 2005 e a absolvição do Renan. O primeiro é que com as perdas de pontos da equipe e não dos pilotos via passar a sensação de que a vitória da McLaren ficará marcada pelo "sob júdice", que só não ocorrerá se algum da Ferrari vir a ser campeão mundial. Ser campeão?
Sobre a segunda, fica a impressão que o vale tudo do poder econômico, os conchavos se sobrepõe ao fair play, dando margem pra outros casos similares. Afinal, quem perde pontos é a equipe, como se o carro fosse dirigido por fantasmas. Me fez lembrar aquele clássico desenho da disney em que os carros estavam sendo acusados pelos acidentes e um advogado provou que quem provoca são as pessoas. Definitivamente eles deveriam a assistir a desenhos mais antigos.
Abraços Alessandra, e antes que me esqueça, eu li sim teu artigo a concordo contigo.

Anonymous said...

Alessandra, só pra te dar um toque: meu blog está no ar! http://quasepoucodequasetudo.blogspot.com/. Aguardo a sua visita!

Misterioso said...

Olá, Alessandra.

Concordo que a Fórmula 1 não é mais a categoria que era nos tempos do Jackie Stewart e que hoje em dia, até pelo dinheiro que ela envolve e as empresas que ela compromete, não pode resolver tudo entre quatro ou cinco pessoas, como se não houvesse impacto nenhum.

Porém como o Sir Jackie foi dono de equipe até fins da década passada, acredito que a declaração dele é mais voltada à repercussão desnecessária na mídia. Tudo bem que exista o escândalo, mas toda a lavação de roupa suja e envolvimento de veiculos de imprensa apenas para botar mais lenha na fogueira pode sim atrapalhar a F1. Se isso virar moda, a F1 estará em maus lençóis, principalmente porque as montadoras não vão mais querer investir numa categoria que só mancha a imagem das empresas envolvidas.

Um abraço e parabéns pelo blog.