Thursday, August 30, 2007

O sabor da fé

“Vamos em paz e o senhor nos acompanhe”. Eu passava mais de uma hora esperando para ouvir esta frase.

Começava com o canto de abertura, a bênção inicial, depois vinham umas orações, mais cânticos, três leituras da Bíblia, a homilia, mais conhecida como sermão, e um monte de coisas que, na minha análise infantil, só serviam para me separar do meu real objetivo: doces! Ao ouvir o “vamos em paz”, era como se o padre tivesse dado a senha – corra, minha filha, antes que o balcão fiquei cheio de crianças maiores que você.

Esta era minha profissão de fé, com meus seis, sete anos. Ia à missa dominical com minha tia e meus primos. À missa uma ova. Ia comprar doces no boteco ao lado da igreja. O padre falava, eu salivava, pensando naqueles pirulitos dulcíssimos, produzidos com a mesma proporção de açúcar e corantes, acomodados em potes transparentes que ressaltavam ainda mais o visual arco-íris das guloseimas. Havia também um tradicional pirulito todo vermelho, em formato de chupeta, um néctar divino.



Era bem engraçada a cena. Ao final da missa, a turba infantil saía desmandada em direção ao barzinho. Naquele tempo, eu era a mais nova dos netos mais velhos, o que durante anos me deu a condição de “café-com-leite”. Eu odiava aquele status fantasma: o café-com-leite é como um deputado, com sua imunidade parlamentar. No pega-pega, não pode ser pego. No esconde-esconde, não vale ser achado. Nas brincadeiras, ser café-com-leite fazia mal apenas ao meu ego, mas na corrida pelas guloseimas, ao fim da missa, o tamanho diminuto representava uma ameaça física. Não cheguei a ser pisoteada, mas cotoveladas e empurrões foram aos montes. Fora que eu sempre ficava à meia altura do balcão, pulando para ser vista pelo tio do boteco.

Alguns anos depois, chegou o tempo de fazer catequese. Um certo estresse se instalou, pois algumas igrejas exigiam dois anos de preparação, mais um envolvimento considerável dos pais ao longo do curso. As famílias eram grandes entusiastas de que fizéssemos a primeira eucaristia, mas se pudesse ser em um esquema supletivo, tanto melhor. Assim, eu e um grupo de colegas da escola fomos parar em uma igreja que fazia toda a preparação em menos de um ano.

As aulas aconteciam sempre às quintas-feiras, pela manhã. Éramos cinco ou seis meninas, todas da mesma classe, no colégio. Alguma das mães teve uma idéia brilhante: em vez de levar e buscar as filhas na igreja, as mães apenas levavam e uma delas se encarregava de apanhar todas. Levava-as para casa, servia o almoço e despachava todas juntas para a escola, no período da tarde. Cada semana, uma delas ficava responsável pelo farnel. Era uma farra maravilhosa. Passei a esperar as quintas-feiras pela reunião ampliada com as amigas e também pelo cardápio. Nunca soube se a combinação macarrão-bife à milanesa-salada de batata era parte obrigatória do pacote, ou mera coincidência. Só sei que acordava quase sentindo o cheiro do molho de tomate. Não sei por que razão, sempre me lembro dessas quintas macarrônicas quando o tempo está como hoje, aqui em São Paulo, cinzento e um pouco frio.

A cerimônia da primeira comunhão aconteceu em dezembro daquele ano, 1980, em um domingo quente à beça. Estávamos todas de branco, como recomendaram o padre e dona Neusa, a professora da catequese. Minha mãe mandou fazer um conjunto de laise para mim. A família inteira compareceu à igreja. Na hora da eucaristia, coloquei a hóstia na boca, meus olhos se encheram de lágrimas. Católicos, por favor, não tomem por heresia. Não foi emoção, mas uma mistura de ânsia com engasgo.

Eu nunca tinha colocado uma hóstia na boca e, inadvertidamente, deixei que ela grudasse no céu da minha. Comecei a empurrar a massa insípida com a língua, tentando desesperada que ela soltasse de onde estava. Daí, a infeliz (olha o pecado!) escorregou direto pela minha garganta e quase me obstruiu a traquéia. Consegui engolir o pequeno, mas perigoso, disco de biscoito sem sal nem açúcar e só quando ele passou inteiro pelo tubo esofágico lembrei de rezar. Fiquei algum tempo com remorso. Depois, entendi que não era pecado, era só o efeito sempre inesperado do desconhecido.

16 comments:

Anonymous said...

Alessandra, cada coisa que você nos faz lembrar. Eu tb tinha estes 6, 7 anos, mas só que eram os anos 1950, afff...
Hoje tenho outra concepção, lógicamente, mas naquela época eu não tinha como pecado ir na missa dominical matutina para ficar flertando e paquerando, como todo mundo, talvez pela inocência com que tudo era feito. Mas em toda minha vida, acabei confessando uma só vez, para receber a tal primeira comunhão, e achei muito estranho dizer àquela pessoa envolta na penumbra, que havia desobedecido meus pais, ter fingido fazer uma lição de casa e ir pouco à igreja.
Assim sendo, acabei recebendo a hóstia tb uma só vez....e grudou no céu da boca, claro. O gosto era o mesmo de um canudinho que era vendido na porta do Grupo Escolar, em que pagávamos e rodávamos uma roleta, para ver quantas unidades levaríamos. Eu nunca entendia porque quase sempre caía no um.
Mas algo me diz que as coisas são bem diferentes, mas a ingenuidade persiste, embora um tanto mais perspicaz.

Andréa said...

Hahahah, que lindo relato. Eu tambem tive que passar por essas bobagens, ate que cresci e decidi nao mais ser catolica. Alias, essa acabou virando uma das religioes mais abominadas por mim depois que comecei a me interessar por religioes e filosofias e estudar algumas mais a fundo, como as favoritas Taoismo, Budismo e Hinduismo, por exemplo. Lembro que mal me concentrei na ostia ou em qualquer outra parte da primeira comunhao por que do meu lado, na fila dos meninos, tinha um lindissimo por quem me apaixonei perdidamente a primeira vista naquele dia, e nunca mais vi de novo, hehe.

Anonymous said...

Lembro-me que o maior estimulo para ir à igreja era pegar os santinhos para jogar bafo, como se fossem figurinhas. La na Rua Maranhão, SP. Passei longe da comunhão. E vivo bem, obrigado.

Andrè

Anonymous said...

Lindo relato.

Na minha primeira comunhão eu carreguei a bandeja com os jarros de água e vinho, só que no ensaio era de um tipo e na hora da missa as jarras tinham o dobro do tamanho! Passei pela capela sem olhar pra ninguém, só preocupado eu não deixar a bandeja cair.

Na minha confissão tive que inventar uns pecados, porque eu era uma criança muito boazinha e não queria admitir isso, hehehe. E a hóstia sempre ficava pregada no céu da boca...

Anonymous said...

Que pecado,Alessandra!
Se minha avó Armida ler seu texto ela vai ter um treco!
Mas até hoje ela não sabe que repeti a primeira comunhão.
Só sei que era pecado também morder a hóstia,o castigo poderia ser tão grande que nunca foi revelado.

Jonny'O

Eloisa said...

Eu quase que nao termino a aula de catequese pois tive um momento Ron Brown aos 10 anos de idade e questionei o estado civil de Jesus para a freirinha que dava aula (uai eu fui criada em Higienopolis...quem conhece entende).

luizano said...

Rapaz,
Acho que comecei umas três vezes as aulas de catequese e nunca terminei nenhuma, mas sempre tive curiosidade pela hóstia, até que um dia na missa (eu já com uns 12 anos) fui na cara dura mesmo, e como não sabia o que tinha que fazer depois de receber a dita cuja, comecei a imitar o povo ao meu lado, eles faziam aquela cara de sério, eu também, se ajoelhavam, eu também, e por ai em diante, depois me disseram que era pecado o que eu fiz, passei foi tempo com medo do fogo do inferno por causa disso, depois desencanei, com tanta coisa pior num é possível que Deus vá grilar por dessa minha curiosidadezinha.rsrs

Abraço

Alessandra Alves said...

henrique: eu também só me confessei antes da primeira comunhão, nunca mais! na minha época, o padre já batia um papinho informal com cada um, sentado no banco da igreja mesmo, sem confessionário. o padre em questão se chamava antonio vieira, mas não era o orador, naturalmente.

andréa n.: eu estudei durante catorze anos em colégio de freira, fui batizada e fiz primeira comunhão, mas acho que nunca fui católica para valer. também só fui despertar para a religião muitos anos depois de tudo isso, e definitivamente não me identifiquei com o catolicismo.

andré dias: na rua maranhão de higienópolis? na igreja santa terezinha? se é essa, foi onde meus pais se casaram!

marcus: agora foi você que me fez lembrar de outra coisa. naquele mesmo ano, houve uma missa na escola pelo encerramento da quarta série. e a dita aqui foi escalada para levar esse troço aí de que você foi vítima, também. o nome técnico é galheteiro. jesus, como eu sofri com aquela tarefa, com medo de deixar cair, igual você. agora me diz: não é uma crueldade submeter uma criança a uma gincana dessas?

jonny´o: é, eu sempre soube que era pecado morder a hóstia e sempre me impressionei enormemente com isso, como se ao morder a bolacha insípida eu estivesse mesmo dando umas dentadas no próprio filho do homem. mas então não vale para o padre, né? já que ele mesmo come uma hóstia tamanho família que dá para engolir inteira. eu já vi padre mastigar a hóstia. e agora, dona armida???

eloisa: caramba! você me fez lembrar a whoopy goldberg em "mudança de hábito". em cena flashback, logo no início do filme, a personagem aparece ainda criança em um colégio católico. à pergunta da freira, sobre os nomes dos apóstolos, a safadinha sai com um "john, paul, george e ringo". hahahaha sensacional! e como uma coisa puxa a outra, lembrei de um primo que deu a seguinte resposta, em uma prova de religião, ao ser instado a citar os nomes de três apóstolos: tomé, josé e pelé!

e quanto ao seu questionamento, vê só? anos depois, alguém pegou essa dúvida, escreveu um livro chamado "o código da vinci" e ficou milionário...

luizano: se você ficasse com medo do inferno por algo extremamente saboroso, vá lá... mas que você foi cara dura, isso foi mesmo. admiro.

Felipe Atch said...

Bem olá Alessandra e demais amigos!
Minha primeira comunhão não foi diferente dos demais a hostia tambem grudou no céu da boca. Tive um formação de catequeze um tanto diferente, ao menos é o que parece. Fui formado em uma comunidade eclesia de base os encontro(nunca falamos "aulas") eram muito animados e descontraidos não lembrava em nada a escola. Não deixei a igreja muito pelo contrário. É claro que tive questionamentos e dúvidas, ainda tenho, mas amadureci bastante minha postura religiosa.

Aline-NC said...

Lembro-me do vestidinho branco. De pôr a folha de cânticos no chão para poder ajoelhar sem sujar a meia-calça. A primeira hóstia não grudou porque estava molhada em vinho - minha primeira experiência alcoólica, aos 8 anos. Fiz os 2 anos de catecismo. Também inventei pecados ao me confessar, porque era muito quietinha. E lá se foram muitas hóstias grudando no céu da boca (depois da primeira, é difícil ter mais alguma molhada no vinho), muitas genuflexões, até um dia que eu não tive mais vontade de ir. E como boa católica, volta e meia me sinto culpada por isso :)

valéria mello said...

Minha primeira comunhão foi aos onze anos, depois de dois anos de catecismo. Pra mim foi tudo normal, já que minha família sempre foi católica e muito participativa. Ainda cultivo essa religiosidade e aprendi a separar a parte filosófica e espiritual do catolicismo das intransigências e autoritarismos da instituição Igreja Católica, o que faz essa vivência ser bem bacana.

Alessandra Alves said...

felipe: a impressão que eu tenho é de que, hoje, algumas comunidades católicas estão tornando esses eventos mais interessantes, participativos e menos enfadonhos. que bom para você ter pego essa fase, né?

alinenc: é bem coisa de menina isso de não querer sujar a meia, né? e confissão aos dez, onze anos de idade, putz, só inventando pecado mesmo...

valéria mello: acho que muitos católicos têm feito essa separação hoje em dia e vivem em paz com sua fé. melhor assim, eu acho.

Anonymous said...

Nessa mesma, em Higienopolis. Não lembrava do nome da igreja. Também pudera, isto faz uns 30 anos.

Abraços
Andre

Andréa said...

Digo, "hóstia", hehe, esquecendo meu portuga...

Marcog "unoturbo" Oliveira said...

... só faltou mencionar o "senta, levanta, senta de novo" padrão, das missas católicas.

Curioso seu relato do "engasgo" com a hóstia. Assistindo o filme do meu casamento (que acabou de completar um aninho), vi que o #$%#$% do cinegrafista meteu um close na hora que eu tava comungando, desesperado tentando descolar a bendita do céu da boca.

Nem preciso dizer que não há UM amigo sequer, que quando vê minha expressão de alívio ao conseguir, não caia na gargalhada...

Mestre Joca said...

Respeito o credo, opções filosóficas ou o apreço ritualístico das pessoas ou religiões. Acredito que não são nem motivo de discussão, uma vez que são escolhas pessoais, portanto subjetivas. Mas, cá com meus botões, partilho do enunciado do velho e bom Mencken:
"A fé é a crença ilógica na ocorrência do improvável"
Simples assim.