Wednesday, May 02, 2007

Zeca

Vivo cercada de pessoas que gostam de carros, amam carros, sonham com carros, sofrem por seus carros, regozijam-se com seus carros. Confesso que não entendo muito isso. Perdoem-me, meu amigos carromaníacos, mas carro, para mim, é apenas um meio de transporte confortável, que me basta se funcionar direito, tiver um toca CD e ar-condicionado. Sei que este segundo pré-requisito denota minha linhagem burguesa, mas não acho demais almejar um arzinho fresco no trânsito de São Paulo. Abro mão de todo o resto – direção hidráulica, ABS, air bag, vidro elétrico, trava elétrica, MP3.

Mas houve um carro, um único carro, que adquiriu em minha história a relevância de um ente querido. Talvez por ter sido o primeiro, por sinalizar um inequívoco rito de passagem, por ter me acompanhado durante quase toda a faculdade. Era vermelho sangue, placa PP 7014, um Gol GT 1986 de respeitabilíssimo motor 1.8, demais para minha virgem carteira de habilitação. Foi comprado usado pelo meu pai, em agosto de 1988.

Antes disso, cumpri o primeiro semestre na Cidade Universitária a bordo de dois bumbas inesquecíveis – Mandaqui e Vila Nilo. Ambos saíam de dentro do campus e atravessavam a cidade rumo à Zona Norte. Li muito Adorno, Horckheimer e McLuhan no indócil chacoalhar dos coletivos. Em uma hora e meia, duas horas de viagem, devorava páginas de textos xerocados no centro acadêmico, chegava em casa com o estômago nas costas e o dever cumprido. Mas nem sempre era a leitura que me ocupava o tempo. Havia Silvio César, colega de classe e eventual companheiro de busão, a melhor coisa que a faculdade me deu, muito melhor que o diploma, laço de amizade atado e apertado para sempre nas viagens vespertinas do Vila Nilo.

Antes que o carro chegasse, gastei boa parte daquele primeiro semestre aprendendo a dirigir. Meus pais nunca me deixaram chegar perto do volante antes dos 18 anos e, para ser sincera, nem pedi. Por isso, cheguei crua de tudo à auto-escola. Aliás, acho que posso me candidatar a um registro no Guiness, porque ninguém no mundo deve ter feito tantas aulas de auto-escola quanto eu. Foram mais de trinta, uns dois meses e meio de preparação, acho que nem noiva virgem de antigamente se preparava tanto.

Eu já dirigia para cima e para baixo com o Seu Rubens, o instrutor da auto-escola. Mas meus pais achavam melhor eu treinar mais e lá ia eu, fazer serviço de rua para o instrutor, que aproveitava o horário da minha aula para ir ao banco, levar documentos sei lá eu onde, e assim conheci recantos aprazíveis como o Jardim Japão, cuja avenida principal se chama Roland Garros, mas que ninguém pronuncia à francesa, como Rolã Garrô, mas como Rolandi Garros mesmo, com um “s” bem caprichado no final.

Depois da via-crucis, enfim marquei meu exame prático, e a examinadora custaria a crer que malhei tanto naquele fusquinha da auto-escola, porque deixei o carro morrer na ladeira e não dei seta numa das saídas. Mas a bandalheira era tanta naquela época que não só passei como meu exame médico continua válido até hoje!

Foram alguns meses entre receber a carteira de habilitação e começar a cruzar as ruas da cidade por conta própria. Meu pai comprou o carro em agosto e, assim que ele chegou, fiz algo inédito e que nunca mais se repetiu na minha vida – dei um nome ao carro. Acho que me encantei tanto com ele que o batizei com a alcunha do personagem masculino mais bonito que já tinha visto até então, meu eterno símbolo Kadu Moliterno, Zé Eleutério, ou simplesmente Zeca, na novela “Paraíso”.


Meu Zeca era igualzinho a esse...

Jamais me referi ao Gol GT placa PP 7014 como “meu carro” ou coisa parecida. Era simplesmente Zeca. Talvez inspirado pelo personagem, tido na trama como “o filho do Diabo”, meu Zeca era bastante problemático. Devia ter sido carro de boy antes de chegar às minhas mãos, porque logo pifou geral e teve que passar por retífica no motor. Depois disso, aprontou algumas vezes. Tinha um defeito congênito de ferver a todo instante. O mecânico cansou de quebrar a cabeça e, vencido pela obstinação do Zeca, encontrou uma solução esdrúxula. Me mandou andar sempre com o radiador destampado. Deu certo. Ferver, nunca mais ferveu, mas ainda assim me deixou na mão.

Certa vez, eu estava parada em um semáforo da avenida Sumaré. Engatei a primeira e saí. Quando pisei na embreagem para colocar a segunda, meu pé esquerdo afundou bem mais do que deveria. Tec! O cabo da embreagem rompeu. Um taxista japonês se apiedou com meu estado desnorteado e me levou até uma loja de auto-peças na Vila Madalena para comprar um cabo novo. Ele mesmo trocou a coisa, eu jamais saberia fazê-lo.

Numa outra ocasião, Zeca parou em plena avenida Rebouças, ou melhor, já na entrada do túnel que leva ao Pacaembu. Mas dessa vez, pobre Zeca, a culpa foi toda minha. Eu estava atordoada com um monte de coisas acontecendo ao mesmo tempo. A USP estava em greve, meu querido amigo Zuza tinha tido um infarto, aproveitei a folga forçada para ir levar uma mensagem de solidariedade até sua casa. Chegando lá, gastei quase todo o meu dinheiro comprando um talão de Zona Azul para poder parar o Zeca na rua. Nem percebi que um certo ponteirinho do painel apontava para baixo de um “R”, de reserva, abaixo de uma tarja vermelha.

Zeca foi enquanto pôde, apesar da negligência de sua dona. Esgotado, parou na entrada do túnel, congestionando a avenida. Mais uma vez, meu estado de pânico funcionou. Uma picape Kombi, daquelas bem surradas, parou e seu motorista, ágil, laçou Zeca com uma corda. Me deixou no primeiro posto que apareceu, já bem distante dali, no começo da avenida Pacaembu. Meus trocados deram para dois litros de combustível, se tanto. O suficiente para voltar para casa e contar, constrangida, a aventura para minha mãe. E hoje, veja só, estampo a história para o mundo ler...

Zeca esteve ao meu lado durante cinco anos. Nunca tive um carro por tanto tempo. Mais correto dizer que ele me teve. Eu tinha tanto medo de que ele fosse roubado que vivia tendo o mesmo sonho. Nele, eu entrava em um estacionamento lotado, percorria os corredores em busca do Zeca e ficava desesperada, porque encontrava o PP 7013, o PP 7015, um monte de Gols vermelhos, mas nunca o Zeca, PP 7014. O pesadelo talvez prove que não sou tão desligada assim de carros, que um carro não é, definitivamente, igual a qualquer outro.

Em 1993, consegui efetivar um milagre. Troquei Zeca por um modelo zero, praticamente sem colocar dinheiro em cima, graças à mágica dos modelos populares que desaguavam no mercado. Sim, amigos, troquei um Gol GT 1.8 por um Mille 1.0. Nunca mais vi o Zeca, gostaria de saber se ele ainda existe, gostaria que ele tivesse ido parar na mão de um desses meus amigos louquinhos que colecionam carros antigos. Já tem mais de vinte anos, o Zeca. Teria potencial para virar um clássico?

20 comments:

Anonymous said...

Alessandra,
Para mim é admirável e, ao mesmo tempo, incompreensível esta relação mais racional das mulheres com os carros. Por isso mesmo não saberia explicar porque nós, homens, somos tão ligados aos carros. Teorias não faltam, como de que carros são formas de afirmação de masculidade e etc. Eu não saberia dizer.
De minha parte só digo que sou louco por meu Ka - podem falar que ele é feio, mas eu gosto - e cuido dele a pão-de-ló. Só anda limpíssimo, manutenção impecável, só estaciono em boas vagas e etc. Cachorro que fizer xixi em suas rodas é severamente punido. O porquê de gostar tanto desse carro... não sei.
Quanto ao seu ex Gol, com certeza ele já é um clássico. Isso se estiver "vivo".
Abração.

Anonymous said...

Essa história de 'homem gostar de carro' é uma generalzação meio besta e com origem, talvez, no machismo atávico que (ainda) nos corrompe. Tenho vários amigos que, a exemplo de mim, não estão nem aí com carro nenhum, ao mesmo tempo que conheço munlheres que morrem de amores por seus veículos. E a geração dos meus filhos também não está nem aí. Meu filho tem 24 anos e até hoje não tem carta de motorista; minha filha, de 20, já tem carta mas não tem a mínima ansiedade de comprar um carro e continua 'na boa', andando de busão ou de carona...

joanarizerio@gmail.com said...

alessandraaaaaaaaa!
te premiei com o thinking blogger award! voce deve indicar outros cinco blogs!
está lá no post, no la vie. um beijo!

Alessandra Alves said...

herik: também tive ka, dois aliás. e também adora meus kazinhos, um vermelho e outro azul-marinho. quanto ao meu zeca, depois que escrevi e fui procurar fotos de um modelo igual, vi que há várias referências dele como "clássico". fiquei mó orgulhosa! lembro, nos tempos de faculdade, de estar andando pela marginal pinheiros e de ver um gol gti passando por mim. lembra disso? que furor fez o gti naquela época, o primeiro carro com injeção eletrônica! hoje, todos têm... sobre carros e homens e mulheres, hum... tô mais na linha do marcio gaspar, quer ver ó:

marcio gaspar: eu também acho que não tem nada a ver associar homens com carro e mulheres, não. isso talvez fizesse mais sentido no passado, até por uma tradição machista, mas hoje também conheço um monte de homens que têm uma relação distante com carros e, por sua vez, mulheres que curtem à beça. eu uso muito meu carro, levo filho pra escola logo cedo, venho trabalhar, vou a clientes e compromissos do trabalho, mas sonho com um ritmo de vida que me permitisse andar mais a pé ou mesmo de bicicleta. sempre penso o seguinte: corro três vezes por semana, no mínimo oito quilômetros cada vez. isso é pouco mais do que a distância da minha casa ao escritório. não seria o máximo poder fazer isso correndo, em vez de andar de carro? putz, eu ia adorar, só que precisaria de mais tempo, de armar um esquema para chegar e tomar banho e, principalmente, de uma cidade mais amigável com pedestres e ciclistas.

joana: menina, você me deixou numa saia justa. vou pensar mais um pouquinho e deixar o zeca no alto da página mais um pouquinho, mas prometo que logo listo meus top 5, viu? smack pra você, querida!

Anonymous said...

Sim Alessandra, o Gol GT já está na galeria dos futuros clássicos, aliás, toda a linhagem esportiva volkswagen sempre terá um lugar exclusivo na memória dos aficionados. Caso eu encontre uma crônica que escrevi a respeito, eu te mando (publicado no blog na garagem)para que tenha uma idéia da aura que gravita em torno desses carros.

Explicação para o gosto dos homens pelos carros? sei lá, talvez algo que remonta a tempos bem primevos do nosso dna....a emoção da velocidade em perseguição a caça (ou a fuga diante de um predador...hehehe), o poder de manejar instrumentos que causem grande impacto ou devastação, enfim, uma variedade de coisas. Eu gosto de carros não para afirmar masculinidade ou qualquer coisa parecida, apenas gosto do dinamismo e design incorporado ao tema automóvel, as sensações que o mesmo pode proporcionar sendo corretamente manejado, uma série de coisas que só o coração poderia delatar....como nos apixonamos por alguém? não seria a mesma coisa?

abs

Anonymous said...

Também uso muito o meu carro, Alessandra, mas é por pura necessidade; não é por gosto não. Aíás, não gosto de dirigir - exige muita concentração e é pra mim uma atividade estressante, que preferiria não ter. Não gosto nem de dirigir na estrada - mais de 1 hora dentro de um carro, pra mim é um tédio insuportável! E morro de medo de viajar de ônibus!!!!

Celinho Boy said...

Alessandra, dorei tua linda história de amor de seu "Zeca". Só faltava ele agir que nem o Herby, né, he, he.he
Meu colega de serviço gosta muito de carros, só fala nisso. E achei bem interessante o conhecimento sobre modelos e suas vantagens. e se pergunta porque o trço que a gente quer mais comprar é carro. Vc teria uma explicação.
Beijos Alessandra

Ah, sobre o post do RC, fiquei sabendo que o Sebastião Braga, o cara que processou o rei, morreu aos 49 anos dde idade depois de ter recebido parece que em torno de 200 mil reais de indenização. Foi pesquisando no google e cabei na coluna do Geraldo Freire. Então parece que nossa pergunta foi quase que totalmente respondida, né.

Sobre este Daniel Pearl, ele também deixou uma msg similar num site chamado A Nova Corja, um bem humorado blog de política.
viste o jogo do Milan e do Machester? abraços

Celinho Boy said...

Ah, complementando, houve um acordo entre ambos que dava o direito da música a Sebastião, bem como o pagamento de 200 mil reais de indenização. Bem menor que os milhões que RC e Erasmo teria que pagar. Em resumo, houve um acordo entre ambos.
Beijos Alessandra

Anonymous said...

Putz o sonho do meu pai era coma´rar um carro o ultimo não me lembro deçe era um recem nascido, e acabou em um acidente em que ninguem ficou ferido mas meu pai passou anos sem ter coragem de dirigir! Nessa época dinhiro ele tinha quando teve coragem novamente não tinha mais condições de comprar. O Tempo passou e nos fim de 2005 ele, minhas irmãs e eu(menor contribuição) compramos um adivinhe só: um gol gt 1986, mas a cor é verde-azulado meio preto(divergimos quanto a isso) demos nome Ajuri (quer dizer feito em multirão). Agora estamos nos organizando para tirarmos carteira! Já nos deixou na mão algumas vezes mas foi engraçado uma vez em que um amigo nosso em um Fox zero e o valente Ajuri saimos para um fim de semana, tivemos que socorrer o danadinho!

Vida Longa ao GOL!!!

Felipe Atch. ES

Anonymous said...

Alessandra ,tive um Premio 89 com motor 1.6 da Sevel e cansei de dar pau nestes sofriveis 1.8 por aí.
Ma va bene,il tuo Zeca è più bello!

Jonny'O

Anonymous said...

Tem potencial não, já é um clássico, pelo menos entre os que gostam de Volkswagen.

Corre uma história, que não sei se é lenda, que um ex-executivo da Volks tem um desses 0km, e ele vender, dizem que por R$ 30.000 aproximadamente.

Fabricio Schneider

Alessandra Alves said...

gustavo m.: achei bonita a descrição do seu amor por carros. tenho certeza de que tem algo de muito irracional dessas relações, algo difícil de se explicar.

marcio gaspar: ah, eu não chego a tanto. gosto de encarar uma estradinha boa, com boa música no toca CD. na verdade, muitas vezes a viagem me causa mais prazer do que a estadia, acredita?!

celinho boy: obrigada pelas informações sobre o sebastião braga. quanto a milan x manchester, que pena, não pude ver, estava trabalhando, mas fiquei seguindo pela internet. lamentei, porque eu sonhei há alguns dias que o santos faria a final do mundial de tóqui contra o manchester, veja você!

felipe: caramba, que coincidência! achei muito bacana o esforço coletivo da família para comprar o carro. mas me conta uma coisa: o de vocês também ferve?

jonny´o: um prêmio?! você teve um prêmio, aquele sedã de brinquedo e tem coragem de assumir isso em público? (hehehe - brincadeirinha) amigo, meu gol era 1.8 só porque foi a oportunidade de negócio que meu pai encontrou na época. apesar de gostar muito de automobilismo, eu mesma não corro, só sinto falta de um pouco mais de potência na hora de subir ladeiras. o seu prêmio (hahaha - um prêmio!!!) daria pau fácil fácil no meu zeca.

fabricio: caramba! se eu soubesse, tinha preservado o meu. mas é meio xarope o cara que tem um carro de 20 anos zero quilômetro, né? sei lá, isso para mim é insano. carro foi feito para andar, não para ser exposto. não cumpre seu destino, entende?

Zeca said...

Oi Alessandra! Não gosto de carros, mas adorei o seu, principalmente o nome... que bom gosto pra nomes, hein? ;-)

Alessandra Alves said...

zeca: putz, alemão, sabia que você ia gostar desse post! ;)

Celinho Boy said...

Que nada Alessandra. Quem vai decidir o Mundial será Grêmio e Milan. Mas primeiro vamos fazer um serviço no Sao Paulo. Aquele 1 a 0 tá preso na garganta.

Celinho Boy said...

Ainda sobre o RC, li uma entrevista dele a ZH e a tristeza dele com o fato do livro ter sido censurado. Eu também me pergunto o que RC fará com os outros livros recolhidos. Queimar? Será que RC chegaria a este ponto? Em POA, o jornal ainda encontrava os livros a venda numa livraria e no mercado livre parece que estavma vendendo a 100 reais.
Tbm vi por cima no rodapé do Leão lobo na Band que RC estaria disposto a fazer uma biografia reciclada, pode? Não sei se levo a sério este tipo de informação deste cidadão. Mas depois dessa, tudo pode acontecer.
Beijos Alessandra

Anonymous said...

Na verdade ele tem problema pra esquentar coisa de carro a alcool. Nada que alguns empurrões não o faça pegar!

Felipe Atch

Anonymous said...

Andei muito nesse carro... Eu "quase" tive um desses, lembra? Ganhei um quando fiz 16 anos (lá se vão 20 anos). Não tinha carteira, então minha mãe usou o carro. Era um GTS 1.8 com banco Recaro. O máximo na época. Mas a vida mudou e aos 18, eu não tinha mais o carro (foi uma das primeiras coisas que os rescaldos do Plano Bresser tomaram do meu pai).
Só uma coisa: adoro colocar nomes nos meus carros. Meu Corsinha basicão era o "Trovão Azul e minha perua novinha, lindona, se chama Catarina.
Um beijão.

Anonymous said...

Também acho q carro é só um meio de transporte confortável, e que existe pra nos servir e não o contrário. Entretanto, meus carros sempre tiveram nome.
O Fusca era o Pascoal ou Pascoalino, pois ganhei na semana santa e não poderia batizar de Santino por causa da minha tia.
O Gol era o BIL ou Billy, pois sua placa tinha essas letras.
O Celta é o Pedrinho. Foi comprado em junho, próximo ao dia de São Pedro.

Sapp said...

Ah, complementando, houve um acordo entre ambos que dava o direito da música a Sebastião, bem como o pagamento de 200 mil reais de indenização. Bem menor que os milhões que RC e Erasmo teria que pagar. Em resumo, houve um acordo entre ambos. Beijos Alessandra