1980, grande 1980!
O Brasil já tinha cantado tudo o que dava sobre “a volta do irmão do Henfil”, e os ares da abertura finalmente pareciam preencher os espaços. Tudo bem que ainda demoraria quase uma década até que o povo enfiasse na urna uma cédula com nome de candidato para presidente mas, em 1980, parecia que tudo seria melhor.
Foi então que a Rede Globo resolveu reeditar o formato dos festivais e lançou o “MPB 80”, naqueles moldes dos programas da década de 1960, com eliminatórias e uma grande final. Lembro do ar de desprezo dos meus pais. “Não vai ser igual...”, era o que meus olhos liam naquele desinteresse todo. Mas, que diabos, eu não tinha visto festival nenhum e me atirei como uma militante naquele certame.
Minha torcida, como da massa, era por Amelinha, aquele frevo-mulher com cabelos de fogo cantando “Foi Deus que fez você”. Ganhou Oswaldo Montenegro, com “Agonia”, e até nisso tive que engolir a sapiência vivida de pappy & mammy. “Sempre foi assim, a preferida do público nunca vence”.
Mas o que me hipnotizou mesmo, naquele festival, foi um maluco surgido em uma das eliminatórias, cantando de paletó de fraque, asas de anjo e... cueca samba-canção. É engraçado que pouca gente se lembre disso, mas tenho nítida na memória a grafia de seu nome naquele evento: Duardo Dusek. A música era “Nostradamus”, um deboche sobre o fim do mundo com pérolas assim:
“(...) começou tudo a carcomer,
gritei, ninguém ouviu
e olha que eu ainda fiz psiu (...)”
“(...) vou até a cozinha,
encontro Carlota,
a cozinheira, morta,
diante do meu pé, Zé (...)”
Lembro da escritora Fanny Abramovich aplaudindo de pé a apresentação do sujeito e eu, que adorava as participações da Fanny no TV Mulher, apesar de ter só dez anos na época!, imediatamente transferi as palmas dela para minhas gavetinhas de juízo de valor. Amei Dusek daquele dia em diante, mas demorei a entender que Dusek não era só um anjo maluco de fraque e cueca, mas um senhor compositor, um gênio que pegava referências culturais riquíssimas com uma mão, um punhado de bom humor com a outra, jogava tudo em um caldeirão, misturava, e dali tirava praticamente o que quisesse.
É certo que minha percepção de Dusek como um fanfarrão debochado foi reforçada pela imagem que ele mesmo disseminou nos anos seguintes e na qual a grande imprensa embarcou, tratando de reforçar o estereótipo. Senão vejamos.
Depois de explodir no festival da Globo, Dusek logo gravou um disco, chamado “Olhar Brasileiro”, que o apresenta como uma espécie de Lamartine Babo modernizado. São desse primeiro disco músicas como o frevo “Folia no Matagal”, que ficou nacionalmente famosa na voz de Ney Matogrosso, com versos marotos como “o mar passa saborosamente a língua na areia(...)” e “Chocante”, a saga de uma dama abandonada deixando cair em um boteco (pelo jeito sórdido). Mas a própria faixa-título, “Olhar Brasileiro”, é nada menos que um clássico que se encaixaria à perfeição no repertório de Cauby, de Dalva de Oliveira ou de qualquer outro medalhão daqueles tempos.
Em 1982, Dusek gravou aquele que deve ter sido seu disco de maior sucesso, “Cantando no Banheiro”. Fui vê-lo no Palácio das Convenções do Anhembi. O palco era todo decorado com privadas, bidês e papel higiênico em profusão. São dessa época, além da faixa-título, o “Rock da Cachorra” (“Troque seu cachorro por uma criança pobre”), composição de Léo Jaime que deu pano pra manga junto a associações de defensores de animais, “Cabelos Negros”, “Quero te beber no gargalo”, uma impagável marchinha totalmente lamartiniana, e minha preferida, “Barrados no Baile”.
Com doze aninhos, ainda não entendendo bem por que a mãe de uma colega ficava tão escandalizada quando Rita Lee dizia que ficava “de quatro no ato”, eu também não pescava tudo o que Dusek dizia. Nesta barrados no baile, por exemplo, eu custei a pegar o que eram “aplicados pra não dormir” e achava que não fazia sentido a frase “saca aqui, qualquer privé é cilada, se não for peixinho não nada”.
Em 1984, Dusek lançou “Brega Chique”, disco cuja faixa-título ficou conhecida como “Doméstica”, a hilariante história de uma empregada presa por engano como traficante, depois transformada em baronesa não sem antes fazer breve estágio no calçadão. Ou seja, era impossível dissociar Dusek de deboche. Até aí, sem problema. O xis da questão é que Dusek sabia ser debochado com elegância, com graça e com uma base musical maravilhosa. Daí que a indústria do disco, tempos depois, e a mídia, e todo mundo, de repente até eu e você aí, começamos a nos contentar com deboche sem graça, com mau gosto. Sinal dos tempos, talvez. Ainda bem que sou de qualquer tempo e não me furto a mergulhar no passado para me deliciar com música bem feita (e bem humorada).
Quando fui buscar algo no You Tube para ilustrar este post, que coincidência. Outro dia, ainda no post “Todas as teclas”, o leitor e blogueiro Paulo de Tarso mencionou a primeira experiência de César Camargo Mariano com um piano. Pois encontrei esta participação de Dusek em um programa do maestro e arranjador, da extinta TV Manchete, cantando e tocando ao piano a deliciosamente romântica “Aventura”, do disco de 1986. Esta música tem um daqueles versos que eu queria para mim: “(...) vi seu olhar, seu olhar de festa, de farol de moto (...)”. Ai de mim que sou romântica... Só porque tenho olhos de desenho animado japonês e, quando estou animadinha, dizem, eles brilham bastante. Pretensão...
Dusek passou a década de 1990 bem apagado, como muitos artistas daquela geração, espremidos entre o sertanejo e o axé. Retomou a gravação de discos já neste século, dedicando-se a reviver a obra de Carmen Miranda, que tem mesmo tudo a ver com ele. Quando ressurgiu, passou a grafar o sobrenome com um “s” a mais e agora é Dussek. Segundo seu site oficial, apresenta-se em eventos empresariais regularmente, além de fazer shows esparsos. Sinceramente, acho pouco, pouquíssimo, para um artista como ele.
Senhoras e senhores, divirtam-se:
http://www.youtube.com/watch?v=y44hdB0OnEg
Tuesday, May 22, 2007
Subscribe to:
Post Comments (Atom)
15 comments:
A-ha...este eu vou comentar de prima. Este é daqueles posts pra gente largar de ser besta e prestar atenção no nosso quintal ao invés de ficar olhando a grama sintética dos gringos vizinhos. Falaremos horas de injustiçados, mas Dou Cheque é mesmo requintadíssimo, e humor deste naipe é mesmo raro. Alessandra deu uma "didatizada" legaus, e quem não conhece corre atrás porque na frente tá cheio de gente que não interessa. Hà pouco tempo Du-Du estava no Jô, e fez a festa cantando e contando de seu mais recente espetáculo. Viva o Du-século, se justiva houvesse.
Dusek (ou Dussek) é das melhores coisas que surgiram na história da MPB. Só o culto à mediocridade perpetrado pela indústria cultural pode explicar um cara desse ficar no limbo.
Mas... O que é o limbo? Dusek pode ter "acabado" para a indústria cultural, mas continua bem vivo fazendo seus shows. E quem leu o livro "Eu não sou cachorro, não" sabe: artista que tem público pode (sempre pôde) viver sem a "ajuda" da indústria cultural.
Felizmente, isto ficou ainda mais fácil nestes tempos de internet, blogs e youtubes.
Alessandra, e tem mais um detalhe: ele inscreveu em um outro festival a canção "Valdirene, a paranormal" e na hora de executá-la, mandou o Rock da Cachorra no ar! Claro que foi eliminado do MPB-Shell... hehehehe
henrique, o bart: navegando pela web, achei umas referências mais atuais ao dussek e ele parece estar bem enxuto para seus 48 aninhos. um detalhe, não sei se você sabe: o homem faz aniversário em 1º de janeiro, ou seja, um dia depois de ritz.
pandini: abaixo a indústria cultural! viva nós! (mas será que nós também não somos a indústria cultural?! hahaha lá venho eu incorporando o pas novamente...)
saco de gatos, o mattar: não sabia disso, não! conheço a música, mas não conhecia esse histórico. em tempo: boa sorte para o triculor hoje na capital!
As melhores do Dusek são em parceria com o Luis Carlos Góes (Folia no Matagal, p.ex.), com quem ele, alvíisaras!!, acaba de reatar...
Putz não conhecia esse cara! É estranho como artistas desse porte podem ser renegados a segundo plano (ou ao ostracicmo) dentro da grande mídia brasileira!
Olá, Alessandra! tudo bem?
Cheguei até aqui por recomendação do Bart, e gostei!
Dussek é genial e andou fazendo aqui no Rio, no início do ano, um show igualmente genial chamado "Dussek de quinta", onde mostrava estas pérolas, sempre às quintas-feiras.
Esta semana assisti a uma entrevista com ele, que prometeu voltar a se apresentar com esse show.
Tomara: muita gente - principalmente as novas gerações - não sabem do que ele é capaz, porque não é mostrado no Faustão, no Gugu ou no Raul Gil...
Beijos!
Notícia tirada do blog do meu amigo Antonio Carlos Miguel, jornalista e critico de musica (dos pouqissimos 'confiáveis' que restam...) do Globo/Rio - http://oglobo.globo.com/online/blogs/antonio/Default.asp
"Depois de duas décadas de afastamento, o cantor, compositor e pianista Eduardo Dussek e o letrista e dramaturgo Luiz Carlos Góes voltaram a trabalhar juntos.
A dupla prepara um disco com 12 músicas, e uma delas, o samba ''Meu pirão pirou'', por encomenda do diretor Jorge Fernando, entrará na trilha da próxima novela das sete na Rede Globo, ''Os sete pecados capitais''.No início dos anos 80, Dussek fez sucesso com muitas canções com letras de Góes, incluindo a marchinha ''Folia no matagal'', a balada ''Seu tipo'' (esta lançada por Ney Matogrosso e agora regravada pela cantora Leila Maria), o choro ''Olhar brasileiro'' e os rocks ''Barrados no baile'' e ''Brega-chique''."
marcio: que ótima notícia! depois do seu primeiro comentário, eu fiquei mesmo pensando se o ostracismo do dusek não poderia ter sido causado por esse afastamento, já que as letras do luiz carlos góis eram a base de todo aquele deboche, ou não? de repente, sem o parceiro, a criatividade pode ter entrado em crise, né? bem vindos de volta!
felipe: sua reação me deixou muito orgulhosa, confesso. afinal, foi por este despretensioso blog que você conheceu um artista que muitos de nós consideramos grande. ponto para nós!
fábio: seja bem vindo! vou torcer para o dusek baixar aqui em sampa também. vou correndo. é pena que esse tipo de evento acabe sendo meio escondido, de vez em quando, né? por e-mail, minha amiga cynthia informa que o dusek fez, recentemente, um show gratuito em um shopping aqui de são paulo. o que me deixou feliz: o lugar ficou lotadaço e o povo cantou e dançou o tempo inteiro.
viva dusek!
Alessandra,
O legal é que inicialmente ele utilizava o nome artístico de "DUARDO" e não Eduardo. Nessa época ele usava aquele cabelão e eu fui ao Teatro João Caetano e vi " A Dama das Camélias" com ele e a Camila Amado.
E mais, eu torci por Nostradamus.
Alessandra,
Como leio tudo quase como Leitura Dinâmica, só agora reparei que você escreveu o que eu me lembrei, sobre "Duardo" Dusek. Na época achei estranho pacas o nome.
Acho que tenho os três primeiros em vinil, Olhar Brasileiro é um verdadeiro tratado de MPB, em cada faixa explicava qual era o ritmo da música.
Gosto bastante de tudo...
Legal relembrar disso, preciso reouvir meus vinis, outro dia mesmo tava cantarolando "Iracema" (Iracema! Iracema!/Meu Deus! Que horror/Você se apaixonar logo pelo seu conquistador...) do Dusek em casa
Ah! O Duardo Dusek era porque queriam fazer um equivalente do David Bowie brazuca, na época em que tinha esse nome lembro-me que DD gravou uma música chamada "Ele não sabia de nada" que era um roquinho bem simpático (Que ele gravou pra alguma novela global e depois regravado em Brega Chique) e como o cara era louro e bonitão resolveram que seria uma espécie de David Bowie tupiniquim...
Alex Sotto
alex: putz, legal a origem do nome artístico que não pegou. ê mania de cópia que a gente tem, né? nem sempre cola... até porque o som do dusek não tem nada a ver com o do bowie, né? obrigada pela explicação.
Olá, Alessandra! tudo bem? Cheguei até aqui por recomendação do Bart, e gostei! Dussek é genial e andou fazendo aqui no Rio, no início do ano, um show igualmente genial chamado "Dussek de quinta", onde mostrava estas pérolas, sempre às quintas-feiras. Esta semana assisti a uma entrevista com ele, que prometeu voltar a se apresentar com esse show. Tomara: muita gente - principalmente as novas gerações - não sabem do que ele é capaz, porque não é mostrado no Faustão, no Gugu ou no Raul Gil... Beijos!
Post a Comment