Apesar de sermos de gerações diferentes, nenhum de nós viveu aquela fase e passamos a conjecturar o óbvio: o que seria de nós se vivos e adultos naquela época. Então comentei sobre a famosa "Passeata da Música Popular Brasileira", que entrou para a história como "a passeata contra as guitarras" e aconteceu em 1967.
A história foi mais ou menos assim: a música brasileira vivia um período de grande fertilidade e seu principal veículo de divulgação era a TV Record, a Rede Globo da época, que abrigava praticamente todas as tendências da música popular em sua grade de programação. Havia aquilo que depois se consolidou como a MPB, nas hostes do programa "O fino da bossa", apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues; havia a Velha Guarda do "Bossaudade", capitaneado por Eliseth Cardoso; estava lá a coqueluche da juventude, a "Jovem Guarda" do trio Roberto, Erasmo e Wanderléa. Em 1967, a Record realizou seu III Festival de Música Popular Brasileira, vencido por "Ponteio", de Edu Lobo e Capinam. Mas a grande novidade desse certame, sem dúvida, foi a inusitada mistura de música popular tradicional com toques de rock, numa salada de chiclete com banana personificada em duas apresentações, a de "Domingo no Parque", com Gilberto Gil acompanhado pelos Mutantes, segunda colocada, e a de "Alegria, Alegria", de Caetano, acompanhado pelo grupo argentino Beat Boys, classificada em quarto lugar.

O terceiro festival da Record teve alguns episódios históricos, como a célebre "violada no palco", quando o cantor Sérgio Ricardo quebrou seu violão e o atirou na platéia, que o vaiava inclemente durante a apresentação da música "Beto bom de bola". Outra marca do festival foi a de segmentar grupos na platéia. Não eram apenas espectadores, mas quase torcidas organizadas que iam ao teatro tanto para aplaudir seus ídolos quanto para vaiar seus desafetos. A rivalidade adquiriu contornos político-ideológicos. A turma identificada com a ala de Elis Regina, Chico Buarque, Edu Lobo, Geraldo Vandré, entre outros, considerava-se engajada, de esquerda, oposição ao regime e rechaçava tudo o que pudesse ser identificado como imperialismo ianque. O grupo tinha até uma líder, invocada e brigona, conhecida como Telé, a puxadora oficial da saraivada de vaias.
E o que poderia ser mais americanizado, alienado, colonizado que o rock rebelde ou as baladas vertidas do inglês da turma da Jovem Guarda? Roberto Carlos participou, sim, do festival, mas cantando uma comportada "Maria Carnaval e Cinzas", de Luiz Carlos Paraná, sem guitarras nem apelo rock´n´roll. Mas era nítido que as guitarras e, principalmente, a atitude associada ao rock estava chegando para ficar. Foi neste contexto que surgiu a tal passeata. Visto de hoje, o panorama de "rivalidade" entre as várias correntes parece até esdrúxulo, senão vejamos. Quem ia à "Jovem Guarda" era proscrito do "Fino da Bossa". No entanto, poucos anos depois de terminada a "guerra", Elis estava gravando Roberto & Erasmo e desafiando solos de guitarras, por exemplo, em "Cinema Olympia", de Caetano Veloso. Mais nonsense ainda era pensar que Gilberto Gil, aquele mesmo, acompanhado de guitarras no festival, marchou junto de Elis e de outras figuras de peso contra... as guitarras!
À luz de quatro décadas passadas, hoje a passeata contra as guitarras soa mais como um evento fomentado pela própria Record para atiçar as rivalidades e fazer subir a audiência do que um movimento realmente popular. No entanto, eu e Vicária ficamos pensando onde estaríamos se estivéssemos naqueles tempos ali, de bobeira, no centro de São Paulo.
Afinada que sempre fui com o pensamento de esquerda, tenho medo de pensar - mas é a mais pura lógica - que eu estaria junto a Elis & cia., clamando pelo fim da alienação e da influência ianque em nossa "música de raiz". Claro que isso soa absurdo visto de hoje, em que me sei entusiasta da revolução tropicalista, do gênio do maestro Rogério Duprat e de seus arranjos mágicos. Que me conheço como admiradora profunda de Mutantes, de Gil, de Caetano, de Gal, e de Beatles, de Secos & Molhados, de Novos Baianos, de Eduardo Dusek, de Itamar Assumpção, disso e daquilo outro. Claro, hoje é fácil, conheci tudo isso muito depois e não me vi em trincheira nenhuma, tendo de escolher entre alguns deles para amar e os outros todos para odiar.
Mas, no fundo, às vezes penso que estaria na marcha. Vicária acha que abraçaria a Tropicália (mas até aí, né, filho, o Gil fez a Tropicália e marchou também...). Concordamos que este camarada e este outro aqui não só seriam os primeiros da fila contra a americanização ianque como eram capazes de duelar para namorar a Telé.
E você, de que lado estaria? E você, se estava lá, marchou ou vaiou? Me conta?