Monday, April 21, 2008
De novo, na esquina, os homens estão
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Eu morava no nono andar de um edifício e tinha um canto preferido no apartamento - uma sala toda envidraçada onde meus pais colocaram nosso aparelho de som. A sala tinha um desnível em relação ao resto do imóvel. Chegava-se a ela por uma escadinha de três degraus. No mais baixo deles, eu colocava minha máquina de escrever Olivetti Lettera e ficava, sentada no chão, datilografando meus trabalhos de escola, as cartas que escrevia para o Programa do Zuza, minhas críticas musicais e literárias, minhas análises de futebol e Fórmula 1. Aquela sala foi, por assim dizer, minha primeira redação.
Não por acaso, sentava ao lado do aparelho de som e, enquanto escrevia, pilotava a música ambiente. Às vezes, as costas doíam, uma das pernas "dormia" e eu me levantava, para esticar o corpo. Quase sempre, sentava um pouco no sofá, no lado direito da sala, e ficava olhando pela janela, que dava vista para a Serra da Cantareira. É impossível lembrar dessas cenas e não associá-las à música de Milton Nascimento.
Talvez - e mais obviamente - porque eu escutava muito Milton naqueles tempos. Eu já era admiradora do falso-mineiro quando conheci meu grande amigo Gê Tock, em 1987. Ele, admirador e profundo conhecedor da obra do compositor, acabou me influenciando muito a aprofundar o gosto por Milton. Mas, talvez, eu também associe aquelas imagens à música dele pela visão que sugeria. Ao descansar os olhos na paisagem urbana limítrofe com a serra, eu inconscientemente me transportava para Minas e suas montanhas. Aquela visão da montanha paulista era a minha Minas Gerais.
Os dois álbuns "Clube da Esquina" eram dos mais tocados naquele cenário. Em LPs, naturalmente. De cara, a música de Milton Nascimento e Lô Borges, em parcerias diversas, sempre me sugeriu aquela melancolia característica de sua obra. E esse talvez fosse um fator adicional para eu ouvi-la tanto. Com 16, 17 anos, auge da adolesência e da montanha-russa emocional, sempre convém um pouco de melancolia.
Nesse período, não me limitei aos dois Clubes. Ouvia muito, também, os LPs "Caçador de Mim", "Anima", também um disco ao vivo, gravado por Milton no Palácio das Convenções do Anhembi, em 1983, "Encontros e Despedidas" e o menos brilhante "Yauaretê". Os dois Clubes, no entanto, sempre sobressaíram para mim como obras fundamentais.
A começar pelo conceito de criação coletiva, expresso tanto na enorme variedade de parcerias quanto nas próprias fotos do encarte, mostrando estúdios cheios de gente, músicos, mulheres, crianças, uma atmosfera hipponga totalmente anos 70. Aquilo não era só um disco - ou dois, pois os dois Clubes são álbuns duplos. Aquilo era o documento de uma época.
Outra sensação muito forte que sempre me marcou foi a mistura de elementos e influências. Música sacra, música cigana, rock, com inegáveis toques de Beatles, música latino-americana e até samba. Como definir a música do Clube? Era tudo isso, amalgamado em uma obra muito própria, personalíssima.
Já li algumas versões sobre a mesma confusão causada pelo termo "Clube da Esquina". Consta que um músico norte-americano desembarcou em Belo Horizonte e pediu para ser levado para a esquina das ruas Divinópolis e Paraisópolis, em busca do mítico clube, que nunca existiu como tal, sendo apenas uma expressão que designava um grupo de amigos. (A saber, Milton e a filharada da família Borges, tendo Lô como caçula). Já li que esse músico seria o saxofonista Wayne Shorter e também o tecladista Lyle Mays. Seja quem for, o clube, como tal, nunca existiu.
A EMI lançou recentemente uma caixa com os dois CDs remasterizados, em trabalho capitaneado pelo produtor João Marcello Bôscoli. Um encarte detalhado traz as letras e muitas das fotos das gravações originais, inclusive uma na qual se vê Elis Regina ao lado de Milton e do guitarrista Natan Marques, que tocou por muitos anos na banda da cantora. Elis participou do Clube da Esquina nº 2, cantando com Milton "O que foi feito devera/O que foi feito de Vera", um magnífico duelo vocal entre duas das maiores vozes da MPB em todos os tempos.
Ouvindo os novos CDs remasterizados, algumas idéias novas se somaram às percepções cultivadas desde o tempo da sala envidraçada. São 44 músicas no pacote. Acredite se quiser: você não vai ouvir as versões de "Clube da Esquina" 1 ou 2 em nenhum dos CDs. A música Clube da Esquina, a primeira, não está gravada em nenhum desses álbuns, mas em um disco solo de Milton, anterior a ambos. A música Clube da Esquina nº 2 está no álbum Clube da Esquina, o primeiro, mas em versão vocalise, sem a letra!
Mas é provável que a percepção mais forte, advinda desse relançamento, tenha sido o caráter político dessa obra, que nunca me foi tão evidente. Menos visado pela censura que nomes como Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil, Milton não deixou de dar suas alfinetadas no sistema, e passou ileso, talvez pela sutiliza de suas colocações. Além de cantar a plenos pulmões o desejo de uma América Latina forte e unida, Milton dá voz a frases como: "outros outubros virão", de "O que foi feito devera", que pode muito bem ser ouvida como uma referência à Revolução Socialista de 12 de outubro de 1917; ou ainda "já foi lançada uma estrela, pra quem souber enxergar, pra quem quiser alcançar, e andar abraçado nela", de "Cancion por la unidad latino-americana", de Pablo Milanés, adaptada por Chico Buarque, que divide os vocais com Milton. Não deve ser referência à estrela do PT, mas a da bandeira de Cuba, à da boina do Che. De qualquer forma, ninguém na Censura percebeu, ou entendeu a referência.
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9 comments:
Lindo post e lindo discos, Alessandra. Tb sou grande fa de Milton, principalmente por causa do "Clube da Esquina 1", para mim um dos dez melhores discos de MPB tranqüilamente. E através da música dele - e com ela - vim a conhecer BH com olhos de curiosidade infantil e tb adorei a cidade cercada por montanhas. Aliás MG é o estado brasileiro que mais gosto de visitar. Vai ver que nao é acaso o fato de vir parar num país sem mar e com muitas montanhas...
Bjo!
Dexa ver se entendi...
Aquela canção: "Porque se chamava moço, também se chamava estrada...e os sonhos não envelhecem...." Não esta em nenhum dos dois clubes da esquina?
Eu sempre ficava com um pé atrás com o Milton. Sempre achei sua obra muito triste. E aquela canção 'Travessia' que escutava sempre por um rádio cheio de estatica e me parecia... "Solta a vó na estrada..." me deixava meio deprimido...
Com o tempo aprendi gostar mais do Milton. Lendo as letras, e principalmente lendo o livro de Marcio Borges 'Os sonhos não envelhecem' percebi que Milton não era o ser sofredor que aparentava suas criações. Quanto a sua veia politica, talvez seja um defeito meu, mas penso ser muito cifrado e muito truncado para que se pegue de primeira a intenção.
Grande Milton, belo texto, boa lembrança...
Só uma duvida... o Shorter realmente foi a Minas procurar o Clube? Será que ele trouxe o Hancock com ele?
ico: olha só! dessa eu não sabia, que você curte o som de milton e quetais. engraçado que essa referência que tenho de minas é totalmente pautada e ditada pela música do milton, porque eu mesma só conheço o sul de minas, nunca estive em bh! mas numa coisa me alio a você - sou muito mais a montanha que o mar...
ron: pois é. os clubes da esquina parecem a confusão cartografia de são paulo, pela qual a avenida ipiranga não fica no ipiranga e a praça 14 bis não é a que tem a réplica do avião...
É engraçada esta história de de haver um Clube da Esquina físico. Muita gente ainda procura tal local que, na verdade, era a casa da família Borges.
Família musical por excelência, os Borges fizeram de sua casa um ponto de encontro de uma turma que curtia música e a amizade à sua maneira. Pelo que já vi Lô Borges dizer, era uma casa sempre com portas abertas.
Sobre a música mineira, ou melhor, a música do Clube da Esquina, já ouvi especialístas estrangeiros - ah, os especialistas... - que é a mais tecnicamente elaborada e difícil de ser tocada do mundo. Esse fato até justificaria a qualidade dos músicos mineiros, tidos por muitos como os mais capazes. Vide a magnífica guitarra tocada por Toninho Horta.
Bom, como não tenho conhecimento musical que vá além da percepção auditiva e sentimental das músicas, não posso dizer que tudo isso seja verdade. Mas que a música mineira é para quem tem ouvidos de fino trato, isso é.
pra mim, 'clube da esquina 1' é mesmo um trabalho sensacional, marcante. mas os discos 'minas' e geraes' estão em um nível superior ao 'clube da esquina 2' - é aquela história: se o '2' fosse um album simples, talvez tivesse a mesma força do '1' e dos outros dois discos aqui citados... anyway, a obra do milton, até ele virar 'cantor de hino' (a lamentável fase que se iniciou com 'menestrel das alagoas' e 'coração de estudante'), é mesmo emocionante, original, arrebatadora.
Mãe recoleque as fotos que elas não estão aparecendo.
Te amo muito.
Gabriel
22/04/08
Mãe recoleque as fotos que elas não estão aparecendo.
Te amo muito.
Gabriel
22/04/08
herik: legal ouvir a opinião de quem é de minas. você, como habitante de bh, se identifica de fato com a música do clube? sente-se representado por ela? minas tem esse travo de melancolia mesmo?
marcio: rapaz, como fui esquecer de citar "minas" e "geraes"??? putz, também eram dois dos discos super tocados naquela sala. "minas", que é mi de milton e nas de nascimento, para quem não sabe (você não conta, marcio!) tem músicas fundamentais da obra de milton, como "saudade dos aviões da panair (conversando no bar)", "ponta de areia", "paula e bebeto" e uma que é de toninho horta, mas muito marcante na carreira do milton, que é "beijo partido". "geraes" é magnífico, com tantas músicas marcantes que é até difícil enumerar: "fazenda", "calix bento", "volver a los 17", com mercedes sosa, "o que será (à flor da pele", com chico, "circo marimbondo", com clementina de jesus, "o cio da terra". que dois p... discos!
de fato, milton foi se perdendo naquele meio dos anos 80, com obras menores, até descambar no que de pior ele e gil poderiam ter feito - aquele disco com sandy & junior. bleargh!
o disco "pietá", aquele em que ele lançou a maria rita, me pareceu melhor que os anteriores, mas sem a força criativa dos anos 70. uma coisa é fato: o cara continua cantando muito.
gabriel: obrigada pelo toque, querido, já arrumei!
Oi, Alessandra, tudo bâo?
Lembra do cara que ficava sugerindo música ao final do comentário? Que um dia voltou, falou oi e sumiu de novo? Comportamento repreensível, concordo. Há porém que considerar que, conforme o samba, o coração tem razões que a própria razão desconhece, conclusão a que chegou Monsieur Blaise Pascal em certo momento e lugar e tornou-se parte do samba de Marino Pinto e Zé da Zilda, "Aos Pés da Santa Cruz". Se assim é com o coração, mais ainda é com meu computador, que tem suas desrazões que os próprios técnicos de informática desconhecem.
Alessandra, não sei se voce já abordou o assunto em algum "post", se o fez te pediria que me dissesse se ainda está disponível a leitura pois queria ouvir tua opinião. Se não, fica a sugestão.
E este pensamento me volta após a publicação deste teu "post".
O assunto é: até que ponto o período de maior criatividade da MPB - pra ficar só na MPB - "dependeu" da existência da ditadura militar pra florescer. Deixando bem claro, nem quero correr riscos por isso quero evitar equívocos, não estou dizendo que a ditadura ajudou de qualquer forma os artistas, pelo contrário, todo mundo sabe ou melhor, todo mundo sabe o que veio à público sobre o que a ditadura fez, também em relação à àrte - "Maninha", do Chico: "(...) pois hoje só dá erva-daninha no chão que ele pisou(...)". Estou me referindo à contradição de, num regime onde classificá-lo de "autoritário" seria ser suave, brotar tanta beleza, riqueza.
E de onde vêm os fatos para se chegar a esta pergunta? Por exemplo, dois ítens: um, pela comparação entre o número de compositores e letristas - de novo, lembrando que estou só falando de MPB - surgidos na época, de tantas e tantas canções e o número de novos artistas (que permaneceram ou permanecerão como eles, como Chico, Milton, e os mais)surgidos depois da ditadura; dois, pela produção daqueles mesmos artistas no pós-ditadura. Dá, acho - e aí talvez haja polêmica - pra separar a obra do Milton, do Chico, do Caetano, do Gil e tantas e tantos entre o que criaram na ditadura e o que veio após seu fim. Fizeram muita coisa boa depois sim, mas em menor número do que eles mesmos fizeram antes.
Alessandra, estou deixando de considerar algum fato e, ou, concluindo apressadamente e com êrro?
Mais uma coisa pra não deixar dúvidas, não estou querendo dizer com isto que a ditadura teve lá seus méritos. Não reconheço nela mérito algum. Não teve um dia sequer de minha vida escolar, do primário até meu comêço de USP que não fosse sob o tacão daquela turma. Não tenho saudades. Todas as canções jamais feitas não valem o que eles fizeram.
Nem se fosse uma canção popular espanhola que o Milton usou em uma de suas gravações, e ele deve ter feito mesmo como citação, era um dos cantos dos republicanos na Guerra Civil Espanhola: "El Quinto Regimiento", dá pra achar no cd "No Pasaran", do selo espanhol "Horus", Barcelona.
No que aproveito e além da sugestão musical, digo tchau e te mando lembranças da Joana Rizério, tua afilhada.
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