Monday, July 23, 2007

Desliga o som

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Desde a terça passada, não coloco um CD para tocar. É rara uma abstinência tão longa, tenho a música como companheira, inspiradora, relaxante, estimulante. Meu carro precisa de gasolina. Eu, de notas soltas e de acordes. Mas não quis ouvir música tão cedo, ainda não quero. É uma razão fútil, quase ilógica e fortemente egoísta. Estou triste, abalada, emotiva, chocada, profundamente tocada pelo acidente com o avião da TAM. Acho que estamos, as pessoas, sofrendo demais com o ocorrido. Quero proteger minhas músicas, como se elas acabassem contaminadas pelo momento. Não quero, daqui algum tempo, ouvir algo que para mim tem o valor de um mantra – sei lá, “A day in the life” ou “Conversando no bar” – e no mesmo momento associar a música a essa tragédia sem fim.

Eu avisei que era egoísta, mas talvez seja a minha forma de lidar com essa monstruosidade. O sagrado reside em cada vida ali perdida. Música para mim é algo sagrado. Eventualmente não estou só protegendo minhas músicas e minhas lembranças no futuro. Estou vivendo o luto, privando-me de algo que para mim é quase vital. É nada perto de tanta perda, mas é minha forma de vivenciar isso, em silêncio.

Eu estava no trabalho quando o acidente aconteceu. Dia de rodízio, programei-me para ficar até as oito da noite. Pouco depois das sete, informações desencontradas pelos portais da internet. Como sempre, como no outro acidente da TAM, em 1996, a coisa parece, em princípio, sempre menor do que é. Sucedem-se telefonemas, minha mãe passa a família em revista, celular em celular, checando o destino de todos. Encontra, para seu espanto e posterior alívio, meu irmão em pleno Aeroporto de Congonhas. Ele estava na avenida Washington Luiz, a mesma que o avião atravessou antes de atingir o prédio da TAM. Mas estava do outro lado, e ficou preso no trânsito logo interditado. Não entendeu o que havia, mas viu labaredas e um posto de combustíveis. Prudente que é, resolveu deixar o carro na rua e abrigar-se no aeroporto.

Cheguei em casa perto das nove da noite, liguei a TV. Pela Bandeirantes, a repórter Eleonora Paschoal, experiente profissional de telejornalismo, chora ao presenciar o resgate dos primeiros corpos. Tive vontade de abraçar a repórter, como forma de agradecer seu testemunho tão franco, tão humano, tão eu. Fui dormir perto da meia-noite. Dormi como uma pedra, sempre durmo. Nunca perdi o sono, jamais na vida, nem quando meu pai se achava em estado terminal. Acordei às cinco da manhã, com despertador, para voltar ao computador e escrever um texto do trabalho. Faço isso, às vezes: acordo na madrugada, escrevo, cabeça fresca me ajuda, telefone que não toca. Faço isso para correr, por que não faria para escrever? Sou meio louca, vocês já sabem.

Irresistível. Ao sentar diante da tela, recorri ao noticiário. A lista, disponível. Irresistível. Vasculho a longa fileira de nomes mortos. Entre eles, encontro o de Marcelo Marthe. Será o mesmo? Abro meus e-mails e encontro a mensagem triste de um colega da mesma turma. Parece ser o mesmo, contemporâneo da ECA, foi repórter da Veja por bastante tempo. Não deixa de ser incrível que ele, repórter que era, tenha vagado tanto entre os nomes sem uma referência concreta de sua pessoa. Do repórter faltou informação. Dias depois, um jornal de Sorocaba, sua terra natal, confirma. Era o mesmo que eu pouco conhecia, mas que freqüentou outras listas junto comigo, as de presença, nas aulas da faculdade.

Não gosto de voar, jamais gostei, pouco voei e gostaria de voar menos. Não me venham com estatísticas, que se morre mais no trânsito em São Paulo. Não gosto de voar, só isso. Uma vez, pousando em Recife, a trabalho, tive uma dor de dente como nunca havia tido. Relatei ao dentista, que cogitou estresse de voar. Deve ter sido, pois nunca mais tive nada parecido.

Não quero ver as fotos dos nomes mortos. Já me basta a lista. Não quero ver a fisionomia sorridente de quem só consigo imaginar nos instantes anteriores ao impacto. O pior, de tudo, devem ser aqueles segundos de certeza – “vamos morrer”. Não tenho horror à morte, não a considero um castigo, por isso não estou em júbilo porque Antonio Carlos Magalhães morreu. A morte nos pertence a todos, não escapará de nenhum. Mas algumas coisas estão doendo em mim.

Vivenciar o sofrimento alheio me entristece. Imaginar famílias ceifadas, jovens vidas interrompidas, corpos dilacerados, pais e mães esperando restos mortais de filhos que já não têm forma, tornaram-se fragmentos. E vê-los mergulhados em um universo que já tem pouco de humano, com facções políticas vibrando feito torcidas organizadas de um lado por uma falha da pista, do outro por um defeito da aeronave.

Desliga o som. Silêncio.

15 comments:

Anonymous said...

Olha Alessandra ,acho que vc conseguiu sintetizar o que esta passando pela cabeça de muita gente,fatos como esse realmente chocam as pessoas ,no dia seguinte do acidente era para mim estar em SP para uma corrida de Kart amador,acho que ninguém foi .
O estranho é como a gente esta indiferente a outros fatos, quantas pessoas morrem em acidentes de automovel por ano, assalto ou pela miseria se comparado a acidentes de avião?
Talvez ,tudo que é frequente vira normal.

Jonny'O

Anonymous said...

Mantenha a televisão desligada, mesmo. Assim você não terá o desprazer de ver as emissoras de TV fazendo masturbação com as cenas de parentes sofrendo ao ouvir o nome dos entes queridos mortos, repetidas exaustivamente até agora, junto com quinhentas mil outras cenas que já estamos cansados de ver.

O acidente foi sério, tal. Mas ninguém fala dos que acontecem nas estradas com muito mais freqüência e centenas de mortes diárias. Ninguém entrevista as famílias das pessoas que morreram, a não ser se a vítima foi alguém famoso. Não há drama, não dá ibope, por isso não passa na TV.

Acho ridículo e inadmissível, isso.

valéria mello said...

Eu estava assistindo o Pan quando as primeiras notícias apareceram. Quando vi aquelas chamas, difíceis de conter, tive certeza de que não haveria sobreviventes. Comecei a pensar que enquanto eu vibrava com os atletas da ginástica conquistando medalhas, muitas pessoas sofriam esperando notícias dos parentes. E esses contrastes ficaram na minha cabeça: enquanto uns estão chorando a perda de pessoas queridas, outros estão chorando de alegria pelas vitórias conquistadas. Ficou aquele clima de luto, a festa do Pan interrompida para dizer que mais tantos e tantos corpos tinham sido retirados. Mas essa festa me dá um grande consolo, saber que apesar da tragédia a vida continua pulsando.

Anonymous said...

Tragédia maior, mas muito maior, é o que vemos e chamamos de cobertura jornalística do fato. O desrespeito aos familiares das vítimas e até às pessoas que se sensibilizam com esse tipo de tragédia chegou a níveis inimagináveis.
Nada, absolutamente nada, justifica o uso de uma tragédia vivida por aquelas pessoas - os que se foram e os familiares que ficaram - como discussõa política. Ainda mais o uso de toneladas de aço, concreto e 200 corpos como palanque.
Deus! Será que nunca deixaremos de viver os circos romanos?
Estou simplesmente chocado com tudo o que vi nesta última semana.

Anonymous said...

No dia do acidente eu não sabia o que pensar, no dia seguinte eu sabia o que pensar mas não o que dizer. Postei um poema e pus a data do acidente no titulo. Foi só o que me ocorreu. Fico imaginando o porque de agora a culpa ser do Aeroporto. Não faz sentido. Entre o desastre de 96 e o de 2007 se passaram 10 anos e quantos aviões pousaram e decolaram de lá? Quantos da mesma TAM? Quantos com o mesmo tal 'reverso'? As informações são desencontradas demais... Ninguem aventou procurar a culpa na companhia aérea? Será que não é muito estranho que os dois maiores desastres de Congonhas tenham os mesmos protagonistas? Vai se culpar o Aeroporto (ultrapassado sim) vai se culpar o piloto (que não pode se defender)São tantas perguntas e nenhuma resposta.
sou solidário a você Alessandra, também não ligo o som. Silêncio.

Anonymous said...

Tenho certeza que a você também lhe passou isso: você escreveu, escreveu, escreveu... fez um ótimo texto... e não conseguiu exprimir nem metade do choque e da dor que essa tragédia causou em você. Assim foi comigo, e assim deve ter sido com todo mundo que tenha o mínimo de sensibilidade. Fiz o mesmo ritual que você, por incrível que pareça. Não me permiti me divertir, sentia culpa por sorrir em meio a tanta tragédia, tantas vidas, enqüanto chefões da Embraer morriam de rir no próprio local do acidente, e autoridades faziam gestos obscenos comemorando o fato de o acidente provavelmente ter sido motivado por uma falha da própria aeronave.

Até quando vamos sentir isso? Essa impotência, essa vontade de mudar tudo, de tirar essa corja do poder, de voltar no tempo e salvar aquelas vidas e tantas outras que já se foram, aquelas crianças e famílias inteiras que ali morreram... até quando?

Você tem razão. "Desliga o som. Silêncio." É o melhor a fazer.

Celinho Boy said...

Alessandra, também estou muito sentido e temo que a tragédia, a dor das pessoas sejam usadas por inescuprulosos grupos políticos, esta cambada de merdinhas do governo passado e do atual. Uns já até querem o impeachment do Lula. outros vibram com o acidente podendo não ser culpa do governo. O mesmo pessoal que detona o Lula é muitas vezes do mesmo partido que comanda uma cidade com um buraco gigante. E o mesmo que critica o buraco é o mesmo que não acaba com o apagão aéreo. Lamentável, mas também evito a TV. Já sei de salti e decor o que se ocorre. Prefiria consolar todas as famílias a buscar teses subjetivas.

Anonymous said...

já passei mais ou menos por isso que você não quer passar, um rpimo meu morreu quando eu era mais jovem, e na época, eu ouvia muito uma música, e ela acabou me fazendo lembrar dele, aliás, não dele, e sim da época em que ele se foi, uma época triste, e a musica é ridícula, a letra é tosca, só depois fui conseguir traduzir, é muito estranho.


tenho o hábito de ouvir muita música, e acabo associando elas, à época que as ouvia.

Alessandra Alves said...

jonny´o: eu acho que o choque em relação a um acidente de avião tem várias origens. o maior número de vítimas em um só acidente, a espetacularização que a mídia proporciona e um outro ponto que poucas vezes vejo comentado - um acidente de carro pode ou não ter sido causado pela vítima fatal. o cara enche a cara, pega o carro, enfia o carro no poste, morre. a responsabilidade é toda dele. no caso de um acidente de avião, as vítimas estão totalmente indefesas, não têm responsabilidade nenhuma, e isso é algo muito chocante, que nos dá um sentimento de impotência avassalador.

vicaria: cá entre nós, eu praticamente só ligo a TV para ver esportes. no geral, quase nada da programação me interessa. eu sou normal?

valéria mello: amigos meus que estão cobrindo o pan acusaram o golpe. a cobertura foi nitidamente esfriada com a tragédia. mas eu concordo com você. a vida segue, em todos os sentidos.

herik: você captou a essência da minha indignação. não me senti aviltada pelo acidente em si, mas pela utilização politiqueira dessa tragédia. é abjeto demais isso...

ron: concordo com você. já ouvi, de gente entendida em aviação, que a manutenção dos aviões da tam é feita no limite do custo. não sei se é verdade, mas acho pouco provável que seja apenas coincidência. e outra coisa: ninguém aventa a hipótese de haver uma confluência de fatores? a insegurança da pista + uma falha no sistema de frenagem da aeronave?

hugo: é realmente difícil explicar e mais ainda manter-se otimista e sereno com os rumos do país. eu mesma, que sou uma pollyanna incorrigível, às vezes tenho inveja de quem mora longe daqui.

celinho: falaste tudo, amigo. "quem não tem teto de vidro que atire a primeira pedra", mas eles não se emendam. você conhecia alguém aí do sul que foi afetado pelo acidente?

clébio: obrigada pelo testemunho. fiquei temerosa de que meu relato parecesse superficial demais, por isso é bom ver que algumas pessoas se identificam com isso. engraçado é que, quando meu pai morreu, tocaram duas músicas na cerimônia de cremação dele, escolhidas previamente por ele. uma foi "imagine", de john lennon, e outra uma versão de "bridge over troubled water", de simon & garfunkel, feita pela dupla gaúcha kleiton & kledir, chamada "corpo e alma". nessa versão, eles falam sobre a amizade entre irmãos e sei que meu pai escolheu esta canção como uma mensagem para mim e para meu irmão que, graças a deus, sempre fomos muito amigos. interessante é que "blindei" essas duas músicas e não tenho qualquer trauma em ouvi-las.

luizano said...

Link para uma crítica do Jabor em 27/03/07.

http://www.youtube.com/watch?v=rr27XjJmcOQ&eurl=http%3A%2F%2Fomedi%2Enet%2F

Esse acidente foi, de fato, uma tragédia anunciada.

P.S.: não sei se vc permite a divulgação de links, se não, por favor delete o comentário, mas achei pertinente com o post.

Anonymous said...

Alessandra,
O mais difícil disso tudo é perceber que a tragédia ética conseguiu ser mais dolorosa que a queda do avião.
Na minha concepção nada justifica o que vem sendo feito, principalmente, pelas empresas de comunicação em geral. Já as 9 da noite daquela terça-feira haviam, em emissoras de rádio de notícias, supostos especialistas em aviação e afins afirmando até babar as causas do acidente. Isso sem falar naquela nota publicada pelo senador Arthur Virgílio. Como conceber que pessoas usem de um fato tão triste de forma tão leviana e mesquinha? Sinceramente, não consigo imaginar isso. Num momento de tristeza em que deveriamos, no mínimo, orar pelos que se foram e seus famíliares, pessoas se degladiam por projetos pessoais de poder. Para mim não dá! Dá vontade de fazer como a Rita Lee disse: "Parem o Mundo, que eu quero descer."
Aliás, a leviandade parece estar tomando conta de tudo. Quando acompanhava a treino classificatório para o Gp da Europa fiquei chocado com o comportamento do "locutor oficial" do evento. Não bastasse a sua torcida para que Lewis Hamilton cometesse um erro, o citado senhor quase teve um ataque de alegria ao ver o piloto chapado nos pneus. E antes mesmo de ver o que aconteceu bradou que o garoto havia, finalmente, cometido o desejado - por ele - erro. Como podemos ver depois, o inglês não havia cometido qualquer erro.
Desta forma, como no caso da TAM, as primeiras impressões sempre ficaram condicionadas à vontade/desejo daqueles que empunhavam os microfones. E os fatos? Que se danem os fatos!
Realmente, Alessandra, rezo muito para que os seus colegas de profissão sejam tocados por um senso de responsabilidade e respeito para com a profissão e público.
Grande abraço para você.

Celinho Boy said...

Alessandra, o único caso mais próximo felizmente não ocorreu: um colega de serviço iria fazer um treinamento no Estado de São Paulo e pegaria o mesmo voo que acabaria por bater no prédio da TAM. Mas eles acabaram cancelando o treinamento. De vítima conhecida entre nós, não. Mas o deputado Júlio Redecker era bastante conhecido pelos gaúchos, bem como o Paulo amorety, que foi presidente do Inter e esteva cuidando do caso Nilmar. Beijos Alessandra

Alessandra Alves said...

luizano: pode colocar links, sim, sem problema. nem sempre todos concordamos, o que é até bom para od ebate.

herik: eu também estou chocada com esse comportamento generalizado. bem legal você ter lembrado do treino da F1. eu não estava em casa, estava voltando do meu treino na usp, e ouvi a descrição do acidente pelo rádio. quando cheguei em casa, ouvi exatamente isso que você comentou, de como a locução estava assanhada para ver um erro de hamilton. lembra daquela passagem bíblica do daniel na cova dos leões? pois é...

celinho: deve ser apavorante pensar "eu poderia estar nesse vôo", né?

Alessandra Alves said...

IMPORTANTE!

achei esta notícia no terra. parece que não era meu colega de faculdade que morreu:

Marcelo Peres Marthe, 32 anos

Nome: Marcelo Peres Marthe
Idade: 32 anos
Profissão: coordenador de negócios
Marcelo Peres Marthe trabalhava como coordenador de negócios da área de tintas automotivas da Basf em Ribeirão Preto (SP). Retornava de uma viagem de trabalho ao Rio Grande do Sul.

Cabral said...

Estava no avião o feiano Felipe de Aquino Fratezzi. Ele se formou no final do ano passado, junto do meu irmão mas em outra turma.

A fábrica onde trabalho tem uma planta em Canoas, e este vôo sempre tem gente da fábrica. Por sorte este dia não estava ninguém.