Tuesday, April 24, 2007

These foolish detalhes

Tenho ensaiado há alguns dias um post sobre Billie Holiday, porque de fato é bem estranho falar de cantoras de jazz dando a primazia para Dinah Washington, depois discorrendo sobre Ella Fitzgerald e nem uma palavra mencionar sobre Billie, aliás Eleanor Fagan, Lady Day, talvez a maior cantora de jazz da história. Mas empaquei e conheço esses eventos, não adianta forçar, uma hora sai, assim, from the clear blue sky. Claro, porque isto é um blog diletante e não um veículo formal de comunicação. Fosse séria a coisa, com inspiração ou não, saía o texto, sob o olhar atento do chicote do editor.

Anyway, na busca de um fio condutor para Billie, lancei mão de alguns de seus LPs. Não deu liga para escrever só sobre ela, mas ouvindo a manjada “These foolish things”, fiz uma ponte entre essas sophisticated ladies de outrora e nosso rei eterno, que fez aniversário na semana passada e justamente por ouvir uma de suas músicas mais conhecidas pelo rádio, me ocorreu esta conexão esdrúxula. Ladies and gentlemen, abstraiam-se um instante da atmosfera enfumaçada do café novaiorquino que tem nos abrigado. Vamos, sim, falar de Roberto Carlos.

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Dos gregos para cá, é tudo cópia. Costumo dizer essa frase nos debates que cercam propriedade intelectual, pirataria, compartilhamento de obras culturais etc. É claro que se trata de uma provocação, não acredito de verdade que a humanidade não tenha produzido nada de original da Antigüidade até hoje. Mas me incomoda muito a pretensão de alguns grupos, seja de artistas ou de “gestores” da indústria cultural, de se imaginarem detentores de algo tão original que todo o resto do planeta tenha de pagar centavo por centavo, e caro, para fruir essa obra de arte, seja ela música ou qualquer outra manifestação artística.

Sim, produzimos uma enormidade de obras artísticas, mas vamos ser honestos: tantos livros, peças, filmes, músicas, no fundo, são variações dos mesmos temas – amores românticos, felizes ou miseravelmente frustrados, debulhados em grãos de regozijo, comunhão e plenitude ou de solidão, traição, ausência, separação. Também falamos de cobiça, de inveja, de humilhação, de injustiças e mazelas sociais. Ontem, hoje e sempre.

Penélope tecia o véu à espera de Ulisses, Rapunzel trançava metros de cabelo à espera do príncipe encantado, Julieta esperava Romeu no balcão, a Santinha desejava o Filho do Diabo na novela das seis de Benedito Ruy Barbosa. Certa vez, ouvi uma definição do que era uma novela, não me lembro o autor, simplesmente genial: "Novela são dois querendo transar e um monte de gente pra atrapalhar". Ao fim e ao cabo, em novela mas também nos romances, nos filmes, nas músicas, é disso sempre que falamos.

Quantas vezes, ouvindo os sininhos melodiosos do amor ou sofrendo uma dor de cotovelo daquelas, você não escutou uma canção qualquer e pensou: “Puxa, parece que foi composta para mim...”? Não, aquele compositor não tem o dom de adivinhar sentimentos alheios. Nós, seres humanos, é que somos pouco (ou nada) originais.

É óbvio que o fato de serem todos frutos da mesma semente não fazem das obras produtos iguais. Depende de quem aduba, de como se aduba, com o que se aduba. Sinto de maneira evidente isso nos textos. Sou capaz de ler um livro inteiro que só contenha bobagens no cerne de sua mensagem, desde que seja bem escrito. Por outro lado, não passo da página dois de um livro de texto ruim, ainda que o tema seja de meu total interesse. A forma, muitas e muitas vezes, supera o conteúdo. Mas, cada vez mais me convenço, depende também da etiqueta colada do lado de fora da peça para que nós, consumidores de obras culturais, gostemos ou não da tal obra, antes mesmo de provar o sumo dessa fruta.

Sofisticados como somos, apreciadores de jazz, ficaremos com os olhos cheios d´água se ouvirmos Billie Holiday (ou Ella Fitzgerald, ou Frank Sinatra ou até Bryan Ferry) cantar “A cigarette that bares a lipstick’s traces/ An airline ticket to romantic places/ And still my heart has wings/ These foolish things remind me of you”.

Mas seremos capazes de mudar de estação se for Roberto Carlos dizendo “se um outro cabeludo aparecer na sua rua/ e isso lhe trouxer saudades minhas/ a culpa é/ o ronco barulhento do seu carro/ a velha calça desbotada ou coisa assim/ imediatamente você vai lembrar de mim”.

Porque, no fundo, sem fazer muito esforço para conectar ambas, sabemos logo que Holt Marvell, Jack Strachey e Harry Link, ao compor “These foolish things”, fizeram alguns anos antes o mesmo que Roberto e Erasmo: falaram de um amor acabado que deixa rastros no cotidiano do coração ferido. Só que um é chique, noir, cheio de um glamour nostálgico que, a bem da verdade, nem conhecemos, embora nos remeta a uma madrugada úmida, um casaco pesado, luvas, conhaque para um, esquentar a solidão e lembrar do vinho tinto para dois, de outros tempos.

O outro é o som do rádio da vizinha, no fim da manhã de domingo, aquele calor da peste, aquele cheiro de frango assado e molho de tomate apurando na panela, e esse programa da rádio América que não termina nunca, intercalando uma música do Rei com uma do Julio Iglesias, ai, socorro! Rápido, preciso de Billie Holiday, de Benny Goodman, de Count Basie...

...ainda que eu role na cama de vez em quando, tenha vontade de chorar e a certeza que “Eu sei que esses detalhes vão sumir na longa estrada/ Do tempo que transforma todo amor em quase nada/ Mas quase também é mais um detalhe/ Um grande amor não vai morrer assim/ Por isso, de vez em quando você vai lembrar de mim” tenha sido escrita por eles, inspirados por mim.

(Cheguei a procurar uma foto do Rei para ilustrar este post mas, eu, hein?! De repente ele me processa...)

12 comments:

Luly said...

Lendo seu blog, pensei: você precisa conhecer o blog do Elienai: http://nay7.wordpress.com/
Me parece que ambos tem o mesmo gosto musical.

Vou dar mais uma olhadinha por aí... bjs.

Anonymous said...

Curioso.
Em meu blig tenho uma seção que se presta a resenhar discos antigos, a “Todos estão surdos”, já o fiz com Luiz Melodia e seu ‘Perola Negra’ e o ‘Stick fingers’ dos Rolling Stones. E agora, só para utilizar um termo seu, estava maturando um post sobre o Rei. E, exatamente o disco que tem a letra que você cita, a gloriosa ‘Detalhes’. Eu que também venho da escola do jazz e do blues com uma leve queda roqueira achava RC intragável. O bom-mocismo que exala de suas canções da fase atual, e a dor de cotovelo que você cita contribuíam para que eu tivesse verdadeira ojeriza a seu trabalho. Qual o que! Quando os vizinhos punham em suas ‘vitrolas’ discos do Rei para alegrar-lhes as manhãs de sábado, maldosamente ligava meu potente aparelho de som (todo roqueiro tem aparelho potente, que é para atazanar os outros) e dá-lhe Stones, Queen, e quando o ouvido cansava do barulhão ia diminuindo a intensidade (mas não o volume) e os discos e fitas iam mostrando perolas. Benny Goodman, Charles ‘Bird’ Parker, Thelonious Monk, Bessie Smith, Koko Taylor, Kronos Quartet e outros. Agora que envelheci e aprendi que além de ouvir temos de prestar atenção às coisas e perceber que “love” e “amor” são as mesmas palavras, tem o mesmo sentido. Aprendido isto, comprei recentemente (ainda em vinil) o disco de 1971, que tem ‘Detalhes’, que no fundo é uma grande canção.
É um disco emblemático, tem lá suas bases de musica negra funk, suas idealizações gospel e até blues, por que não?
Obvio que não tem o glamour do jazz, nem a tristeza profunda do blues, mas é pungente e sincero e espontâneo. Como nunca mais RC se permitiu ser.
Mas o ouço baixinho para que as vizinhas não me bombardeiem com seus axés e amados batistas. Que ninguém merece.

Alessandra Alves said...

luly: fui ver o blog do elienai, tem tudo a ver mesmo. dei de cara com um post sobre miles davis e seu genial "kind of blue". ah, como me falta tempo para ler e ouvir tudo o que quero...

ron groo: durante quase toda a minha vida, rc era, para mim, música de mãe. não me identificava com ele nem com suas músicas, embora me identifique muito com minha mãe (hahahaha). acho que vivi um processo parecido com o seu, mas quem definitivamente mudou meu olhar sobre o rei foi meu blog-amigo pedro alexandre sanches, que escreveu o ótimo "como dois e dois", sobre rc, e erasmo e wanderléa.

foi só depois de ler o livro do pedro que reconheci esse rc que você menciona, que me despi do meu preconceito e vesti olhos mais atentos. daí comecei a entender mais rc, e a gostar de muitas de suas músicas. mas, principalmente, a me ver em rc, a ver o povo brasileiro em rc (ou rc no povo brasileiro?).

vixe, dá pano pra manga isso aqui. tomara que o gui barranco apareça para comentar também, ele que é chique e também gosta de rc!!!

Anonymous said...

Como seu blog está musical ultimamente, heim Alessandra! Não preciso dizer que está ótimo, como sempre. Até sou suspeito para falar, pois estou dentro de sua legião de fãs. Gostou do "legião"?
Aproveito para informar sobre um programa que será transmitido na TV Cultura, amanhã (26), às 8 da noite. É um show do grupo vocal Amaranto gravado em SP no ano de 2005. Já falei sobre essas meninas aqui no blog faz um tempinho.
Fica a sugestão.
Grande abraço.

Anonymous said...

Como funcionário da CBS na época (hoje Sony Music), acompanhei a turnê Emoções (aquela do avião fretado) pelo Brasil todo. Eu, que curtia as coisas da Jovem Guarda e da fase 'Detalhes' - e odiava a fase romanticabregacarola do RC, convivi por alguns meses com o idolo e suas manias. Mas acima de tudo, tive a oportunidade de constatar, estarrecido, o poder quase sobrenatural do cara junto às massas desse nosso Brasil varonil. Assisti mais de 50 vezes o show Emoções (UFA!). Foi um castigo; ao mesmo tempo, uma aula de Brasil...

Alessandra Alves said...

herik: sabe que quando comecei a pensar no blog, cheguei a idealizá-lo apenas como um blog sobre música? a lógica era a seguinte: escrevo sobre automobilismo no gptotal e deixo o blog para o outro tema que mais me interessa, a música. mas logo vi que não tinha sentido me prender a essas convenções, e acabei falando de tanta coisa que a música foi ficando de lado. este ano, por uma união de circunstâncias diversas, acabei me inspirando a escrever mais de música que de outras coisas. vamos ver para onde isso vai...

obrigada pela dica, vou tentar chegar cedo em casa para assistir!

marcio gaspar: rapaz, você me fez lembrar um quadro do casseta & planeta. o sujeito chegava no inferno e ouvia os primeiros acordes de "amigo", do rc. e dizia para o colega ao lado, habitante antigo do lugar: pô, legal, tô gostando daqui. ao que o amigo dizia: espera que você vai ver. finda aquela introdução de metais (pã-parã-pã-parã-pã-pãra), começava tudo de novo e aquela era a trilha sonora do inferno! hahaha 50 vezes de "emoções" acho que nem minha tia guida, a maior fã de rc qe conheço, iria suportar. mas, ai, quer saber, fiquei tão curiosa para saber um pouco mais desse brasil que vc viu. por que vc não conta mais para gente, hein? e aqueles lances todos do toc, vc vivenciou aquilo? o cara não vestia marrom mesmo? não saía por porta diferente da que tinha entrado?

Anonymous said...

Alessandra, se vc não quis nem botar uma foto do 'hômi', cê acha que eu vou falar aqui de toc e outros tiques e taques do RC? Tô fora, hehehe...

Anonymous said...

Não sou chique nem entendo de jazz, e talvez seja por isso que "Detalhes" seja uma das músicas que eu não me canso de ouvir. Na voz de Bethânia então, é maravilhosa.

Anonymous said...

Olá, minha cara. Cheguei até o seu blog pela minha colega blogueira Luly. E fiquei, posso te dizer, estupefato por tantos pontos de semelhança entre nossos blogs: jazz e cultura.
Com certeza voltarei aqui outras vezes, com mais vagar e calma para poder usufruir de tanta coisa boa.
E um grande abraço!
Parabéns...

Alessandra Alves said...

elienai: pois não é, menino?! separaram a gente no nascimento, foi? vou dar um pulo no seu blog, estou com a mesma sensação que você - preciso ir lá com mais calma. merece!

Celinho Boy said...

Alessandra, antes daquele comentário sobre a Soninha e a ação do Ajusp(seria esta a sigla da associação de juízes de SP?) eu já linha esportadicamente teu blog. O conheci por intermédio da Denise Ritta daqui de Pinheiro Machado.
Sinceramente essa é a primeira vez que vejo uma mulher comentar no automoblisimo num esporte onde há uma acapachante supremacia masculina. É muito legal ter mulheres que se adentram num universo dito masculino.

Sobre teu post, essa história de se cobrar direitos da obra artísitica teria começado na Europa, sobretudo depois quem um cara, que não me lembro o nome, ficou indignado ao saber que Mozart morreu na miséria.
Foste bem com este post sobre o fato da arte falar dum mesmo tipo de tema, etc e tal. O que torna uma música bem aceita talvez seja o fato da pessoa colocar bem as palavras e coisas certas no momento certo. Não adianta falar de amor(e isso que a música que a gente ouve nas rádios está tomado deste tema) se não sabes se expressar bem(tipo morango do nordeste).
Eu as vezes fico pensando até onde vai a nossa criatividade nas artes. Tenho impressão(se não for exagero) que tal criatividade esteja se esgotando.
Sobre a foto do RC, vai lá, põe uma dele do tempo da jovem guarda, he, he.
Beijos alessandra e tudo de bom pra ti

Márcia W. said...

OiAlessandra,
obrigadíssima pelo smack transatlântico que chegou forte e doce. E essa história do RC, hein? Jogou no lixo o ditado que diz que quem foi rei nunca perde a majestade. Tô passada à ferro e vou começar meu girl-coytt já!
beijocas primaveris