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D. Pedro II, o filho com cara de avô, nunca poderia supor que seu palácio de verão evocaria tal sentido. A Princesa Isabel, infância de janeiros mais ou menos amornados no recanto onde não urdiu a Lei Áurea, jamais imaginaria que aquelas paredes se associassem aos meus grilhões. O Palácio Imperial de Petrópolis fez parte do nosso roteiro turístico naquele julho de 1981.
Filho com bronquite crônica move pais zelosos à loucura. Pois falaram de um tal médico no Rio, subúrbio de Olaria, e para lá nos abalávamos a cada seis meses. O consultório ficava ao lado da estação de trem, tinha uma escadaria de madeira e um doutor à moda antiga, sem hora marcada, com um jeito de Beato Salu que minha mãe sacou na hora: esse médico é espírita. Aviava uma receita com um pozinho tal que meu irmão aspirava numa bombinha, toda noite. Não sarou da bronquite então, mas ganhamos férias inesquecíveis no Rio.
Paulistas rumo a Olaria invariavelmente terminavam perdidos. E invariavelmente pedíamos orientação a alguém no ponto de ônibus. A cantilena até começava, cheia de uma expressão que eu adorava – “segue reto, toda vida” – mas acabava sempre do mesmo jeito: “Olha, eu estou indo para lá, se quiser me dar carona, vou explicando,”, o que me dava a impressão de que todo mundo ia para Olaria, uma Roma extemporânea nos arrabaldes cariocas.
E o novo guia suburbano subia em nosso Ford sem que tivéssemos qualquer receio, outros tempos. Uma vez, uma dona simpática e bem adiposa comentou que a irmã tinha vindo morar em São Paulo há tanto tempo “que já falava arrastado”. Audácia! Logo nós, paulistas, que falamos sem sotaque! Noutra vez, coincidência maior não houve, um rapaz conduzia a filhinha bebê ao mesmo médico. Ele parecia o Michael Sullivan e foi de sua boca que escutei pela primeira vez a expressão “Cidade de Deus”. Jocoso: “Aquilo é tão triste que antes chamava ‘Cidade do Diabo’, mas nem o coisa-ruim quis, por isso sobrou pra Deus.”
Noutro dia, subindo a serra em direção ao palácio, de novo nos vimos perdidos. Nova parada no ponto e nova carona, mas para um tipo meio estranho, caladão. Dessa vez, ficamos com medo da companhia, minha mãe chegou a censurar meu pai pela acolhida, mas enfim chegamos sãos a Petrópolis. Do museu não lembro patavina. Registro ter apreciado mais o Quitandinha, charmosíssimo hotel e cassino de outrora.
Era dia 23 de julho de 1981. A data martela no último quarto de século não pelo que vi no alto da serra, mas de novo à beira-mar, no banheiro da suíte de hotel, São Conrado. Enquanto os outros apreciavam mais um crepúsculo emoldurando a Pedra da Gávea, meu susto. “Mãe, vem cá.” A mancha cor de chocolate na impoluta roupa de baixo.
Menarca. Nome bom para uma tribo nômade da península arábica. Ou para um vilarejo no sul da Espanha. Nas aulas de orientação educacional, já tinham nos dito que este era o termo correto para a primeira menstruação, mas sempre achei muita banana para um tostão. Nome bonito desse para uma coisa nojenta dessa...
Começava meu capítulo fértil, dali para frente eu já poderia gerar novas vidas, deixava de ser menina, mas a única coisa que realmente me importava, preocupava e atormentava era o modess. Fui a primeira da minha turma a menstruar, e a cada mês, quando tinha de lançar mão do detestável acessório, eu sentia como se um enorme outdoor em cores fosforescentes, e piscante, fosse instalado em minha região pélvica. Todo mundo devia estar olhando para aquilo, claro, que vergonha, que vergonha...
Se eu fosse a Remédios, de Cem Anos de Solidão, cuja menarca foi esperada como sinal verde para o casamento com o Coronel Aureliano Buendía, nessa altura poderia ter um filho de 24 anos. Uma vez, falei isso para um amigo e ele disse que tal circunstância seria bem provável se eu vivesse no interior da Paraíba. Não vivi, nunca mais fui a Petrópolis, continuei em São Paulo marcando encontros mensais com o Velho Chico em meu vale de fertilidade. A cada visita do rio rubro, um óvulo jogado fora. Faça as contas, 25 anos, um óvulo por mês. Não precisa, eu fiz. Amadureci trezentos deles nestas duas décadas e meia. Desprezei 299. Os últimos ataques de Israel ao Líbano já devem ter superado meu recorde.
Fico pensando nessa força estranha – destino, acaso, missão – que pinçou exatamente aquele óvulo (provavelmente o de número 230) para uni-lo a outra célula e transformá-lo em um menino falante, de olhos vivíssimos, que atualmente adora saber tudo sobre ruas. Fico pensando nos outros 299, fantasio se algum deles não poderia ser o novo Mozart, ou dividir o átomo em algo menor ainda, ou ganhar mais títulos em Wimbledon que Maria Esther Bueno, ou descobrir a cura da Aids, ou promover a paz entre árabes e israelenses. Daí fico pensando que tanta vida não vivida talvez tenha me servido de combustível para fertilizar outros campos, para me preparar melhor a gerar e criar o 230, para me deixar aqui pensando. Um por mês, 299. Nem é tanto, que o digam os machos: milhões a cada ato.
Thursday, July 20, 2006
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12 comments:
Mano,
Fantástico! Quando penso no que as mulheres tem que aguentar, paro de reclamar de ter que fazer a barba e cortar o cabelo com mais freqûencia. Afinal, por pura preguiça, só tenho usado a Gillete uma vez por semana mesmo.
Sobre o Rio, lembro mais da piscina do Intercontinental e de um almoço com churrasco. E de uma câmera fotográfica (acho que era Xereta!) derretida no calor de 40º).
Quanto ao museu de Petrópolis, só lembro de lustrar o assoalho de madeira com aquelas pantufas.
Bem, sobre o número 230, ele é fantástico e está cada vez mais lindo!
gu: essa da máquina Xereta é inesquecível! a coitada tinha ficado dentro do carro, enquanto esperávamos a consulta. demorou tanto que deu tempo de ela amolecer e endurecer novamente, em um formato esquisitíssimo.
lá no consultório teve outra cena memorável, relacionada à escada, lembra? seus óculos caíram lá de cima, vieram quicando degrau por degrau, terminando intactos no chão. depois, no carro, você abaixou, os óculos caíram no banco estofado e então se quebraram! nonsense total!
brou, o 230 é um presente maravilhoso! vai ver até ele ainda divide o átomo ou vence em wimbledon, mas isso não tem a menor importância.
kowalski: novela das oito? tô fora!
a câmera era de plástico, naturalmente. até parece que você não conhece o rio! pegue uma câmera fotográfica de plástico, deixe dentro de um carro debaixo do sol de verão carioca do começo da manhã ao fim da tarde... deu no que deu.
Êta! Que falta estava sentidos de seus textos Alessandra. E, para variar, você escreveu mais um belíssimo. Ainda que o assunto não seja lá tão agradável para nós homens...
Não se preocupe com o que o 230 faz. Mais importante do que ser um cientista genial, um esportista imbatível, ele - o 230 - deve trazer a felicidade aos corações de seus pais. Isso sim é uma tarefa para um vencedor.
Grande abraço.
É sentindo, não sentidos... Isso é que dar digitar rápido demais.
Alê, realmente inspirador mais esse capítulo de suas reminiscências. Que você não fique só no 230. Quem sabe um 320 não vem por aí?
hehehehehehehehehehe
Que delícia de texto... quase dá pra sentir um sabor de nostalgia... e a esperança no final do texto....
O 230 é definitivamente abençoado, assim como será o 320, ou o 350, ou o 468, pois não se engane, algo me diz que ele está chegando.
Beijos!!!
franco: obrigada pelas palavras. sem dúvida, as alegrias de ter um filho são imensas sempre. independente da relevância que ele possa ter para os outros, para os pais ele é o mais importante entre os mais importantes.
véio gagá: saudade! obrigada também pelas palavras. e você, não tem novidades relacionadas ao tema?! quanto ao 320...
gui: ...320 é mais factível que 468 (ou serei mãe-avó!!!). quem sabe, quem sabe...
Alê,
Depois da seqûencia: carona-sorte que você me deu e dos comentários do Gabriel e do seu; queria acrescentar:
Amor de irmão é uma experiência única. E eu te amo muito brou!
Gu.
Aceitei o convite que você deixou no seu post, lá no blog da Soninha e vim conferir.
Adorei!!! Que delicadeza de texto!!! Vou voltar por aqui, posso?
Parabéns!
paulo: puxa, é claro que pode. muito obrigada pelo elogio! entre e fique à vontade.
Este comentário é do estilo "você não me conhece, mas o Google te apresentou para mim..." Seu blog é ótimo, Alessandra. Este post especialmente. Deu o que pensar imaginar quantos óvulos já devolvemos à mãe terra. Realmente fantástico!
Abraços,
Fernanda
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