Thursday, December 28, 2006
A segunda morte do LP
Era começo de 1985 e eu estava ouvindo o “Programa do Zuza”, pela rádio Jovem Pan AM. O crítico musical, pesquisador, jornalista e escritor Zuza Homem de Mello é uma figura fundamental na minha vida e um dia ainda volto a esse tema. Às quartas-feiras, Zuza transformava o programa em um “Dia do Ouvinte”, respondendo cartas e tocando músicas pedidas pela audiência. Naquele dia, Zuza comentou uma carta que abordava o tema do CD. Eu nunca tinha ouvido falar naquilo e me espantei com o prognóstico do apresentador, que estimava em mais cinco anos o período necessário para o CD superar o formato LP.
Na mosca. No começo da década de 90, o CD já dominava amplamente o mercado. Recebi aquela previsão do meu mestre Zuza com certa apreensão: eu já tinha uma considerável coleção de discos de vinil e não pensava em me apartar dela. Com o toque visionário dos aquarianos, ou com a inquietude típica dos ansiosos, localizei meu temor em algo aparentemente fútil – haverá toca-discos de vinil no futuro? Manterei meus LPs para sempre, mas terei onde ouvi-los?
Esta primeira morte do LP representou basicamente uma mudança de formato e de equipamentos necessários para escutar música. Trouxe vantagens, claro, como a menor fragilidade dos CDs em relação aos velhos bolachões, fora a redução de espaço necessário para armazená-los. Mas o cerne da questão – o ato de criação artística – permaneceu inalterado. Antes, o artista reunia repertório para gravar um LP e continuou fazendo o mesmo para gravar um CD.
O produto disco – LP ou CD – nasceu de uma sacada mercadológica, uma artimanha da indústria do disco para otimizar seus recursos. Antes do formato LP, o artista criava suas músicas sob o signo da inspiração, eventualmente respeitando a sazonalidade – músicas para o Carnaval, para as Festas Juninas, para o Natal – ou atendendo a pedidos de intérpretes. Os compositores de outrora não se preocupavam em criar um lote de 12, 13, 14 músicas para formar um LP. Não existia LP.
As gravadoras perceberam a vantagem de encapsular o trabalho do artista em um produto maior que os antigos compactos. É fácil entender: antes, cada vez que Carmen Miranda ou Orlando Silva entrava em um estúdio para gravar duas músicas, prensadas a toque de caixa e distribuídas em seguida, mobilizava-se uma estrutura relativamente grande, que incluía conjunto, orquestra, técnicos etc. Ao criar o formato LP, as gravadoras continuavam dispondo da mesma estrutura, mas para lançar no mercado, de uma só vez, um número bem maior de composições. E, claro, podiam cobrar bem mais por um produto com uma dúzia de músicas do que o faziam por um single.
As gerações de artistas que se sucederam, após o advento do LP, já chegaram ao mercado sob a concepção desse formato. O que não quer dizer que todos, sempre, tiveram facilidade em reunir um número mínimo de composições para formar um LP. Afinal, o processo de criação não é produção industrial, depende de inspiração e transpiração. Diante da exigência contratual de lançar um disco novo a cada ano, muitos bons artistas lançaram mão de regravar composições do passado ou de outros compositores, ou simplesmente de encaixar “qualquer coisa” para completar lado A e lado B de seus bolachões.
Essa dinâmica mantém-se praticamente a mesma com o surgimento do CD. Não tem mais lado A ou lado B, mas continua a necessidade de se preencherem 12, 13, 14 músicas no disquinho. A grande ruptura desse modus operandi parece estar sendo estabelecida pelo ambiente musical virtual. O ato de baixar músicas da internet, trocar arquivos de mp3, “queimar” CDs apenas com as músicas preferidas reverte de uma vez por todas o formato encapsulado que as gravadoras venderam por mais de meio século. A música, criação única e com fim em si mesmo, ganha a liberdade de ser ela mesma, não a faixa 2 do disco tal. É, de certa forma, uma retomada do processo de divulgação pré-Segunda Guerra.
É, sem dúvida, uma terrível fonte de dor de cabeça para as gravadoras, que em breve já não terão na pirataria seu alvo preferencial de vilania. A internet e outros veículos, como o celular, estão institucionalizando o livre acesso à música e as gravadoras talvez estejam percebendo que perderam a grande oportunidade de mudar sua forma de ganhar dinheiro, quando esnobaram o ambiente virtual há alguns anos. Esse movimento paralelo talvez explique alguns fenômenos aparentemente contraditórios, como o que está acontecendo no Brasil atualmente, com registro de queda na venda de CDs, paralelo ao aumento da arrecadação de direitos autorais. Será que a indústria do disco perdeu mesmo o bonde da história?
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Em que pese o LP ter sido um produto vantajoso para as gravadoras, não se pode tirar o mérito de artistas que criaram sob esse formato. A música popular está repleta de intérpretes e compositores que souberam fazer de cada LP uma obra com conceito, personalidade, começo, meio e fim. The Beatles, por exemplo. Especialmente a partir de Rubber Soul, os LPs do grupo passaram a ser fortemente conceituais, concebidos a partir de uma temática ou de uma sonoridade muito próprias. Rubber Soul é diferente de Revolver, que é completamente diferente de Sgt. Peppers, que é absolutamente diferente do álbum branco, que não tem nada a ver com Abbey Road etc.
No Brasil, Elis Regina – especialmente em sua fase de parceria com César Camargo Mariano – produziu sob esse mesmo foco. Os dois concebiam cada LP de uma forma semelhante, no processo de criação. Partiam de um ou dois compositores (ou dupla de compositores) e tinham ali a espinha dorsal do disco. Completavam o repertório com obras que falavam a mesma língua dessa base, ou que a complementassem de algum modo. Gravavam todo o LP com a mesma formação de músicos, seguindo arranjos que se harmonizavam entre si, priorizando a mesma sonoridade. Ao fim, nascia um LP literalmente redondo, com uma cara própria, diferente do anterior e do seguinte. A concepção artística de Elis e César Mariano era completa. Disco e espetáculo eram praticamente uma única obra. “Falso Brilhante”, “Transversal do Tempo” e “Saudade do Brasil” são LPs nascidos a partir de shows. Em outras ocasiões, o LP produzido rendeu em seguida o espetáculo.
Ouvir, por exemplo, “Saudade do Brasil”, vinte e seis anos após sua criação, é absorver uma obra completa. Contexto: o Brasil da abertura, a esperança de dias melhores, o sonho do fim da ditadura militar. O show (e o disco) abre com um pout-pourri de sucessos de Elis nos anos 60 – tempos em que ela era representante de primeira linha de uma música engajada, politizada, pós-Bossa Nova. Não por acaso, essa introdução termina com os sugestivos versos de “Terra de Ninguém”: “(...) mas, o dia vai chegar, que o mundo vai saber, não se vive sem se dar/ quem trabalha é que tem direito de viver, pois a terra é de ninguém.” Dada a senha para se falar abertamente do país.
Todas as músicas do disco falam de um Brasil tenso, pronto e ansioso para viver sua liberdade. A sugestão nada velada de reforma agrária da introdução vai se espalhando pelas demais letras. Da aparentemente inofensiva “Agora tá” (Tunai e Sergio Natureza): “Já que ta aí, pela metade mas tá, melhor cuidar, pra peteca não cair(...)”. Da realista “O primeiro jornal” (Sueli Costa e Abel Silva): “(...) para que saias com alguma alegria bem normal/ que dure pelo menos até você comprar e ler/ o primeiro jornal.” Da debochada “Alô, alô marciano” (Rita Lee e Roberto de Carvalho): “A crise tá virando zona, Cada um por si, todo mundo na lona (...), A coisa tá ficando ruça, Muita patrulha, muita bagunça, o muro começou a pixar(...)”. Da melancólica “Maria Maria” (Milton Nascimento e Fernando Brant): “(...) uma gente que ri quando deve chorar e não vive, apenas agüenta.” Da auto-confessional “Aos nossos filhos” (Ivan Lins e Vitor Martins): “(...) perdoem por tantos perigos, perdoem a falta de amigos, os dias eram assim (...)”. Da seqüência violenta de “Onze fitas” (Fátima Guedes) e “Menino” (Milton e Brant, novamente). A primeira diz: “Por engano, vingança ou cortesia/ Tava lá morto e posto um desregrado(...)”. A segunda arremata: “Quem cala sobre teu corpo/ Consente na tua morte(...)”.
O disco/show vai se encaminhando para um final de esperança, criando um Brasil idílico e que acredita no futuro. Surgem as paisagens tropicais e hedonistas de “Marambaia”, carimba-se o passaporte de volta com “Sabiá” (Tom e Chico), reafirma-se o otimismo algo culpado de Gonzaguinha em “Mundo Novo, Vida Nova” e se reforça com “O que foi feito deverá”, com a inequívoca esperança renovada dos versos: “Falo por acreditar que é cobrando o que fomos/ Que nós iremos crescer/ Outros outubros virão/ Outras manhãs plenas de sol e de luz.” Termina com outra de Gonzaguinha, a francamente otimista "Redescobrir": "(...) entender que tudo é nosso, sempre esteve em nós, somos a semente, ato, mente e voz/ não tenha medo, meu menino povo, tudo principia na própria pessoa, vai como a criança que não teme o tempo(...)".
Lançado originalmente em dois LPs, “Saudade do Brasil” foi lançado em CD duplo reunindo toda a íntegra do show. Nos dias de hoje, é certamente possível baixar só algumas dessas músicas, pinçando-as ao gosto pessoal. O que não é ruim, viva a liberdade. Mas que esfacela uma obra íntegra, uma história, um conceito. Felizmente, a criação artística não se engessa nos formatos e, neste instante, os criadores do século 21 já estão aprendendo a lidar com as muitas possibilidades do ambiente virtual.
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11 comments:
Mano,
Você realmente é uma ótima conhecedora da MPB, mas realmente precisa por para funcionar seu MP3 player: agora não se baixa as músicas e queima um Cd com a coletânea. Coloca tudo no MP3 Player Walkman Sony que você tem e pronto.
Como Administrador que sou, me interessa muito saber o que as diretorias das gravadoras planejam para os próximos 10 anos. Isto é intrigante para mim. Como será o negócio da produção musical? Será que sofrerá tanto impacto assim?
O que não dá pra entender, como consumidor, é por quê uma música vendida na internet, em formato MP3, sem prensagem de CD, sem o custo da mídia, sem custo gráfico, sem o custo da caixinha, sem custo de distribuição, sem custo do lojista, seguramente com carga tributária infinitamente menor, em função desta fantástica redução no custo do produto, pode custar entre R$2,50 e R$3,00, fazendo o preço de um CD completo custar R$32,37, como por exemplo o da Marisa Monte, no UOL Megastore.
Pra mim, essa conta não bate. Penso que as gravadoras, ou sei lá quem, querem ganhar dinheiro demais, inclusive, em cima do artista, que ganha pouco pela sua arte. Esse preço é um absurdo mesmo para um CD na loja. Agora, é inexplicável para venda virtual de arquivos.
Enquanto essa ganância não chegar a níveis mais sensatos, a pirataria vai continuar.
gustavo: eu já dei um grande passo - pelo menos, agora, o mp3 player já está perto do computador, à espera de que alguém me ensine a usá-lo...
paulo: é, rapaz, você pôs o dedo na ferida. a pirataria tem sido apontada nos últimos anos como a grande vilã do mercado musical, mas a discussão é bem mais embaixo, né? tá errada a pirataria? pois é. agora, ladrão que rouba ladrão não tem cem anos de perdão?
Alessandra, a migração do LP para o CD, além de tudo, ainda fez com que se perdesse um campo extremamente fértil paa os designers, artistas gráficos, etc. Dá pra imaginar, por ex., o Rogério Duarte concebendo para o formato CD, a arte da capa do LP 'Transa', do Caetano?
Alessandra, acho que nós fãs dos LPs ainda somos em legiões. Ah, e a gente se renova também. Outro dia, em visita a um sebo aí de Sampa, na Brigadeiro, estava eu vasculhando a estante de CDs e minha filha adolescente dedicava-se a juntar uma pequena pilha de LPs. É adolescente! Vale dizer que não faço propaganda com ela não. Ela já tem sua pequena coleção e ai de quem vier a falar mal. Bom sinal, né? Queria também, e aí lembro ao Márcio Gaspar, citar o Elifas Andreato. Que jeito fazer coisas tão belas sem ser num LP? Isto à parte, ainda insisto numa tese talvez maluca: a qualidade de som do LP é melhor. O som do Cd é pasteurizado. Se voce ouvir um LP prensado direitinho - nem falo dos importados - vai concordar. Alessandra, deixa te desejar um feliz ano novo? Feliz Ano Novo! Permita por favor também desejar Feliz Ano Novo pra todo mundo que frequenta este blog tão agradável. Muito gostoso ter conhecido teu blog, viu? Pra encerrar musicalmente, "Los Mareados", em qualquer das versões, mas se beberem, não dirijam.
marcio gaspar: putz, esta e tantas outras, né? já experimentou olhar com atenção a capa de sgt. pepper´s em cd? só com lupa! é certo que a geração mais recente de artistas gráficos também se adaptou a isso e criou algumas capas muito legais para cd. gosto muito da capa do "paratodos", do chico buarque e de um cd do barão cujo nome agora me escapa, legal mas aflitiva, com um peixinho dentro de um liqüidificador. uma boa imagem.
mauro: essa questão do som que você levantou não me causa estranhamento. muita gente entendida à beça no assunto concorda com você. o próprio zuza é um. lembro de outro depoimento nesse sentido, vindo do milton nascimento. aliás, que loucura, lembrei agora que sonhei com milton esta noite! um sonho louquíssimo. claro que tinha a são silvestre no meio (meu sonho mais recorrente atualmente: nos meus devaneios noturnos, eu já perdi o horário da são silvestre, escorreguei na brigadeiro e, no de ontem, me perdi no caminho! hahahaha! tô surtando!) mas voltando ao milton, ele comentou, certa vez, que a primeira audição dele para um cd remasterizado dos beatles foi um choque, quase um embuste. ele simplesmente achou que aquilo não era beatles, de tão diferente que o som ficou. tenho outro exemplo: os dois lps dos secos e molhados foram relançados em um trabalho de reconstituição histórica notável, capitaneado pelo titã charles gavin. a intenção foi ótima, mas a remasterização modificou totalmente algumas gravações, fora os cortes abruptos feitos em algumas delas. para quem não conhece o original, até passa. mas, para colecionadores como nós, heresia total.
Vou meter minha colher torta aí... Acabo de comprar o CD Love, trilha do espetáculo do Cirque du Soleil, de mesmo nome, com música dos Beatles.
Nunca vi nada igual. George Martin e seu filho Giles fizeram um trabalho simplesmente maravilhoso; coisa que o próprio Paul e o próprio John fariam. Tirando de lado a questão do mash up, do sampleamento dos vários canais de gravação, criando novas músicas com o material original, com um bom gosto e um sentido de adeqüação, com uma sensibilidade fantástica, o que aparece, o que nasce da remasterização são verdadeiros tesouros sonoros, escondidos pelas técnicas de mixagem e masterização da época. Pra quem conhece os detalhes de cada canção, cada toque de guitarra, cada linha de voz dos vocais, fica enlouquecido com a riqueza que aparece - e que, isso é que é fantástico - já estava lá; apenas não aparecia.
O que é ruim não é a tecnologia ou o avanço: é o uso que se faz dela. Nesse meu exemplo, usando somente as novas tecnologias, George Martin e seu filho criaram uma obra de arte. Confiram.
Paulo de tarso está coberto de razão: o trabalho dos Martin (pai e filho) em 'Love' é mesmo sensacional! Fiqeui preocupado qdo soube que ele estava remixando (de novo!) as velhas faixas e, mais do que isso, juntando músicas, usando bases de umas com vocais de outras e assim por diante. Mas... que maravilha! Beatles revivem, long live John and George. Mais do que nunca, Beatles 4ever!!!
rapazes (paulo de tarso e marcio gaspar): vocês me deixaram com água na boca para ouvir isso. tenho que ir atrás desse CD!
putz, esperemos agora a "morte" do mp3, né?... eita, mundão acelerado...
Alessandra
Se vc faz coleção de LPs, eu também tenho muito xodó pelas minhas fitas cassete onde eu gravava as músicas que eu gostava (e gosto) quando tocava nas rádios. O preço disso era ter que aguentar as músicas chatas do rádio que eu, obviamente, não gravava. Mas no final eu tinha uma fita inteira só com as músicas que eu gosto sem precisar comprar fitas ou LPs das gravadoras. Cheguei a comprar umas coletâneas, mas quem escolheu as músicas ? A maioria eram músicas erradas que EU não escolhi e mesmo assim acabei pagando...
E hoje baixo mp3 do computador e tudo pirata é LÓGICO, eu quero que as gravadoras se ******
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