Monday, November 20, 2006

Ana Carolina

Ela conseguiu. É capa de todas as revistas semanais no Brasil. Imagino quantas vezes, no interior de São Paulo ou nos cafundós do Japão, sonhou acordada com a fama, a celebridade, ser capa de revista. Pena não estar viva para ver.

Há alguns anos, meu trabalho eventualmente incluía a tarefa de fazer “casting”. Fazer casting é escolher modelos para eventos ou algum outro tipo de produção. Fui uma vez a uma agência e me espantei com o espetáculo armado para um só espectador – eu. As meninas desfilavam sobre uma passarela de verdade e eu tinha de escolher, entre umas vinte, as quatro que ia contratar. A moça da agência fazia observações pertinentes: essa tem perna boa, longa; essa é linda, mas nunca sorri: se você precisa de simpatia, não a chame; essa negra é sensacional, olha, é sempre bacana colocar uma negra entre elas, viu?! Blá-blá-blá: navio negreiro, foi assim mesmo que me senti, em um mercado de escravos.

Pena, pena, não senti naquele dia e continuo não sentindo. Só segue carreira de modelo quem quer. Todo mundo sabe que é um ambiente hostil, focado só na aparência física e, portanto, superficial e afeito ao descarte. Quem quer ser tratado como escravo ou como animal premiado, sendo avaliado pelos dentes, pela coxa ou pelos peitos, que seja modelo.

Sentir pena das moças por essa vida que levam é como ser tomado de compaixão por quem participa do Big Brother. “Ah, coitados, parecem animais enjaulados...”. Estão lá porque querem e, em paralelo óbvio com as modelos esquálidas, também “se sacrificam” em busca de fama, de ser capa de revista.

Só não digo que fico totalmente indiferente a essas jovens porque me causa leve indignação a posição de suas famílias. Permitir que uma adolescente de 13 anos se mude de mala, cuia e sem dinheiro no bolso para o Japão me parece muito estranho. Omissão ou promessa de enriquecimento, sei lá, também sou mãe e sei como às vezes custa dizer um não inflexível a um filho. E talvez a raiz dessa impotência dos pais seja o irresistível culto à beleza e à juventude que paira nesses dias como uma espada de remorso sobre a cabeça da sociedade. Dá-lhe capa de revista, dá-lhe mea culpa dos próprios veículos que, para seus editoriais de moda, selecionam no “casting” modelos cujas pernas têm a espessura de um braço, e em seus editoriais entrevistam especialistas em anorexia, bulimia e outros distúrbios alimentares. Dá-lhe contradição.

Sim, a culpa é da sociedade. Somos culpados por modelos que morrem de fome. Também somos culpados por crianças e adolescentes obesos que se entopem de gordura trans nos fast foods dos shoppings ou na frente da TV. Somos culpados pelos que comem demais e pelos que não comem. Isso não é ironia: as raízes dos problemas do ser humano estão nele mesmo, em sua forma de viver e se organizar em grupos, mas convido a uma reflexão ampliada.

A primeira vez que ouvi falar em anorexia foi após a morte da cantora Karen Carpenter, em 1983. Fiquei chocada com a manchete na capa de uma revista: “A cantora que morreu de fome”. O sensacionalismo da publicação serviu para que eu entendesse que ela não tinha morrido por falta de dinheiro para comprar comida, como acontece com tanta gente no mundo, mas devido a um distúrbio psicológico que a fazia recusar alimentos. A coisa, portanto, não é de hoje.

Recentemente, após a morte da modelo Ana Carolina, li uma reportagem com uma pesquisadora do Hospital das Clínicas, de São Paulo, cuja tese apoiou-se no estudo histórico da anorexia. Está lá: há registros da doença que remontam ao século 8. O perfil do paciente, desde aquela época, é semelhante ao de agora: na maioria, mulheres jovens, de famílias bem sucedidas, com traços de timidez. A diferença entre os eventos do passado e os de hoje é a motivação. Antes, a sublimação do corpo tinha origem na busca pela santificação, enquanto hoje é reflexo de um padrão estético.

Sempre que os temas anorexia e magreza excessiva ganham destaque na mídia, surgem aqui e ali textos bem humorados de cronistas machos louvando a beleza de mulheres que se fartam à mesa e exibem despudoradas suas coxas roliças, suas ancas carnudas, seus peitos volumosos. Pois eu digo: tais crônicas podem ser engraçadinhas, mas são inócuas em termos de doutrinação. É só puxar pelo exemplo histórico. Se pacientes com esse perfil já manifestavam seus distúrbios em tempos de culto às formas roliças, como nos séculos passados, não são os bem intencionados cronistas do século 21 que as farão mudar de idéia hoje. Porque o problema não se relaciona à imagem que o outro faça dela, mas à sua própria auto-imagem. A moça recém-tragada pela anorexia disse ter consciência de nutrir uma visão distorcida sobre si mesma. As de ontem e as de hoje não são apenas produto do meio: são pessoas doentes.

Cabe, sim, à sociedade, avaliar seu grau de culpa no caso. Por que essas moças se tornam anoréxicas e chegam à morte, em alguns casos? É nosso apelo ao belo e ao jovem? Pode haver, sim, essa parcela de responsabilidade. Mas cada um responde à pressão do meio de acordo com suas possibilidades e sua vontade. O mundo valoriza mulheres magras, sim, a mídia as estampa em todos os cantos. Mas o mundo também nos enche de apelos irresistíveis por batatinhas fritas, hambúrgueres, nuggets, sorvetes, chocolates. A depender só das influências externas, a mim caberia apenas ser anoréxica ou obesa mórbida.

Diante do paradoxo entre “seja magra” e “se encha de besteiras”, tornar-se uma pessoa que se alimenta de forma saudável e equilibrada é algo que depende de mim, da influência que tenho da minha família. Não precisamos ser sempre vítimas da sociedade, se nos dispusermos a responder com firmeza e responsabilidade às pressões que sempre teremos. E aquele ser mais frágil, mais susceptível a sucumbir há de ter o apoio e a atenção da família, o que não deixa de ser a mesma firmeza e responsabilidade que se deve ter consigo mesmo.

8 comments:

Anonymous said...

Falta às pessoas apenas vivenciar o sentido real de uma só palavra: EQUILÍBRIO. Equilíbrio em todos os aspectos da vida.
Sem o bom senso não iremos a lugar algum.

Anonymous said...

Excelente o texto.

É interessante que existe um ramo da medicina que se chama "história das doenças", e que tenta analisar quais foram realmente as doenças relatadas em épocas anteriores às principais descobertas científicas.

Segundo esses estudiosos, poderia ser anorexia o chamado "mal da menina virgem" (não lembro se é esse mesmo o nome), que acometeu garotas jovens entre os séculos 18 e 19. A anorexia é uma doença mental, e como tal, tem uma gama enorme de fatores condicionantes, e um diagnóstico não muito fácil.

Eu acho que está faltando a mídia enfatizar que o problema não é o desejo de ser magro, que muita gente normal (a maioria, aliás) tem. O principal é a tal percepção distorcida, a menina se olhar no espelho e se achar menos magra do que realmente é. Esse é X da questão. É um transtorno mental.

Falar apenas na "ditadura da beleza" ou em fatores sócio-culturais pode, para aquelas que realmente sofrem desse mal, ser interpretado apenas como um discurso moralista -- aliás, pode não, é interpretado assim. E elas precisam de um apoio melhor do que esse.

Aliás, eu espero que em breve também se fale da vigorexia, que também causa transtornos enormes a muita gente, no caso, rapazes que têm igualmente uma percepção distorcida de seu próprio corpo -- se acham menos fortes e musculosos do que realmente são.

Anonymous said...

"Morro feliz e magra. Mas, não como nem sob tortura".
Essa frase, escutei de uma vizinha de 20 anos outro dia quando me choquei com seu novo visual esquelético.
É uma menina linda, rostinho de boneca e que sempre teve peso compatível com sua altura. Porém, sua mãe e irmã fizeram e fazem regime a vida inteira, o que causou um certo "medo" a tal moça.
Perguntando qual dieta ela havia feito, tive a seguinte resposta:..."barrinha de cereal e água......quando meu pai pega no pé, uma saladinha básica e uma maçã".....
A mãe visivelmente abatida com o assunto disse que a coisa mais comum no início da drástica dieta era a filha desmaiar e que agora que seu organismo acostumou a não receber alimentos quando insisti em comer um pouquinho, passa mal.
Ela, diz que ainda é gordinha, que precisa perder mais 10 quilos, que ninguém determinará sua alimentação e que hoje é feliz por não depender de comida.
Muito ruim você perceber que existem casos em que a pessoa não aceita que está doente e muito menos ser tratada.
Mãe psicodedagoga, pai pediatra e filha anoréxica: "Em casa de ferreiro o espeto é de pau". Com certeza, esse dito popular se encaixa perfeitamente. E o pior é que eles tentam, insistem e não conseguem fazer a mocinha enxergar a realidade.

Alessandra Alves said...

herik: pois é, parece tão simples, né? por que será tão difícil, para algumas pessoas, encontrar o equilíbrio?

marcus: bem lembrada a questão dos homens que se acham menos fortes do que são. é outro caso de desequilíbrio com potencial de tragédia. os moços começam a malhar, daí passam a usar suplementos alimentares, então chegam às "bombas" e muitos terminam com a saúde comprometida, correndo inclusive risco de morte.

dé: é chocante isso, né? tenho ouvido cada vez mais relatos de gente supostamente saudável que começa a desenvolver um comportamento desse tipo. o mais chocante, para mim, é a sensação de impotência que os pais devem sentir. veja esse caso que você contou! o pai é pediatra, a mãe, psicopedagoga, ou seja, supostamente gente que tem muita informação e, mesmo assim, não dão conta de frear o impulso suicida da moça.

mas você comentou um detalhe que vai ao encontro do que a rosely sayão escreveu outro dia no blog dela, do uol. em certa medida, os próprios adultos estimulam a neurose em relação ao peso, com dietas malucas e radicais. insisto num ponto: quem chega ao limite de desenvolver uma anorexia é doente e deve ser tratado com uma atenção especial. se o fato de ver a mãe e as tias fazerem regime fosse suficiente para criar adolescentes e jovens anoréxicas, na nossa família mesmo não ia ter ninguém normal! só que a família tem que estar atenta de que forma os filhos respondem aos estímulos que ela mesma dá, concorda?

Anonymous said...

Eu só achei meio tendenciosa a conclusão daquele texto, que se hoje o motivo da norexia é estética antigamente era espiritual.

Quer dizer, a culpa é da vaidade. Ser santa na idade média era com ser top model hoje. É ter a própria imagem entregue a adoração popular. É uma coisa estética.

Colocar a culpa na busca do espírito é não saber o que é espírito.

O espírito é o que edifica a razão.

Eu sei explicar melhor com carros. O Corvette é o que é pois por trás de sua imagem há um espírito. Algo que está marcado em seu projeto e que evoluí a cada geração, na busca de um mesmo objetivo.

O Lotus Elan II era um Lotus, e era belo, mas não tinha o espírito. Assim não foi reconhecido como um Lotus. Mas o Elise já é uma manifestação do espírito da Lotus.

Quer dizer, o censo estético é apenas um dos elementos da razão humana. O censo estético, o ético e o lógico. O espírito é o que os rege. Cultivar qualquer um desses elementos como finalidade do ser é fatal. Mesmo que não mate fisicamente, mata espiritualmente. Um Lotus Elan II que não é um Lotus, um homem que não é humano.

O erro é que podemos tentar explicar o cultivo da estética por lógica e ética. Na verdade trabalham de forma concomitante, regidos pelo espírito, na busca de um fim que trascende a nossa insignificante existência.

Anonymous said...

A falha histórica da educação é exatamente cultivar o conhecimento e não cultivar o espírito.

O Tuning, por exemplo, é resultado da cultura do conhecimento. Aplicação de tudo aquilo que o homem já conheceu, mas esqueceu para que servia. A cultura (o que ela significa hoje) é o que sobra quando acaba a inteligência. A cultura do conhecer NÃO É a cultura do conhecimento.

O problema é que o espírito é algo que não se ensina através da demonstração. É algo que se percebe.

Anonymous said...

O problema é que as Agencias que contratam essas modelos, precisam
ter "responsabilidade social".
Devem cuidar dessas modelos como cuidam de seu patrimonio.Não é possível que uma agencia não perceba que está tirando de"casa", uma (filha) adolescente de 13 anos.Quanto ao papel da familia, desnecessário qualquer comentário.
Cabe às agencias,dar apoio psicologico e médico e financeiro para essas garotas.Afinal trabalham para elas, ou não?
Nelson Piquet deu uma resposta fantática quando perguntaram para ele se ele não tinha mêdo de receber tratamento de 2° piloto na Willians: Não tenho porque está tudo no contrato.Se não cumprirem o contrato, a multa é pesadíssima.
A única linguasgem que o dono de quipe entende , é quando mexem no seu bolso.Pois é, com agencias de modelo deveria ser a mesma coisa.
É preciso mais do que simplesmente aquartelar adolescentes em um apartamento(curral, para depois lança-las às feras.

Carlos Miguel

Alessandra Alves said...

edu: adorei sua analogia com o mundo dos automóveis e também gostei muito da sua análise sobre a questão estética ontem e hoje. sim! o apelo espiritual talvez tivesse, no passado, o mesmo peso que o apelo da beleza tem hoje.

seus comentários acerca de razão, ética, estética, lógica e espírito renderiam vários posts!

tenho orgulho dos meus leitores!

carlos miguel: concordo que as agências deveriam lidar com as moças de outra forma, menos humilhante e mais digna. no fundo, o tratamento que essas modelos recebem não difere muito do que os escravos recebiam, né? talvez, a única diferença é a promessa de fama e enriquecimento que a profissão dá - e isso a escravidão nunca deu pra ninguém. mas eu continuo batendo na tecla da decisão individual e familiar. entra para esse mundo quem quer, conhecendo todas as suas mazelas.