Estudei dos 4 aos 17 anos em um colégio de freiras. Muito do que sou devo a essa formação – para o bem e para o mal, como tudo na vida. Poucos antes de começarem as aulas na 1ª série, fui acometida por um medo paralisante, o de ficar na classe de uma tal professora que era temida como a mais brava da escola. Eu não ligava o nome à pessoa certa e, em meus pesadelos, ela surgia com a fisionomia de uma outra professora, que eu via circular pelos corredores e pátios do imenso colégio. Escapei ilesa na primeira série: não “caí” com a tal megera. Dois anos depois, em 1979, no entanto, aquela que eu imaginava ser a bruxa da 1ª série, na verdade professora da 3ª, veio a ser a minha mestra. A confusão de fisionomias, vista em retrospectiva, evidencia para mim o quanto a aparência física revela da personalidade. Aquela que eu imaginava ser a bruxa da 1ª série tinha um porte ereto, rosto comprido e sisudo, cabelos invariavelmente repartidos ao meio e presos com uma fivela em um rabo-de-cavalo baixo. Tinha cara de brava, ponto. Pois quando aportei em sua classe, na 3ª série, ela confirmou todas as minhas expectativas. Como é vivente, subtraio seu nome verdadeiro. No primeiro dia de aula, acomodadas todas as alunas (sim, só mulheres) em suas respectivas carteiras, ela proferiu a seguinte regra. “Meu nome é Fulana de Tal. Não sou irmã nem da mãe nem do pai de nenhuma de vocês. Portanto, não sou tia de ninguém aqui. Vocês podem me chamar de Fulana ou de dona Fulana, nunca de Tia Fulana.” Uau, que começo! Era um mini-quartel a classe da Dona Fulana (é claro que nunca ninguém ousou chamá-la sem o dona na frente). Não se pedia para ir ao banheiro. No fundo da classe, ao lado da porta, uma plaquinha dupla-face pendurada em um barbante. De um lado, apenas um papel cartão verde. Do outro, um papel cartão rosa, com um ponto de interrogação. Sinal verde, banheiro liberado. A aluna saía, virava a plaquinha. A próxima só poderia sair quando a anterior voltasse. E desvirasse a placa. Uma das regras da Dona Fulana, válida para toda a escola, desconfio, era a de não poder mascar chicletes durante a aula. A massa ignara de meninas de nove anos, logicamente, assentiu. Mas o ano foi passando, a acomodação aumentando, até que uma incauta resolveu adentrar a fortaleza mascando um chiclete. Deve ter esquecido, não tinha vocação suicida de rebelde, a coitada. Dona Fulana notou a displicência ruminante da menina e a chamou lá na frente. Mandou-a subir no estrado, aquele lugar que separava a autoridade suprema das perigosas meliantes de saias azul-marinho pregueadas. “Sicrana, você está mascando chicletes?”. Sicrana engoliu em seco, não o chiclete. “Sim, professora.” “Sicrana, tire seu sapato.” Atônita, a menina ensaiou um balbuciante “mas, prof...”. “Tire seu sapato, eu já falei.” A menina descalçou um dos pés. “Agora, tire seu chiclete da boca, coloque dentro do seu sapato e calce-o novamente.” Diante do espanto da mascadora infratora, Dona Fulana repetiu a ordem. Sicrana ainda tentou argumentar. “Mas, professora, o chiclete vai grudar na minha meia!” Ao que Dona Fulana concluiu, regozijando-se visivelmente: “Exatamente, Sicrana. Porque se eu apenas tivesse chamado sua atenção e mandado um bilhete para sua mãe, dizendo que você estava mascando chiclete na sala de aula, ela poderia achar que eu tinha inventado. Assim, ela vai ter certeza.” E mandou a menina de volta para sua carteira. Esse exercício de autoritarismo, baseado em humilhação pública, nunca me saiu da cabeça. Corta a cena. 2006. Conversando com minha prima Camila, artista plástica formada pela FAAP e monitora da Pinacoteca do Estado de São Paulo, ela me relatava as agruras de acompanhar grupos de estudantes pelo museu. Um lugar de simplicidade espartana – paredes e quadros, basicamente – mas altamente suscetível a atos de vandalismo. Entre as regras da instituição, tchan-tchan-tchan-tchan!, não se pode mascar chicletes no local. Claro! Algum engraçadinho pode resolver grudar sua goma de mascar em um Almeida Junior ou num Tarsila do Amaral. Ou, sejamos otimistas, o chicle pode virar aquela coisa sem gosto e desagradável ao longo do percurso. Jogar onde? Camila adverte a todos os grupos, antes de começar a visita. Nada de chicletes. Cansou de reforçar a regra a incautos, durante o percurso. Um deles até estourou uma bola enquanto ela dava as explicações sobre as obras. Certo dia, o insólito se instalou. Junto a um grupo de estudantes, mascava chicle, candidamente, uma professora! Camila foi sutil e lhe pediu que se livrasse daquilo. Veio uma desculpa inverossímil – algo como hipoglicemia ou gastrite justificando a mascação. Entre a humilhação de Dona Fulana e a displicência da atual professorinha, onde nos perdemos? Será que a mestra atual foi aluna de Dona Fulana? Perdemos as rédeas do bom senso? |
Monday, March 13, 2006
Reminiscências 1 – Chicletes
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13 comments:
Alê... Não me lembro disso, que novidade!
E Dona Fulana, me lembro dela sempre, de como fazíamos cópia e tabuada todos os dias, e que a gente tinha que colorir todos os acentos, pingos nos is, vírgulas, etc... Com isso, hoje escrevo até rascunho com todos os acessórios... E tabuada, então, faço contas de cabeça muito rápido, o que é um diferencial quando a gente lida com essa moçada que não vive sem calculadora...
Alessandra, essa é uma questão delicada, mas devo dizer que a dona Fulana, mais do que ser autoritária, pretendia com tais exageros impor claros limites de disciplina, que infelizmente não se vê hoje em alunos - e adultos. O fato de não se saber lidar com hierarquia e regras está transformando as pessoas, jovens e adultos mais novos, pessoas intolerantes às boas regras de conduta e convivência. Afinal, respeitar os outros é também adaptar-se às regras de onde se está. Lembro-me que quando me mudei pra BH, morei com minha tia durante 6 meses - era pra ficar um mês. Nesse período me adaptei à sua rotina, como norma de boa convivência e educação primária. Acordava exatamente quando ela o fazia, dormia no mesmo horário que ela, para não deixar luzes acesas e televisão ligada, o que poderia lhe atrapalhar o sono, etc. Resultado: Ela permitiu que eu morasse lá até que eu me casasse, o que demorou 6 meses. Ela nunca tinha concedido tamanha benesse a meus outros primos, mesmo os que estudavam em BH.
Por outro lado, são raras as vezes que a lei que prevê benesses - extremamente necessárias - para deficientes, grávidas e idosos são respeitadas. Culpa de quem? Daqueles que foram mal educados pela família e pela escola. Pergunto agora: O que perdemos ao sermos bem-educados? Nada, só ganhamos dos outros respeito, simpatia, cordialidade...
A quem compete educar os jovens: aos pais (permissivos em excesso - crianciocracia), aos professores (hoje sem voz ativa, pois os pais brigam com eles quando dão alguma advertência a seus filhos), à sociedade (que os educará tardiamente e da forma mais dura e cruel, criando jovens deprimidos e com dificuldades de relacionamento interpessoal), ou a todos que estão vendo ruir os mais básicos princípios de educação?
célebre anônima: eu ia escrever, em algum lugar, que dona fulana era uma professora excelente, mas acabei deixando isso de fora. não se discute essa questão. todo mundo que passou por ela há de reconhecer esse lado. mas você há de lembrar outros professores excelentes que tivemos, como dona Irene, Teca, a Esther (de História), a Ivete (de Química), o Eduardo (de Biologia) que eram igualmente bons mas não lançavam mão de gestos humilhantes como esse (você não lembra? que novidade!) por outro lado...
... véio gagá: eu devo confessar meu fraco - tenho uma queda irresistível por uma rédea curta, uma voz firme. tem gente que me acha louca, mas eu ando pensando seriamente em contratar um professor da minha academia como personal trainer porque o homem é um sargentão! acho que isso funciona comigo por eu mesma ter um nível absurdo de auto-crítica. só sinto que evoluo quando exigem mais de mim, porque os "bonzinhos" parecem sempre frustrar minha expectativa. na verdade, eu adorava dona fulana e lembro, na época com nove anos, de ter achado que ela estava certa na história do chiclete no sapato. só que acho outra coisa, olhando o fato com o distanciamento de quase trinta anos: por mais que sirva de exemplo, a humilhação pública é sempre hedionda. daí eu chego a um ponto de concordância com você - fomos de um extremo a outro. eu vejo isso repetido em famílias que tiveram mães muito bravas com os filhos. estes tendem a ser uns bananas com seus filhos e formam uma geração de gente incontrolável, insociável até. nem tanto ao mar, nem tanto à terra. nem a humilhação (ou a palmatória de ontem), nem a rédea solta de hoje. equilíbrio!
Bem, hoje o que mais observo é uma onda de "adolescentes revoltados por nada" e que por problemas sérios por eles ocasionados, seus pais são chamados aos colégios para juntos (pais e mestres) tentarem uma solução tipo "meio-termo" para todos. Alguns pais aceitam e colaboram, outros se sentem ultrajados dizendo que foram muito repreendidos na época de estudantes e não admitem que os filhos também sejam. Enfim, cria-se uma situação dúbia entre o educador e o educando, aonde nem sempre a autoridade permitida é vista com bons olhos e às vezes também o excesso de autoridade se torna um problema para ambos os lados.
Agora, muitos professores aproveitam para se impor de forma cruel e abusam de castigos e humilhações, sem imaginar que o "mundo da voltas".
Sou mãe de 3 adolescentes (16, 15 e 13 anos) e graças à Deus nunca tive problemas de comportamento com eles nos colégios. Como a Alessandra, também gosto de rédea curta e acabei passando isso aos meus filhos.
É claro que não quero uma educação estilo "O Atheneu". Mas, que hoje em dia faz falta a educação de berço, o respeito e a gentileza, isso faz. E que também alguns professores precisam tirar as ferraduras antes de entrarem na sala de aula, não tenho a menor dúvida.
Ensinar é um DOM e respeitar é essencial. Agora, humilhar passa longe de educar!
Equilíbrio! Perfeito! Concordo com você em gênero, número e grau. Também sou contra humilhações públicas. É que na minha época, eu tinha que entregar de volta à professora, ou à diretora, bilhetes assinados pelos meus pais; e para garantir que fossem assinados, telefonavam pra minha casa antes de eu chegar. Nunca apanhei do meu pai, tampouco fui humilhado em público pelos meus pais ou pelos professores (isso realmente é horrível), bastava meu pai ter uma conversa firme comigo para que minhas faltas de educação não se repetissem. Não que eu fosse mais receptivo que os outros, mas sim porque eles sempre me ensinaram a me colocar no lugar dos outros, antes de fazer uma grosseria. Hoje em dia, se um menino levar um bilhete da professora à sua casa, periga os pais irem tirar satisfação com a profissional, afinal o "anjinho" sempre tem razão.
Abraço,
Mais um comentário...
Que autoridade perante uma classe tem uma professorinha que leva seus alunos para um Museu mascando chiclete sem respeitar as regras?
Principalmente, depois de desrespeitar o pedido da monitora perante seus alunos.
Falaram o que eu estava pensando... A chave está no equilíbrio, e infelizmente isso é artigo em baixa no "mercado" de boas maneiras atual. Realmente a atitude da aluna foi incompatível com a regra estabalecida (não entro aqui na validade ou não da norma, e confesso que tenho dúvidas sobre a existência da proibição de mascar chiclete em sala de aula - pra que serve essa proibição????), mas o fato é que a aluna merecia ser corrigida. Porém, não na intensidade utilizada, pois humilhação pública é realmente uma coisa nefasta, é uma das piores agressões a qualquer ser humano.
Acho que crianças precisam de limites claros, acho que professores deveriam ter vozes mais ativas, ainda que os pais reclamem, mas sempre pautando as suas ações pelo bom senso, pela dignidade, e porque não dizer, pela cidadania. Sim, pois qualquer cidadão não tem só direitos, tem também deveres, e um deles é obedecer às normas impostas.
Mas acho que mais uma coisa merece foco. É a discussão sobre o abuso da autoridade. Isso sim é preocupante, pois nos atinge em todas as esferas de nossas vidas.
Acho que a maioria das pessoas não foi ensinada a respeitar, e por isso abusa dos poderes que foram conferidos por outros. Isso acontece em todos os níveis, de empresas à escolas, da iniciativa privada ao (especialmente) poder público.
Hoje em dia é comum alguém abusar do poder que lhe foi conferido, mas no passado a coisa era a mesma, os coronéis, os chefes, os líderes mandavam e desmandavam ao seu bel prazer. Isso está enraizado no passado da humanidade como um todo, mas é uma praga que permanece presente até hoje e está em toda a parte. Fomos criados numa cultura coronelistica (inclusive quem vive nas cidades grandes), onde as pessoas acham que só por serem alguma coisa ou estarem em determinada posição podem abusar do poder que têm ou que lhes foi conferido. É a chamada "carteirada", é o chamado "você sabe com quem você está falando???", é uma parte do tão falado "jeitinho brasileiro". É a nossa dura realidade. Quem tem poder ou autoridade acha que tem privilégios e acha que é normal exercer tais privilégios pra mandar, pra coagir, pra obrigar, quando na verdade deveria perceber que tem mais deveres do que direitos, que está imbuído de um poder pra servir, pra realizar alguma coisa em benefício de outrem.
Pode parecer extremo, mas isso iguala, pelo menos em efeito (pois é sabido que a intenção não foi essa) a conduta da professora que abusou da autoridade e humilhou a aluna à conduta de qualquer chefe truculento, que desrespeita seus subordinados, à conduta de qualquer autoridade que faz questão de ser tratada de forma diferente, à conduta dos ricos, que humilham os pobres, e por aí vai...
Em todos os casos quem tem a autoridade, poder ou característica diferenciadora entende que ela lhes dá poder de abusar, pois estariam num patamar supostamente superior aos demais. E a verdade é exatamente o contrário, pois estão embuídos de poder ou de autoridade com a única e exclusiva finalidade de ajudar, ensinar, guiar...
É duro, mas cada dia mais entendo como verdadeiro aquele pensamento que diz que o poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente...
Será que existe saída?
Certa vez um aluno foi humilhado por um ano inteiro sem falar nada aos seus pais.
A "mestra" se achava no direito de humilhá-lo perante seus colegas por causa de sua dificuldade na coordenação motora e sempre o colocava de lado dizendo para todos ouvirem que ele nunca conseguiria desempenhar tal tarefa. Pois bem, o tempo passou, o aluno foi para outro colégio, encontrou professores de verdade e passou a ser respeitado como cidadão tornando-se aluno exemplar.
Hoje, ele está super bem e sem as neuras da tal professora. E ainda, no inicio deste ano foi encarregado pela diretoria de ser o aluno que recepcionaria os novos colegas e entre eles estava um aluno problemático que é sobrinho da tal professora que há 3 anos o descartava como aluno por pura incapacidade pedagógica.
É claro que quando a "distinta" viu quem ajudaria seu sobrinho na mesma hora quis saber tudo sobre o ex-aluno. Foi informada que o garoto é um exemplo de bondade, de perseverança, de inteligencia e de boa vontade. Que seu sobrinho teria como padrinho um aluno exemplar.
O ex-aluno não deixou por menos, se dirigiu à ela dizendo que seu sobrinho jamais passaria pelo que ele passou pelo simples fato dele estar em um colégio com professores-humanos, amigos de verdade e paciência acima de tudo.
O mundo deu a volta!
Alê....será que preciso dizer o nome do garoto?
Dificuldade de achar o equilíbrio. Parece que em pouco menos de 30 anos as mudanças foram equivalene a 300 anos.
alexandre, putz, que raiva. eu tinha escrito um longo comentário, mas na hora de postar, deu pau nesta famigerada janelinha.
mas eu falava exatamente da velocidade dos fatos, que mudamos da palmatória para o deus-dará nos últimos 30 anos (usei o mesmo número que você!). acho natural que a humanidade não tenha se acomodado a tanta transformação, né?!
mas vamos chegar lá!
Ai Alê, eu me atrapalho toda com esse quadradinho... A anônima sou eu mesma, lógico, que nunca me lembro de nada... Que lama!
Tivemos ótimas professoras mesmo, uma benção! E hoje a gente é assim, educadinha, o que faz uma diferença... Tô cansada de ver gente que só porque melhorou um pouquinho na vida começa a destratar os outros. Faltou uma Dona Fulana na vida desse povo!
Alessandra
Aos 55 anos resolví voltar á escola e é simplesmente lamentável o comportamento dos jovens.não há o mínimo repeito com e menos ainda com os colegas de classe.
Comoi é possível censurar as atitudes da professora diante do quadro que temos hoje?
Antonio
Ale, já postei minha coluna lá no meu blog, pode linkar. beijo!
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