Sunday, April 02, 2017

Mulheres do século 20



Eu achava que nenhum filme seria capaz de me tocar tanto, no que se refere à minha relação com meu filho, quanto “Tudo sobre minha mãe”, de Pedro Almodóvar. Até que assisti a “Mulheres do século 20”, escrito e dirigido por Mike Mills.

Mills é um autor que não tem medo de enfrentar a própria história como referência para seus longas. Ele já havia feito isso em “Toda forma de amor”, que rendeu um Oscar de ator coadjuvante a Christopher Plummer, centrado na figura de seu pai, e agora passa a limpo a relação com sua mãe, vivida por Annette Bening. Embora tenha como fio condutor as memórias de Jamie (Lucas Jade Zumann), toda a narrativa gira em torno da personagem Dorothea (Bening), mulher de 55 anos que cria sozinha o filho adolescente no final dos anos 1970, na Califórnia.

Na primeira sequência, mãe e filho estão fazendo compras em um supermercado quando descobrem que seu carro está pegando fogo no estacionamento. O velho Ford Galaxie parecia ser o último vínculo físico com o pai de Jamie, ex-marido de Dorothea que abandonou a família para viver “no Leste”, como genericamente cita o texto em off, dito pelo garoto.

De volta à casa, o relato do incêndio serve para apresentar os outros personagens de destaque na história: Abbie (Greta Gerwig), uma fotógrafa recuperando-se de um câncer ginecológico que aluga um quarto na casa de Dorothea, Julie (Elle Fanning), amiga de infância que divide com Jamie as incertezas e medos da adolescência, e William (Billy Crudup), hippie extemporâneo alojado no casarão que, entre a reforma do imóvel e consertos diversos, surge como autêntico quebra-galho para as duas mulheres adultas da trama.

“Mulheres do século 20” é um filme construído sob o ponto de vista feminino: diálogos explicitamente favoráveis ao empoderamento feminino, culto à liberdade sexual da mulher, presença solar de Bening, quatro vezes indicada ao Oscar de Melhor Atriz Principal que talvez tenha atingido, neste mais recente longa, sua plenitude na atuação. Mas o filme se torna explicitamente feminista pela forma com que retrata os homens.

No início da história, William raramente aparece de frente, sendo visto quase como um espectro de homem naquele universo. A falta do pai de Jamie (ou de uma figura que o represente em um corpo de homem) jamais será suprida por aquele bicho-grilo de meia idade que não parece empenhado em ser nada diferente do que um quebra-galho. O diálogo entre mãe e filho sobre o papel de um homem na vida de uma mulher ressalta o que ela não espera ver de Jamie no futuro: “os homens acham que precisam sempre estar na nossa vida para consertar alguma coisa, mas basta que estejam lá”.

Para garantir que o filho seja um homem diferente daqueles que cruzaram seu caminho, a mãe se apoia nas duas outras mulheres para pedir ajuda “na criação” de Jamie. Confrontada com as dificuldades da adolescência, Dorothea confia à inquilina e à jovem amiga do filho a incumbência de ajudá-la a atravessar essa fase, provavelmente por sentir que ambas, mais jovens que ela, conectam-se mais facilmente à mente do garoto de 15 anos. “Eu o conheço menos a cada dia”, constata a mãe depois de um acidente em que Jamie quase morre por conta de uma brincadeira estúpida entre adolescentes. “E você, fumando sem parar, não está procurando a morte também?”, questiona o jovem.

O cigarro está, de fato, presente em quase todas as cenas de Dorothea. Um diálogo entre ela e Julie pode parecer improvável nos dias atuais, mas é possível que toda família ocidental do século 20 tenha tido pelo menos uma mulher que se tornou fumante depois de adulta apenas pelo apelo de elegância com que o cigarro era vendido nas propagandas. A minha, pelo menos, teve.

Em mais de uma ocasião, os gestos e pensamentos de Dorothea serão embalados pela mítica “As time goes by”, trilha sonora de “Casablanca”. No entanto, em vez de começar com o tradicional verso “You must remember this”, a versão do filme de Mills começa com o pouco conhecido recitativo original, cujos versos dizem: “Esses dias e a era que estamos vivendo nos dão motivo de apreensão, com a velocidade e novas invenções e coisas na quarta dimensão/Embora fiquemos um pouco cansados com as teorias do Sr. Einstein, precisamos voltar à Terra de vez em quando, e liberar a tensão/E não importa o progresso ou o que ainda possa ser provado, os simples fatos da vida são tantos que não podem ser retirados.”

Dificilmente algo poderia expressar melhor a inquietação da mãe diante dos novos hábitos do filho – da música contemporânea às descobertas sobre as mulheres. E a frase recorrente de Jamie sobre a mãe (“Ela nasceu na Depressão”) surge ao mesmo tempo como uma justificativa para a aparente inadequação de Dorothea e uma inequívoca tentativa do jovem de estabelecer uma diferenciação entre o seu mundo e o dela, como se a percepção da individualidade daquele menino tenha sido postergada da primeira infância para a adolescência, provavelmente pela prevalência da figura materna em sua vida.

O pedido de Dorothea para que Abbie e Julie ajudem Jamie acaba criando uma espécie de “corrente do bem”, na qual aquela família informal se sustenta diante das crises. Pois, se Abbie introduz o garoto à cena punk e aos conceitos do feminismo (chocando Dorothea, como se a influência nesse campo tivesse ido longe demais), é Jamie quem segura a barra de Abbie em um dos momentos mais tocantes do filme. E o faz sem falar nada, sem querer consertar nada, apenas “estando lá”, como a mãe ensinou. E se Julie funciona como literal instrumento de fuga de Jamie, é ele também que a ajuda a enfrentar uma dúvida aterrorizante, daquelas que paralisam qualquer adolescente em algum momento da vida.

No entanto, todos esses elementos – Jamie, Abbie, Julie – de alguma forma fazem fluir seus pensamentos, conceitos e vivências de volta para Dorothea, contribuindo para sua própria reflexão de vida. Os conceitos rasteiros de psicologia repetidos por Julie (“A culpa sempre é da mãe”), a instigação de Abbie, falando sobre o amor materno ou sobre menstruação em um jantar com convidados, enfrentando de forma literalmente punk um assunto tabu, e os questionamentos de Jamie mostram que aquela mulher de 55 anos podia – e queria – dar novos rumos à sua vida.


Narrado como memória por um Justin adulto, o filme remete a “Entre dois amores”, de 1985, e a marcante sequência de um voo em um bimotor, lembrando a escritora Karen Blixen, ícone da independência feminina. Dorothea surge, então, como um produto contemporâneo dessa mulher emancipada, mas também ciente do confronto entre suas inseguranças e desejos. Eu não poderia me enxergar mais naquela mulher, e já estava banhada em lágrimas quando Justin questiona a si mesmo como definiria a mãe para os próprios filhos. “Explicar a eles como ela era? Impossível.” 

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