Monday, November 10, 2025

 Fórmula 1: a conquista das mulheres


O primeiro Grande Prêmio de Fórmula 1 a que assisti em Interlagos foi o de 1991. Tive sorte, admito. Foi aquela corrida mítica, a da primeira vitória de Ayrton Senna em seu país natal. Eu estava na arquibancada, em uma turma de umas oito pessoas, e era a única mulher do grupo. Olhando no entorno, a presença feminina talvez fosse proporcionalmente até menor. O ambiente era um mar de homens. Um gesto simples, como ir sozinha ao banheiro, rendia dissabores diversos, de gracejos inoportunos a abordagens agressivas. Era como se eu não devesse estar ali, mas eu já amava esse esporte, e insisti.

Naquele mesmo ano, comecei a trabalhar como jornalista, cobrindo automobilismo, e nos anos seguintes eu continuei frequentando o Grande Prêmio, mas do lado de dentro da pista. No paddock, a presença feminina era igualmente pequena. Poucas mulheres entre os colegas de imprensa, poucas profissionais atuando nas equipes. Gracejos e abordagens agressivas não havia, mas a sensação de ser um corpo estranho em um ambiente dominado pelos homens prevaleceu durante muitos anos.

Três décadas depois, o panorama é muito diferente. Um estudo publicado pela Nielsen Sports no final de 2024 apontou que o público mundial interessado em Fórmula 1 atualmente é composto por 41% de mulheres. Até 2017, essa participação era de 10%. Também em 2024, o IBOPE Repucom publicou outro estudo, focado no público brasileiro da categoria, demonstrando que o percentual de mulheres entre os fãs desse esporte passou de 31% em 2019 para 46%. Apenas mais um dado, para reforçar o ponto: no GP de São Paulo, o público feminino saltou de 17% em 2019 para 36,9% em 2024.

A menção ao ano de 2019 deve ter acionado uma referência forte para quem acompanha a categoria nos últimos tempos: a série Drive to Survive, produção da Netflix que fez sua estreia naquele ano. Relatando cada temporada pela lente das histórias pessoais, muito mais do que dos resultados dos pilotos na pista, a série é reputada como uma das grandes responsáveis pela mudança do público da Fórmula 1. Não vieram apenas mais mulheres, mas também mais jovens, incrementando a popularidade de maneira decisiva – no ano de estreia da série, a audiência da categoria na TV dos Estados Unidos cresceu 70%.

A lógica desse novo panorama está na estratégia da própria categoria, que percebeu a necessidade, ou mesmo a urgência, de rejuvenescer e diversificar seu público, na busca por ser uma categoria plural, não uma modalidade de nicho. Mas não é possível explicar a presença feminina ampliada nos autódromos de hoje apenas por ações de mídia. Nessa equação, precisa entrar outro componente: representatividade.

O público feminino que passou a acompanhar Fórmula 1 também testemunhou um crescimento inédito de profissionais femininas no paddock e no pit lane. Se, nos anos 1990, as mulheres praticamente só ocupavam cargos em áreas-suporte nos times – assessoria de imprensa, marketing – hoje há engenheiras e executivas em posições nevrálgicas de diversos times, reforçando no público feminino a ideia de que as coisas estão mudando também entre aqueles que trabalham na categoria.

A britânica Hannah Schmitz é a engenheira principal de estratégia da Red Bull. A alemã Laura Müller, da Haas, tornou-se a primeira mulher engenheira de corrida da história. Nomes como os de Hannah e de Laura, que alcançam notoriedade, são resultado de ações sistemáticas de várias equipes em iniciativas de diversidade. Em 2020, por exemplo, a Mercedes lançou um programa para aumentar o número de mulheres entre os profissionais da equipe, estabelecendo a meta de 25% desse contingente até 2025.

Até hoje, apenas 11 mulheres subiram ao pódio para receber um troféu em uma corrida de Fórmula 1. A primeira, Ginny Williams, em 1986, ocupou a posição para representar o marido, Frank Williams, recuperando-se do acidente que o deixou paraplégico. A segunda vez que uma mulher viria a subir ao pódio da categoria foi apenas em 2013, quando a engenheira Gill Jones recebeu o troféu pela equipe Red Bull, no GP do Bahrein.

Além de postos técnicos, nas equipes, as mulheres progressivamente passaram a ocupar também cargos executivos no automobilismo. A brasileira Fabiana Flosi Ecclestone, desde 2022, é vice-presidente para a América do Sul da Federação Internacional de Automobilismo. Advogada, ela trabalhou por mais de 25 anos na organização do Grande Prêmio brasileiro de Fórmula 1 e se casou em 2012 com Bernie Ecclestone, ex-comandante da categoria. Nos últimos anos, outro nome que ganhou destaque no segmento foi o de Ellie Norman, inglesa que comandou o marketing da Fórmula 1 por cinco anos – exatamente no período de maior crescimento da popularidade da categoria – e atualmente exerce a mesma função na Fórmula E.

Se a representatividade feminina pelo menos cresce nos cargos técnicos e executivos, ainda há uma evidente jornada a trilhar quando se fala da presença feminina dentro das pistas. É certo que ações foram criadas para estimular o aumento de mulheres no automobilismo nos últimos anos. A W Series, categoria exclusiva para mulheres, realizou seu primeiro campeonato em 2019. Reunindo 18 pilotas por temporada, foi interrompida em 2020 devido à pandemia, retornando para mais dois anos de competição. As três temporadas da W Series tiveram a mesma campeã – a inglesa Jamie Chadwick. Sem conseguir viabilizar financeiramente a categoria, seus organizadores anunciaram a recuperação judicial em junho de 2023.

Por essa época, já havia estreado um novo campeonato dedicado exclusivamente para mulheres, a F1 Academy, com a chancela do Formula One Group. Principal categoria da atualidade voltada para mulheres, a F1 Academy teve duas campeãs até agora: a espanhola Marta García (2023) e a britânica Abbi Pulling (2024). Embora tanto a W Series quanto a F1 Academy tivessem estreitado o contato das pilotas com as equipes de Fórmula 1, possibilitando que muitas delas se tornassem integrantes efetivas dos times, o fato é que nenhuma delas, até agora, assegurou um assento na categoria.

A raiz desse problema parece estar na origem: o número de meninas nas competições de automobilismo ainda é muito menor que o de garotos. A iniciativa More than equal, liderada pelo ex-piloto de Fórmula 1 David Coulthard, foi criada para mapear e incentivar o ingresso de pilotas nas competições. Segundo essa iniciativa, a média global de participação feminina no automobilismo é de 10%. Também reporta que a carreira de uma mulher nessa modalidade dura de 1 a 5 anos, em comparação com mais de 12 anos para os homens. Outro dado relevante trazido pela More than equal: 45% das mulheres fãs de corridas dizem que dariam ainda mais atenção a esse esporte se houvesse mais mulheres pilotas.

A FIA, também atenta à situação, criou o Girls on Track, programa que busca estimular meninas a desenvolver carreira no kart. Sendo um trabalho de base, naturalmente os resultados esperados devem surgir no longo prazo. Até lá, meninas e mulheres vão continuar marcando presença em pistas como Interlagos, fazendo com que veteranas como esta jornalista sintam-se muito menos isoladas. E mais felizes.

 Texto publicado originalmente na revista-programa do GP São Paulo de Fórmula 1 - 2025