Saturday, December 28, 2019

Uma mulher alta: traumas de guerra sob o olhar feminino



Pesado, denso, sufocante e, no entanto, fluido e envolvente. “Uma mulher alta”, dirigido pelo russo Kantemir Balagov, propõe-se a contar uma história de guerra sob a ótica feminina e termina por mostrar que as sequelas podem ser tão profundas na alma dos civis quanto em corpos mutilados e paralisados dos soldados que retornam.

A “grandona” do título é Iya (Viktoria Miroshnichenko), uma enfermeira que trabalha em um hospital de Leningrado repleto de soldados russos recém-egressos da Segunda Guerra. Traumatizada pelo conflito, ela desenvolveu a tendência de eventualmente ficar paralisada, incapaz de se mover enquanto respira com dificuldade. Logo depois de um evento pessoal trágico, ela recebe a amiga Masha (Vasilisa Perelygina), que volta da guerra e passa a morar com ela.

O jovem diretor Balagov, de 28 anos, demonstra notável domínio da linguagem cinematográfica ao expressar o contraste entre as duas por meio dos enquadramentos escolhidos, de seus figurinos, das cores associadas a cada personagem. Esse talento foi reconhecido no último Festival de Cannes, no qual o russo foi premiado como Melhor Diretor da mostra Um Certain Regard. Com quase nenhuma trilha sonora, o filme ainda se mostra ousado ao apostar em diálogos muitas vezes monossilábicos, reforçando o peso do silêncio naquele universo. Também é admirável que Balagov adote um ritmo propositadamente lento nos movimentos de câmera, sendo muito parcimonioso no uso de cortes. O pós-guerra em um país recém-liberado de batalhas é um tempo de angústia, de insegurança e de observação, e suas lentes traduzem exatamente esse ritmo.

Iya (Viktoria Miroshnichenko) e Masha (Vasilisa Perelygina): contrastes

Ainda que ligadas por uma amizade genuína, Iya e Masha são mulheres muito diferentes, a começar pelo contraste de altura, mas sobretudo pela forma como a guerra impactou a vida e o espírito de cada uma delas. Enquanto Masha parece sempre disposta a expor o que o horror do conflito lhe impôs, e buscar soluções imediatas para problemas que ela mesma sabe insolúveis, Iya tenta a todo tempo escamotear seus traumas, medos e grande culpa, sabendo-se igualmente impotente diante das evidências de horror que se espalham por sua vida. Paulatinamente, o filme deixa claro que o livro aberto de Masha no fundo esconde páginas ainda mais sangrentas, e que o esforço de Iya em fazer seus próprios problemas desaparecerem em um cenário tão terrível resultam apenas em mais dor.

Baseado na obra “A guerra não tem rosto de mulher”, da vencedora do Nobel Svetlana Aleksiévitch, “Uma mulher alta” é uma história de guerra contada sob a ótica feminina. Nela, aos homens cabem basicamente dois papéis: o de soldados feridos nas batalhas, ou de produtores de esperma. Em sua obsessão por resolver seu problema insolúvel, Masha será ardilosa a ponto de usar modalidades diferentes de chantagem (real e psicológica), sem conseguir esconder, por baixo de gestos e frases enérgicas, a alma despedaçada que passou a carregar dentro de um corpo igualmente com sequelas. Nesse mundo governado por homens, que resolvem seus conflitos em guerra, usá-los no que lhes é mais simbólico de sua virilidade pode não ser minimante eficaz no seu caso, mas termina por se mostrar altamente catártico.

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