Wednesday, September 20, 2017

mãe!


É lamentável, embora não totalmente surpreendente, que “mãe!”, o mais recente filme escrito e dirigido por Darren Aronofsky, tenha sido recebido com vaias em sua estreia no Festival de Veneza. Também não surpreende que o primeiro final de semana de exibição, nos Estados Unidos, tenha sido decepcionante (arrecadou 7,5 milhões de dólares contra 60 milhões de “It – A Coisa”). “mãe!” só será digerido e eventualmente admirado se o espectador compreender que praticamente tudo o que está na tela é alegoria, não representação real. O que, convenhamos, é um exercício pouco habitual para a maior parte das plateias.

A própria sinopse já revela o nonsense: o casal formado por um poeta em bloqueio criativo (Javier Bardem) e sua esposa (Jennifer Lawrence) mora em uma casa isolada que, certa noite, recebe a visita de um homem desconhecido (Ed Harris). Mesmo sem saber de quem se trata, o poeta convida o homem a pernoitar em sua casa para, na manhã seguinte, receber a esposa desse estranho visitante (Michelle Pfeiffer). A relação entre os dois casais, a chegada de dois filhos dos visitantes e eventos que incluem violência e morte tencionam a relação entre o poeta e sua esposa, que se descobre grávida. O desenrolar da gestação ocorre em paralelo à volta do poeta à ativa, e a história se encaminha para seu desfecho com o nascimento do filho e o lançamento do novo poema.

Ir além na descrição da história é impossível sem entregar pontos-chave da trama, algo que só vai estar presente na segunda parte deste texto, com alerta de spoilers. Também parece coerente certa decepção da plateia em relação a “mãe!” partindo-se do trailer divulgado nas semanas anteriores ao lançamento, que apresentava o filme como uma espécie de “O bebê de Rosemary” revisitado. Os dois filmes, de fato, têm alguns pontos em comum, mas não a ponto de “mãe!” poder ser considerado uma releitura do filme de Roman Polansky.

Do ponto de vista cinematográfico, “mãe!” oferece diversos elementos que reforçam a capacidade criativa de Aronofsky, criador de “Cisne Negro”, “O Lutador”, “Réquiem para um sonho”, entre outros. Estruturado quase como uma peça de teatro, inclusive nas interpretações, o novo filme exala claustrofobia em suas primeiras sequências. Imagens em primeiríssimo plano, fechadas nos rostos dos personagens, acentuam a sensação de aprisionamento.

Praticamente sem trilha sonora em seus primeiros dois atos, o filme tem design sonoro preciso, utilizando sons, como de objetos caindo ou se quebrando (recorrentes no filme) como marcadores de ritmo e criadores de tensão. À medida que o filme avança para seu segundo ato, os planos começam a se tornar menos fechados e a câmera, mais ágil. A cena da briga entre os filhos do casal Ed Harris-Michelle Pfeiffer injeta energia no ambiente sem abandonar o caráter onírico que permeia praticamente todo o filme.

Não é à toa que os personagens sejam aqui descritos sem nomes, já que é desta forma que eles se apresentam todo o tempo, algo que pode ser visto como chave para a interpretação daquela história aparentemente sem nexo. Nesse ambiente impessoal, no entanto, a composição dos dois personagens centrais – o poeta e sua musa – é irrepreensível, tanto do ponto de vista de interpretação quanto de direção. Mais que isso: o roteiro de Aronofsky oferece todos os gatilhos para que o espectador rapidamente se identifique e entenda as motivações de ambos, chegando ao final da história completamente envolvido por aquele casal. Se – e somente se – entender a grande alegoria desfiada em situações tão exóticas nos 121 minutos de filme.

Mãe! – uma interpretação, com spoilers

"mãe!" é uma obra aberta como poucas têm surgido no cinema norte-americano nos últimos tempos. A interpretação a seguir é uma possibilidade, a partir de percepções subjetivas, e o define como uma alegoria do artista em seu processo criativo. Mas parece evidente que o balaio de “mãe!” comporta múltiplas visões, que têm se estendido por temas tão diversos quanto ecologia (a “mãe” feita por Lawrence como representação do planeta Terra) a intolerância religiosa.


Em uma das primeiras cenas, o personagem de Javier Bardem aparece segurando uma pedra, logo identificada como preciosa, pelo lugar de destaque que ela passa a ocupar em um nicho da sua estante. Também nas primeiras sequências, o filme introduz a figura da esposa do personagem, Jennifer Lawrence, a todo instante definida por ele como sua “musa”.

Para além da relação de um casal, o filme ganha muito mais sentido se for percebido como um momento na vida de um artista no qual ele se encontra em bloqueio criativo e dialoga com suas referências e fantasmas. Sob essa perspectiva, tudo o que se vê na tela é a mente desse artista debatendo-se com elementos afetivos, sociais, sexuais, históricos, religiosos (o fogo, o inferno, a culpa, o apocalipse, está tudo lá) – formadores de sua obra – e agarrando-se ao aspecto aparentemente mais frágil, intocado e etéreo de todos – sua inspiração. A personagem de Jennifer Lawrence não seria, sob essa perspectiva, a esposa do poeta que dá à luz seu filho, mas a inspiração que lhe permite gerar e parir novas obras.

Isolado do mundo, cultivando sua inspiração, o poeta sabe-se impotente diante da prevalência de tudo que já habitou sua história. O homem moribundo que lhe bate à porta (Ed Harris) surgiria como a figura do pai – o seu próprio pai, ou ele mesmo, como pai/criador de sua obra. A morte iminente do visitante, uma representação da finitude de sua existência.

A esposa desse homem (Michelle Pfeiffer), uma síntese de figuras femininas, misturando a altivez de uma mãe dominadora com a sensualidade de uma mulher plena, quase cruel. Enxergando o personagem de Bardem como um artista/poeta, é quase lógico enxergar nessa visão a fragilidade de um ser sensível diante de uma figura que transpareça, ao mesmo tempo, segurança e provocação, ternura e luxúria.



Os filhos deste casal – Caim e Abel redivivos – o símbolo de uma fraternidade que se autodestrói, podendo ser ao mesmo tempo a humanidade condenada a seus flagelos, pelo pecado original, ou os produtos da mente do poeta – seus escritos – duelando pela condição de obra-prima.

É quando se desprende dessa herança primária aprisionadora que o poeta finalmente entrega-se à inspiração (sua musa) e se deixa fundir com sua seiva. Fecundada, a musa sabe-se pronta a dar frutos (tanto que já não bebe a poção amarelo-ouro que parece lhe servir como combustível). Grávida, ela anuncia que o bebê se moveu em seu ventre. E o poeta confirma: são os primeiros versos nascendo de sua pena. O filho-poema vai crescendo em ambiente de aparente paz, ainda que a musa-inspiração se depare, vez ou outra, com sinais inequívocos de que o ímpeto criativo brota por todos os poros daquela casa-cérebro, que verte sangue pelas paredes.


Prestes a dar à luz, a musa surge em representação perfeita de uma deusa grega – e não custa lembrar que o Olimpo contava com nove musas entre suas divindades. Pressionado por sua editora e por seu público a divulgar a nova obra, o poeta já não disfarça que talvez sinta tanto prazer e orgulho por ter escrito o poema quanto por ser idolatrado. Não se furta a deixar que invadam sua casa-mente para demonstrar sua admiração, sua idolatria, seu fanatismo, sua cegueira. O bebê-poema que chega ao público cumprirá seu destino quando for recebido, possuído, consumido pela horda insana.


À musa – produto de sua mente, criada para alimentá-lo com um amor desmedido (em certo ponto, ela diz: “Você nunca me amou, você amava o meu amor por você.”) – apenas sobrará o caminho de consumir-se no fogo da culpa (cristã?) daquela mente. Ela lhe rendeu o diamante que ele lapidou e transformou em novo poema. Mas ele continuará sangrando o desejo irrefreável de produzir novamente. Para isso, criará em sua casa em escombros mais um artifício para alimentar sua alma – outra musa.

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