Maria Rita, a voz e o barrigão |
Na segunda vez em que fui assistir ao espetáculo
“Redescobrir”, no qual Maria Rita homenageia sua mãe, Elis Regina, tive o
privilégio de ser gentilmente recebida pela cantora, no camarim, depois do
show. Disse a ela que 2012 estava sendo um ano maravilhoso para mim: completei
minha primeira maratona, o Corinthians fora campeão da Libertadores e, depois
de esperar 30 anos, eu a tinha visto cantar as músicas de sua mãe. Rimos e eu
dei a ela um pequeno pin, com uma foto de Elis por volta de 1979, que eu comprei
e guardei comigo desde 1984.
Bem, o ano ótimo conseguiu melhorar. O Corinthians foi
campeão da Copa do Mundo de Clubes da FIFA, no Japão, e chegaram ao mercado o
CD e o DVD com a gravação da íntegra dos shows da Maria Rita. Eu tinha me
debulhado em lágrimas na primeira vez que vi, em agosto. Fui mais contida na
segunda ocasião, no final de setembro. Mas, ouvindo o CD pela primeira vez, no
trânsito da Marginal Tietê, enxuguei várias lágrimas, várias vezes.
Por que choro ao ouvir Maria Rita cantar as músicas da sua
mãe? Difícil resumir a uma explicação única. Choro de saudade da Elis. Choro de
raiva, por não ter podido ouvi-la cantar tantas canções que ficariam
maravilhosas na voz dela. Choro de inconformismo, por ela não ter visto o
Brasil, onde ela foi porta-voz da anistia, agora redemocratizado. Choro de
tristeza, de lembrar Elis morta, vestida com a camiseta censurada, que trazia
as palavras “Elis Regina” no lugar de Ordem e Progresso, na bandeira do Brasil.
Choro de aperto no peito de lembrar Maria Rita tão pequena e eu sofrendo, de
longe, “meu Deus, essa menininha não tem mais mãe...”. Mas, claro, também choro
de saudade da minha adolescência embalada pelos LPs da Elis, dos planos que
fazia naqueles tempos, da inocência e das ilusões.
Já faz muito tempo que não consigo “ouvir” Elis nas
interpretações da Maria Rita. No primeiro disco, vá lá. Alguns fraseados da
filha lembravam bastante a mãe. Dali para frente, descolei uma interpretação da
outra e passei a achar as vozes bastante diferentes também. Assim, quando
finalmente fui ouvir Maria Rita cantando Elis, ouvi uma cantora homenageando
outra, não imitando. Há quem pense diferente, e isso é altamente subjetivo,
claro. Respeito. Pouco antes do lançamento do CD e do DVD, uma frase da Maria
Rita pelo Twitter me chamou a atenção: ela dizia algo como “sei que minha voz
pode não estar entre as melhores” ou coisa do gênero. Fiquei surpresa. Tenho
todos os seus CDs e já a vi ao vivo algumas vezes. Acho Maria Rita uma cantora
excelente, com uma voz afinada e potente. Como assim, não estar entre as
melhores???
Logo depois, ouvi o CD. E acho que entendi o que ela quis
dizer. Quem conhece bastante a obra da Elis também entenderá. Sabe quando, em
“Como nossos pais”, Elis canta: “por isso, cuidado, meu bem...”? Esse “isso” é
um agudo filho da mãe. Passou de agudo, é uma facada. E o “scat singing” à la
Lewis Armstrong que Elis fazia em “Alô alô marciano”?! Como reproduzir aquilo?
Elis Regina, em "O falso brilhante", espetáculo que continha a música "Como nossos pais" |
Cantar Elis, a gente já deveria saber, não é fácil. Ainda
mais se você tem um tom de voz parecido, que vai jogar a sua recriação para uma
comparação evidente com a obra original. Dá para imaginar quantas músicas da
Elis Maria Rita já cantarolou pela casa. Quantas “vestiram” na sua voz melhor
que outras, e quantas vezes ela mesma pensou: como ela fazia isso? No entanto,
ao escolher o repertório para o show “Redescobrir”, Maria Rita foi de peito
aberto e pinçou a “Como nossos pais” do agudo-facada e a “Alô, alô marciano” do
scat singing inimitável. Porque são peças fundamentais da obra de sua mãe.
Porque não poderiam faltar se o objetivo era levar o Brasil a redescobrir Elis
Regina. Corajosa essa cantora.
Sobre Carlos Gardel, morto em 1935, diz-se que ele “canta
cada vez melhor”. É o caso de Elis: cada vez que alguém escuta um de seus
álbuns, e eu passei os últimos 30 anos escrutinando-os quase todos, descobre
uma nuance sensacional, uma sacada inventiva, uma perfeição de nota executada
no fio da navalha. Genial, mas insegura (dizem...), Elis morreu comparando-se
com Gal e Bethânia. As duas, maduras sessentonas, seguem como divas absolutas
da MPB. Serenas pela idade e pela estabilidade que o tempo traz, não são as
cantoras de trinta anos atrás, nem poderiam. São cantoras magníficas, mas não são
mitos. Provavelmente, a performance atual de ambas não resistiria à comparação
de suas próprias performances de trinta anos atrás.
Trinta anos atrás, onde está Elis: vigorosa mulher de 36
anos, cantando “cada vez melhor”, cristalizada no tempo em uma posição que nem
o tempo há de roubar-lhe. Um mito. “Agora, eu sou uma estrela.”
E Maria Rita, armada tão somente de uma banda extraordinária,
de sua voz e de um barrigão, encarou esse mito. Que coragem, moça...
1 comment:
Belissimo o seu texto. Como sempre. Que delicadeza especial voce tem para falar desse assunto, desse universo. Muito lindo mesmo.
Obrigado por compartilhar tais palavras e emoções com a gente. E gostaria de dizer que, eu, tenho raiva também, de não ter vivido a época de Elis. De não ter visto. E sou desses que sente essa saudade do que não vivi.
E descobri Elis aos 10 anos de idade, assim que a MR apareceu. Ouvia e lia TANTO falarem "filha da Elis", que o apaixonado pela filha, virou também um apaixonado pela mãe. Só alegria!
Bjos
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